Teodoro de Mopsuéstia e a pregação expositiva na patrística – parte 1

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“Eles inventam contos tolos em suas próprias mentes e dão à sua insensatez o nome
de ‘alegoria’”. Teodoro de Mopsuéstia (350-428)

Creio que não se sabe de um tempo em que a Palavra de Deus foi tão pervertida e deturpada dentro das Igrejas Cristãs como na atualidade. É algo bastante triste, entre os estudiosos cristãos o fato de o Evangelho estar sendo tão desfigurado pela maioria dos pregadores em nossos dias.

Vivemos em um tempo de completo abandono da exegese bíblica, de falta de interesse por informações, estudo e conhecimento. Nisso, uma cegueira cada dia mais epidêmica se instala no povo cristão. A centralidade da Palavra nos cultos e na vida tem sido substituída por aquilo que rege o espírito de nosso tempo: o consumismo, o pragmatismo e o sensacionalismo.

Este artigo visa a chamar nossa atenção para a vida de Teodoro de Mopsuéstia e o modo como ele tratava as Escrituras, especialmente no tocante à sua exposição. Creio que um retorno à exposição bíblica seja um excelente meio de sanarmos a epidemia acima citada. Creio também que um breve estudo sobre Teodoro pode nos dar orientações saudáveis de como começarmos a erradicação da cegueira do povo, dos erros doutrinários e da falta de vida e piedade sinceras entre o povo cristão.

Este estudo se divide em duas partes. Neste primeiro, veremos um pouco sobre quem foi Teodoro, sobre a exegese bíblica na Escola de Antioquia, e sobre alguns princípios de interpretação usados na Patrística.

1. QUEM FOI TEODORO DE MOPSUÉSTIA
Teodoro de Mopsuéstia nasceu na cidade de Antioquia cerca do ano de 352. Era de uma família rica da cidade e, por isso, recebeu educação junto a Libânio, eminente retórico e filósofo pagão.1  Contemporâneo e amigo de João Crisóstomo, Teodoro, acompanhado de Crisóstomo, abandonou os estudos seculares para se dedicar aos estudos bíblicos junto a Diodoro de Tarso. Justo González afirma que Diodoro de Tarso “foi um dos mais destacados teólogos de seu tempo” e que, dentre seus discípulos mais famosos, encontram-se Teodoro de Mopsuéstia e João Crisóstomo.2
 
Houve um momento em que Teodoro, seduzido pela possibilidade de um casamento e também pelos caminhos de uma carreira jurídica, pensou em desistir dos estudos bíblicos. Desejando repentinamente abandonar a vida monástica, Teodoro o fez com as expectativas supracitadas. Seu amigo Crisóstomo enviou-lhe cartas a fim de que repensasse o que estava fazendo e voltasse à vida religiosa. Crisóstomo o admoestou através de duas cartas, após as quais Teodoro retornou. 

Matos diz que “é possível que ele [Teodoro] tenha permanecido como aluno de Diodoro até que este se tornou bispo de Tarso em 378”. Teodoro foi ordenado presbítero em Antioquia cerca do ano de 383 e, em seguida, sagrado bispo de Mopsuéstia, na Cilícia, em 392. Williston Walker afirma que Teodoro “ocupou a sé de Mopsuéstia durante 36 anos, até a sua morte em 428”4 . Segundo Walker, Teodoro foi o exegeta e teólogo mais capaz da escola de Antioquia.3

Segundo Matos, Teodoro é “considerado o maior comentarista bíblico da Igreja antiga”5.  Segundo Grant, Teodoro foi o “maior intérprete da Escola de Antioquia”6.  Segundo Christopher Hall, Teodoro é o notável exegeta antioquino.7

Dentre as obras literárias de Teodoro, encontram-se muitos comentários bíblicos e obras dogmáticas. Embora tenham sobrevivido apenas alguns comentários bíblicos, como o dos Profetas Menores, o das Dez Epístolas Menores de São Paulo e o do Evangelho de João, é possível que Teodoro tenha comentado quase todos os livros da Bíblia. Daí ele receber o título de “o intérprete” na igreja antiga, sendo considerado por muitos o mais brilhante exegeta da Escola
de Antioquia.

