“Tu ‚s a própria Beleza!”

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Breve introdução à estética Agostiniana
“Tarde te amei, ó beleza, tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei!”
Agostinho de Hipona

A estética agostiniana foi certamente influenciada pela metafísica de Platão, embora também se distancie dela em alguns de seus aspectos mais vitais. Tal como em Platão, o conceito agostiniano de Beleza é antes de tudo teológico e ético. A ideia de uma convergência do valor estético com os valores éticos situa a estética agostiniana ainda numa tradição clássica. Agostinho associa espontaneamente o belo e o bem (kalokagathia), explicitando um vínculo natural entre beleza e bondade. A compreensão agostiniana, portanto, insurge-se contra a sofística, que punha em risco a relação triádica Bem-Belo-Verdadeiro, compartilhando da ojeriza de Platão.

Agostinho situa a beleza decisivamente no objeto, embora conclua que só o espírito iluminado pode gozá-la verdadeiramente, só o coração atingido pela graça pode contemplá-la e nela deleitar-se, sem ser arrastado, por seu próprio peso, para aquilo que é meramente um aceno ou vestígio. Ainda que o universo seja uma escrita de Deus, esta leitura só deixa de ser deficitária quando o homem é iluminado pela Graça, quando contempla a glória de Deus na face de Cristo – este, o “verbo perfeito a quem nada falta, e por assim dizer, arte de Deus onipotente”.1

Para Agostinho, o Belo é belo e o Feio é feio. Neste sentido, quando Agostinho fala de Beleza, está falando, em rigor, do Belo. Não obstante – e isto introduz alguma tensão nova na estética agostiniana – Agostinho revelou-se bastante atento à distinção entre a Beleza em geral e o Belo apenas clássico. No que se refere à Beleza em geral, Agostinho esboça e aprofunda aquela síntese que se anunciava em Aristóteles e Plotino: “A Beleza é o esplendor da harmonia, e a unidade é a forma de toda Beleza”.2  Outra contribuição valiosa que Agostinho trouxe para a Estética foram as suas reflexões sobre a presença do Mal e do Feio no campo estético. Os pensadores gregos identificavam o Belo com a Beleza, considerando-o a única forma legítima de Beleza. A beleza era o belo puro. Agostinho, porém, aprofunda a fórmula da unidade na variedade, levando-a a consequências últimas; isto é, diz ele que a variedade não abrange somente as partes belas de um todo. Seguindo a leitura neotomista, Ariano Suassuna conclui:

Para chegar a essa ideia estética da legitimidade do Mal e do Feio na obra de arte, Santo Agostinho partiu de suas reflexões sobre o Mal e o Feio no próprio mundo e na vida, no universo… Assim, o Feio entra pela primeira vez como legítimo no campo estético, admitido como fator de valorização do belo, e ambos aptos a fornecer assunto para a criação da Beleza.3

E de fato, não indaga Agostinho que “se a reprovação dos defeitos redunda em louvor da beleza e dignidade, ainda das mesmas naturezas atingidas de defeitos, quanto mais não deve ser louvado o mesmo Deus, criador de todas as naturezas, até por motivo dos defeitos delas?”

Agostinho obviamente está longe da visão da experiência estética como atividade autônoma, tal como se vê a partir de Kant.4 Para Agostinho, e de fato para a estética medieval cristã, a beleza é associada à ideia da revelação e à perfeição de um Deus-Criador ou de uma ordem cósmica preestabelecida.5

O texto a seguir consiste de pequenos recortes de obras agostinianas, pinçados e postos por mim em tal ordenação.6  Em raríssimos momentos o texto sofreu alguma simplificação ou ligeira adaptação, em prol de sua clareza ao leitor contemporâneo. Pelo conjunto do texto pretende-se que o leitor obtenha uma introdução geral à estética agostiniana.


“Tu és a própria Beleza!”

Santo Agostinho em seu anseio pelo Belo

Ó altíssimo, infinitamente bom, belíssimo… Deus, que do nada criaste este mundo, o qual acham belíssimo os olhos de todos que o contemplam. Deus, por quem todas as coisas são perfeitas, ainda com a parte que lhes toca de imperfeição. Deus, Pai da Verdade, Pai da sabedoria, pai da verdadeira e suprema vida, Pai da felicidade, Pai do que é bom e belo, Pai da luz inteligível, pai do nosso desvelo e iluminação… Eu te invoco, Deus Verdade, em quem, por quem e mediante quem é verdadeiro tudo o que é verdadeiro. Deus Sabedoria, em quem, por quem e mediante quem têm sabedoria todos os que sabem… Deus Bondade e Beleza, em quem, por quem e mediante quem é bom e belo tudo o que tem bondade e beleza… Com efeito, se há alguma realidade mais excelente, essa então é Deus… Uma vez que onde se conhece e possui o bem supremo é na Verdade, e essa Verdade é a Sabedoria, contemplemos e possuamos nela o bem supremo, e desfrutemos dele, pois bem-aventurado é o que desfruta do bem supremo.  