Durante sua vida, nenhum de seus ensinos foi questionado. Contudo, após a sua morte, como destaca Matos,

após o Concílio de Éfeso (431), o seu nome e suas doutrinas foram associados à pessoa de seu aluno Nestório. Sua eventual condenação resultou no desaparecimento da maior parte das suas obras, muitas delas conhecidas apenas em fragmentos e citações de outros autores.

Outras obras importantes foram De Incarnatione, destruída na Primeira Guerra Mundial, cartas enviadas a Ário, Eunômio e Apolinário, conhecidas através de fragmentos apenas, Disputa com os Macedonianos e as Homilias Catequéticas

Vejamos, portanto, como o maior exegeta da escola de Antioquia tratava as Escrituras. Vejamos como Teodoro lidava com a questão hermenêutica diante da exegese da escola de Alexandria que, segundo o próprio Teodoro, “pervertia o significado das divinas Escrituras”.10

2. EXEGESE BÍBLICA EM TEODORO E NA CIDADE DE ANTIOQUIA
André Benoit, tratando de patrística e exegese em A atualidade dos Pais da Igreja, questiona se é possível que a exegese dos Pais tenha alguma relevância para os dias de hoje11.  Sua conclusão é que sim, e não só na questão exegética. Em muitas outras questões, os Pais se constituem numa fonte riquíssima para melhor compreensão do texto, do contexto, da vida e do espírito do Novo Testamento. Benoit aponta que o interesse primordial dos Pais estava em escrever “obras dedicadas à explicação da Escritura”. 12

Embora há tempos o método alegórico já existisse, é nos dias contemporâneos a Teodoro que ele toma proporções nunca antes alcançadas dentro do cristianismo. As duas grandes diferenças entre a Escola de Alexandria e a Escola de Antioquia estavam na questão hermenêutica. Como Matos afirma, “os alexandrinos eram partidários do método alegórico de interpretação bíblica”, método desenvolvido no primeiro século da era cristã pelo estudioso judeu Filo.13  A preocupação deste era comparar a tradição religiosa judaica com a cultura helenística, tentando mostrar que não havia incompatibilidades entre o platonismo e as Escrituras. Filo buscava, nas Escrituras, um sentido mais espiritual ou alegórico, sem tantas preocupações com o sentido histórico e literal. 15

Paul Tillich, em História do pensamento cristão, aponta que o interesse da Escola de Antioquia estava mais voltado para a filologia, ou seja, para o desenvolvimento histórico e a estrutura das línguas originais. Tillich afirma que, em Antioquia, o interesse estava em “alcançar uma exata interpretação da pessoa histórica de Cristo”.

3. OS PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO
O sentido literal (normal) do texto

Embora seja um anacronismo chamar a exegese de Teodoro e da Escola de Antioquia de gramático-histórica, visto que esse termo só aparece após a Reforma Protestante, esse foi o método a rigor utilizado por eles.16  Em seu comentário de Gálatas 4.24: “estas coisas são alegóricas; porque estas mulheres são duas alianças; uma, na verdade, se refere ao monte Sinai, que gera para escravidão; esta é Hagar”, Teodoro analisa a importância de se valorizar a história em si por trás desse texto. Teodoro se preocupa em alcançar o sentido do texto buscando a intenção original do seu autor. Há a preocupação com o sentido óbvio das palavras, as quais devem ser analisadas em seu contexto histórico.

Quanto ao texto bíblico acima mencionado, Teodoro afirma, acerca dos alegoristas, o seguinte:  

Eles inventam contos tolos em suas próprias mentes e dão à sua insensatez o nome de ‘alegoria’. Usando as palavras do apóstolo, eles imaginam que acharam um caminho para escavar o significado de tudo nas Escrituras… usando a expressão do apóstolo ‘alegórico’. Eles não compreendem quanta diferença há entre seu uso do termo e o uso apostólico do termo. Pois o apóstolo não destrói a história; ele não se livra do que já aconteceu. Ele mostra as coisas como elas aconteceram no passado e usa a história do que aconteceu em suporte ao seu próprio propósito. 17

Para Teodoro, os alegoristas, especialmente os de Alexandria, que tendiam a desacreditar a historicidade das narrativas bíblicas, acabariam ficando sem nenhuma história para sustentar sua fé. “O que eu gostaria de dizer, em resposta a eles, é que, uma vez que eles começam a remover partes da história, eles acabarão ficando sem nenhuma história”.
A busca, então, pelo sentido histórico estava presente em Teodoro e Antioquia. Percebe-se preocupação em ser sensível e estar atento ao sentido normal do texto, percebendo-o sem abstrações desnorteadas e descomprometidas.

A intenção autoral
Este princípio de interpretação seguido pelos antioquinos visava a alcançar a intenção original do autor do texto bíblico. Daí a importância que davam às línguas originais e ao sentido histórico das palavras em seu contexto original. 

Enquanto os escritores da Escola de Alexandria alegoricamente buscavam encontrar Cristo em cada palavra, evento, número, personagem ou instituição do Antigo Testamento, os escritores da Escola de Antioquia buscavam compreender bem o sentido de cada palavra para descobrir qual a intenção do autor ao escrevê-las. Percebendo que a intenção do autor era falar do Messias, e, também, caso as mesmas fossem citadas no Novo Testamento, os antioquinos as consideravam como uma referência a Cristo no Antigo Testamento.

Lopes afirma que Teodoro de Mopsuéstia foi “o intérprete que seguiu mais rigidamente os princípios de interpretação da escola de Antioquia quanto à abordagem do Antigo Testamento”. 

Posto isso, vê-se quanto valor era dado a encontrar a intenção original do autor. Teodoro buscava ser sensível e atento ao sentido normal do texto, buscava compreender toda a historicidade dos fatos, a intenção original do autor, buscando compreender profundamente as palavras originais em seu contexto histórico e, por fim, retirava o sentido espiritual do texto, sua mensagem mais ampla, ou a theoria, como a chamava.

No próximo artigo sobre Teodoro de Mopsuéstia e a exposição bíblica, veremos mais acerca dessa theoria, além de outros princípios de interpretação usados amplamente na Igreja Primitiva ou na Patrística. Concluiremos com algumas reflexões sobre como seria saudável um retorno aos Pais na questão da exposição bíblica. Até lá!

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BIBLIOGRAFIA

1 MATOS, Alderi Souza de. Elementos da teologia patrística. São Paulo, 2010. Apostila do curso de Mestrado em   
    Teologia do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, p. 21.
2 GONZÁLEZ, Justo L. Historia del pensamiento cristiano. Buenos Aires: Methopress, 1965, p. 345.
3 MATOS, Elementos da teologia patrística, p. 21.
4 WALKER, Williston. História da Igreja Cristã. São Paulo: ASTE, 1967, p. 194.
5 MATOS, Alderi Souza de. Fundamentos da teologia histórica. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 71.
6 GRANT, A short history of the interpretation of the Bible, p. 66. Minha tradução.
7 HALL, Christopher A. Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja. Viçosa: Ultimato, 2007, p. 185.
8 MATOS, Elementos da teologia patrística, p. 21.
9 Ibid., p. 21.
10 Theodore of Mopsuestia. Commentary on Minor Epistles of St. Paul. In: WILES, Maurice; SANTER, Mark. Documents in  
   early christian thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1975, p.151.
11 BENOIT, André. A atualidade dos Pais da Igreja. São Paulo: ASTE, 1966, p. 69.
12 Ibid., p. 69.
13  MATOS, Fundamentos da teologia histórica, p. 71.
14 MATOS, Fundamentos da teologia histórica, p. 71.
15 TILLICH, Paul. História do pensamento cristão. São Paulo: ASTE, 2004, p. 96.
16 LOPES, A Bíblia e seus intérpretes, p.135.
17 Theodore of Mopsuestia. Commentary on Minor Epistles of St. Paul. In: WILES, Documents in early christian thought, p. 18 151. Minha tradução.
19 Theodore of Mopsuestia. Commentary on Minor Epistles of St. Paul. In: WILES, Documents in early christian thought, p. 152. Minha tradução.
19 LOPES, A Bíblia e seus intérpretes, p. 136.
20 Ibid., p. 137.

1 COMENTÁRIO

  1. O problema de interpretação, sempre ter  como solução homens guiados por um espírito piedoso e devoção sincera a Deus. Me incomoda ver a maneira que a escritura ‚ tratado no evangelicalismo, mas Graças a Deus e sua misericórdia nunca h  de faltar homens para defender a sã doutrina de modo digno e derrubar os sofismas levantados contra a verdadeira devoção. Agradeço pelo artigo, mal posso esperar pela continuação.

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