O Universo de que Deus é o criador e providenciador, sempre permanece belo, ordenadamente composto das partes mais adequadas… Todas as coisas foram criadas dentro da ordem correspondente… Deus, por conseguinte, criou todos os seres, não só os que haviam de permanecer na virtude e retidão, mas também os que haviam de pecar. Não os criou para pecar, mas para virem a embelezar o Universo, quer quisessem, quer não quisessem pecar.

Todo o ser que pode tornar-se menos bom, é bom, e todo o ser ao deformar-se torna-se menos bom. Ora todo o ser ou é deformável ou indeformável. Logo todo o ser é bom… Deste modo, todo o ser existente em si ou é Deus ou procede de Deus, pois todo o bem ou é Deus ou procede de Deus. Daqui se infere que não teria faltado aos seres materiais, os menos nobres, o mais adequado embelezamento, mesmo que esses segundos seres não houvessem querido pecar. Apesar de tudo, mesmo que pecassem, bastaria o poder de Deus, de inexprimível energia, para reger todo este nosso Universo, de modo que atribuindo a todos os seres o que lhes era adequado e devido, não permitiria que existisse em todo o seu domínio nada de disforme nem indecoroso… Relativamente aos seres racionais, quer pecando quer não pecando, por meio deles perfaz-se a beleza do Universo em proporções harmoniosíssimas. Ninguém, portanto, é réu por aquilo que não recebeu; é justamente réu, em contraposição, por não fazer o que deve.   

Ora, se a reprovação dos defeitos redunda em louvor da beleza e dignidade, ainda das mesmas naturezas atingidas de defeitos, quanto mais não deve ser louvado o mesmo Deus, criador de todas as naturezas, até por motivo dos defeitos delas! A razão é que d’Ele receberam a categoria de naturezas, e tornam-se defeituosas na medida em que se afastam da sua ideia-arquétipo (as ideias existentes na mente divina, que constituíam o modelo) pela qual foram produzidas.

Ora no conjunto ordenado dos seres corpóreos, desde a harmonia das constelações celestes até ao número dos nossos cabelos, a beleza dos seres bons entrelaça-se gradativamente… A superabundância e a magnificência da bondade de Deus não só concedeu que existissem os grandes bens, mas também os médios e os ínfimos. A sua bondade deve ser mais glorificada nos grandes bens, que nos médios bens, e mais nos médios que nos ínfimos; mais, porém, em todos eles, do que se os não tivesse concebido todos…

As realidades eternas são superiores às temporâneas… Não podemos conservar para sempre aquilo que é perecível e passageiro… A natureza do corpo é de categoria inferior à do espírito, e por isso o espírito é um bem superior ao corpo. Deste modo, qualquer alma é melhor que qualquer ser corporal, e nenhuma alma pecadora, para onde quer que tenha caído, por mudança alguma se transforma em corpo, nem de modo algum se lhe tira o ser alma, e assim por caso nenhum perde a prerrogativa de ser melhor que o corpo. Ora tendo a luz o primeiro lugar entre os corpos, segue-se que a última das almas sobreleva-se ao primeiro dos corpos… A alma, por maior que seja a depauperação e falta de embelezamento a que tenha chegado, superará sem dúvida alguma o valor de todos os corpos. 

A maior parte dos homens erra porque, concebendo no espírito realidades mais perfeitas, com os olhos não as busca nos lugares próprios… Meu pecado era não procurar em ti, e sim nas tuas criaturas – isto é, em mim mesmo e nos outros – os prazeres, a honra e a verdade… Eu amava as belezas terrenas e caminhava para o abismo… Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas… Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não existiriam se em ti não existissem… Tuas obras te louvam para que te amemos. A natureza dá glória a seu Artífice. Oh Sapiência, luz suavíssima da mente purificada! Ai dos que te abandonam como guia, e se extraviam nos teus vestígios! Ai dos que em vez de ti amam os teus acenos, e esquecem o que tu insinuas! Não cessas efetivamente de nos insinuar quem e quão grande és, e são acenos teus toda a beleza das criaturas. Na verdade, também o artífice, a respeito da mesma beleza da obra, insinua de algum modo a quem contempla a sua obra, que não fique todo preso a isso, mas de tal modo percorra com os olhos a beleza do corpo executado, que vá com o afeto até junto de quem o executou. Quanto aos que, em vez de ti, amam as obras que tu realizas, assemelham-se aos homens que ao ouvir algum sábio de notável eloquência, escutando com excessiva avidez a suavidade da sua voz e a disposição das sílabas, devidamente colocadas, perdem de vista a primazia dos pensamentos, de que essas palavras tinham vibrado como sinais.

Os olhos amam a beleza e a variedade das formas, o brilho e a amenidade das cores. Oxalá que tais atrativos não me acorrentassem a alma! Oxalá que ela fosse possuída por aquele Deus que criou estas coisas tão belas! O meu bem é Ele, e não as criaturas que todos os dias me importunam acordado, que por vezes ficam todas em silêncio. Que multidão inumerável de encantos não acrescentaram os homens às seduções da vista, com a variedade das artes, com as indústrias de vestidos, calçados, vasos, com outros fabricos desta espécie, com pinturas e esculturas variadas, com que ultrapassam o uso necessário moderado e a piedosa representação dos objetos! No exterior correm atrás das suas obras. No interior esquecem Aquele que os criou e destroem o que por meio d’Ele fizeram!

Eu, ó meu Deus e minha glória, até daqui tiro razões para cantar-te um hino, oferecendo um sacrifício de louvor ao meu Sacrificador, porque as belezas que passam da alma para as mãos do artista procedem daquela Beleza que está acima das nossas almas e pela qual a minha alma suspira de dia e de noite. Mas os artistas e amadores destas belezas externas tiram desta suma beleza apenas o critério para as apreciarem. Só não aprendem a regra para as usar bem! Contudo, esta também lá está. Porém, não a veem, porque, do contrário, não iriam tão longe, mas reservariam para ti toda a sua força, e não a dissipariam em fatigantes delícias.

Eu mesmo, apesar de expor e compreender claramente esta doutrina, também me deixo prender por estas belezas; mas tu, ó Senhor, libertas-me! Libertas-me, “porque a tua misericórdia está perante os meus olhos”. Caio miseravelmente, e tu me levantas misericordiosamente, umas vezes sem sofrimento, porque resvalei suavemente, outras, com dor, por ter caído desamparado no chão!

Esta tua beleza, contudo, acaso não se manifesta claramente a todos os que são dotados de sentidos perfeitos? Aos homens foi concedida a razão, capaz de julgar as mensagens dos sentidos… para perceberem “o Deus invisível através da compreensão das coisas criadas”. Mas, escravizando-se a estas pela paixão, já não as podem julgar… Na mesma passagem em que se diz que pelas coisas criadas Deus lhes manifestou as coisas invisíveis dele, para que as vissem com o entendimento, nela também se diz não haverem tributado culto a Deus justamente porque as honras divinas, devidas apenas ao Uno, as renderam também a outras coisas inconvenientes… Mas tu és a própria grandeza e a própria beleza.

Eu procurava os motivos pelos quais apreciava a beleza dos corpos, quer celestes, quer terrenos… Desse modo, elevei-me gradualmente do corpo até a alma, a qual sente por meio do corpo, e da alma até a sua força interior… Daí subi até ao poder de raciocínio, que julga conforme a percepção fornecida pelos sentidos corporais… Elevou-me até a inteligência… Foi assim, que, num lampejo de comovida intuição, ela chegou Àquele que é. Percebi então o invisível que em ti se torna compreensível através das coisas criadas. Mas não fui capaz de fixar o olhar em ti e, sentindo renascer minha fraqueza, voltei aos objetos habituais. Eu guardava comigo apenas uma recordação amorosa, e o desejo do alimento, cujo aroma sentira, mas que ainda não podia comer… Voltava as costas à luz, e a face aos objetos por ela iluminados; e, assim, o meu rosto, com que os via iluminados, não era ele próprio iluminado. Atraído por tua beleza, era logo afastado de ti por meu próprio peso, que me fazia precipitar gemendo por terra. Esse peso eram os meus hábitos carnais…

Aquela beleza sabe o momento em que há de se revelar… Manifeste-se quando lhe aprouver; confio-me totalmente à sua clemência e ao seu cuidado… Não falarei nada mais a respeito, senão quando contemplar aquela beleza…

Aterrorizado com os meus pecados e com o peso da minha miséria, tinha tomado em meu coração o projeto de fugir para a solidão. Mas tu me impediste e me fortaleceste… O verdadeiro mediador, que tua insondável misericórdia manifestou e enviou aos homens… O mediador entre Deus e os homens devia ter alguma semelhança com Deus e alguma semelhança com os homens. Se ele se parecesse apenas com os homens estaria longe de Deus, e se fosse semelhante só a Deus estaria longe dos homens, e assim não poderia ser verdadeiro mediador. Cristo foi chamado o Mediador entre Deus e os seres humanos. Ele permanece o Deus imortal e a humanidade mortal, como sendo Ele mesmo ambos, Deus e homem, Quem reconciliou humanidade com Deus. Ele continuou a ser o que era [Deus], mas tornou-se também o que não era [homem]. E a mesma pessoa é para nós, de uma só vez e para sempre, o centro de nossa fé em coisas que são criadas, e a verdade em coisas que são eternas… Ora, dado que a vida e paz são a recompensa da justiça, ele, por meio da justiça unida a Deus, anulou a morte dos ímpios justificados, compartilhando-a com eles… Quanto nos amaste!

Tu me chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a minha cegueira. Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz… Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei!

Mas que amo eu quando te amo? Não uma beleza corporal ou uma graça transitória, nem o esplendor da luz, tão cara a meus olhos, nem as doces melodias de variadas cantilenas, nem o suave odor das flores, dos unguentos, dos aromas, nem o maná ou o mel, nem os membros tão suscetíveis às carícias carnais. Nada disso eu amo, quando amo o meu Deus. E contudo amo a luz, a voz, o perfume, o alimento e o abraço do homem interior que habita em mim, onde para a minha alma brilha uma luz que nenhum espaço contém, onde ressoa uma voz que o tempo não destrói, de onde exala um perfume que o vento não dissipa, onde se saboreia uma comida que o apetite não diminui, onde se estabelece um contato que a sociedade não desfaz. Eis o que amo quando amo o meu Deus… Uma coisa só reconheço: é que tudo me corre mal fora de ti, e não só à minha volta, mas em mim mesmo, e que toda a riqueza, que não seja o meu Deus, para mim é indigência.

É tão grande a beleza da retidão, tão grande o enlevo da luz eterna, isto é, da Verdade e Sapiência incomutável, que mesmo se não fosse permitido permanecer nela mais que pelo espaço de um dia, só por isso se desprezariam com razão e merecidamente inumeráveis anos desta vida, embora cheios de delícias, e de superabundância de bens temporâneos… Tal bem aumenta em mim a cada dia, pois quanto mais aumenta a esperança de ver aquela beleza pela qual ferve-me um veemente desejo, tanto mais se convertem a ela todo o meu amor e deleite… Como será bela a luz dele, quando o virmos tal como ele é!

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1Santo Agostinho. A Doutrina Cristã. I, 5.
2MARITAIN, Jacques. Arte e Escolástica. Buenos Aires: La Espiga de Oro, 1945, p. 39.
3 SUASSUNA, Ariano. Iniciação à Estética. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2005, pp. 95-97.
4 A reação kantiana pretendeu deslocar o centro de existência da Beleza do objeto para o sujeito. Em sua Crítica do Juízo, a noção kantiana é que os juízos estéticos não emitem conceitos. O conteúdo do juízo estético é a reação do sujeito, e não a propriedade do objeto. A Beleza kantiana é um “universal sem conceito”; é um prazer desprovido de interesse, um prazer desinteressado e livre. Concluem alguns eruditos que, ao dizer que a Beleza não está no objeto mas, sim, é uma construção do espírito de quem olha para o objeto, Kant tornou impossível qualquer julgamento das obras de arte.
5ROSENFIELD, Kathrin H. Estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 17. Para uma análise resumida, porém compreensiva da estética agostiniana, recomendamos PULS, Maurício. Arquitetura e Filosofia. São Paulo: Annablume, 2006, pp. 187-205. Cf. online: http://books.google.com.br/books?id=HK_iYLYwWOIC
 6Santo Agostinho: Confissões. São Paulo: Paulus, 2002, 454p.; O Livre Arbítrio. Braga: Faculdade de Filosofia, 1990,  272p.; Solilóquios e Vida Feliz. São Paulo: Paulus, 1998, 164p.; A Cidade de Deus. 3 Volumes. São Paulo: Editora das Américas, 1961. A Doutrina Cristã. São Paulo: Edições Paulinas, 1991, 388p. Cf. também Needham. The Triumph of Grace; Augustine´s writings on salvation. Londres: Grace Publications Trust, 2000, 304p.

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