A saúde doutrinária da igreja depende de uma boa compreensão e exposição da revelação bíblica e a Bíblia, como um todo, rege o conteúdo do ensino na igreja. Infelizmente, essa verdade tem sido constantemente desconsiderada. Desprezando a ampla gama de assuntos que constam na Bíblia, muitos púlpitos acabam escolhendo temas “preferidos”, com isso, assuntos cruciais para a fé cristã são cada vez mais deixados de lado. É o que acontece com a Trindade. São cada vez mais raros e pouco relevantes os estudos e exposições sobre essa doutrina.
Isso não é de hoje. Em 1967, Karl Rahner afirmou que: “Se tivermos de abolir a doutrina da Trindade porque concluímos que é falsa, isso praticamente não afetaria em nada a maior parte da literatura religiosa”. Rahner entende que, caso o tema Trindade desaparecesse da literatura cristã, isso traria pouco impacto para a vida dos cristãos comuns, pois a forma como essa doutrina é tratada a tornou irrelevante para muita gente.
Foi tentando contribuir para a correção desse problema que, no ano de 2003, o professor Robert Letham escreveu o livro “A Trindade: na escritura, história, teologia e adoração”. Robert Letham é mestre em Estudos da Religião e em Teologia, pelo Westminster Theological Seminary, e Doutor em Filosofia pela University of Aberdeen. Ele leciona Teologia Histórica e Sistemática na Union School of Theology, no País de Gales, e é pastor há mais de 22 anos.
O lançamento do livro foi um sucesso e acabou conferindo ao autor o prêmio literário Gold Medallion Book Award de 2005. Quinze anos após o lançamento, o Dr. Letham decidiu fazer uma revisão ampliada que foi publicada no Brasil recentemente por Edições Vida Nova. O livro é dividido em quatro partes:
Fundamentos Bíblicos
Desenvolvimento Histórico
Debate Contemporâneo
Questões Fundamentais
De forma geral, a intenção do Dr. Letham é mostrar como a doutrina da Trindade é crucial para a vida da igreja em geral. Ele desmistifica a ideia de que se trata de um assunto complexo, que deve ser deixado apenas para as salas de aula dos seminários. Ele mostra que a doutrina da Trindade deve reger a saúde doutrinária da igreja, impactando áreas como: a obra missionária, a oração individual e comunitária e a adoração ao Senhor.
Introdução
Na introdução do livro, o autor cita diversas dificuldades para lidar com o tema. Alguns autores da história da teologia tiveram que usar termos extrabíblicos para defender a linguagem bíblica da Trindade. Isso se deu por causa dos hereges que faziam um uso distorcido dos termos escriturísticos para propagar suas falsas doutrinas.
Impulsionados pelo desejo de combater os pensamentos heréticos relacionados com o assunto, a igreja precisou se posicionar desde o Concílio de Nicéia (325 d.C.). Após isso, grandes nomes da teologia cristã escreveram sobre o assunto, com destaque para Atanásio, Agostinho e Tomás de Aquino.
Infelizmente, o número de teólogos que deu ênfase considerável ao assunto caiu drasticamente nos anos mais recentes. O que é mais comum de se encontrar é uma ênfase muito forte no Pai e em seus atributos, ou no Filho e em sua dupla natureza, com o aspecto trinitário sendo relegado a poucas páginas ou mencionado apenas de forma en passant. É nesse contexto que o autor tece críticas a grandes teólogos como Charles Hodge, Louis Berkhof, Friedrich Schleiermacher, B.B. Warfield e até mesmo J.I. Packer pela forma como lidaram com o tema da Trindade em seus escritos. O autor ainda critica os adeptos do biblicismo, que desprezam a doutrina da Trindade, acusando-a de ser uma especulação contrária à Palavra de Deus.
Fundamentos bíblicos
Na primeira parte, o Dr. Robert Letham analisa o Antigo Testamento para verificar se há alguma referência à Trindade nessa parte da Bíblia. Ele se preocupa em fazer uma distinção entre a doutrina da Trindade e a Trindade em si. Ele diz: “Deus sempre é, e Ele sempre é Trindade. Desde a eternidade Ele é Pai, Filho e Espírito Santo, um ser indivisível, três pessoas irredutíveis” (p. 47). Ele então segue e afirma: “De outro modo, a doutrina da Trindade é a formulação desenvolvida do que a igreja entende ter Deus revelado na história da revelação e da redenção, conforme registrado na Escritura” (p. 47). Seu ponto é mostrar que a Trindade é uma realidade que independe da interpretação que se tenha dela. Em outras palavras, ela não depende de uma certa formulação para ser; ela é. A doutrina é simplesmente a forma como a teologia a compreende e explica.
Ele passa a analisar o primeiro capítulo de Gênesis, focando no ato criativo de Deus como algo claramente trinitário. O versículo 26 é amplamente usado nessa discussão: “Façamos o homem à nossa imagem”. Há quem interprete que nesse texto Deus está se dirigindo aos anjos, o que faria o homem ter sido criado como os anjos. Mas o Dr. Letham faz objeção a isso, afirmando que não há nenhuma menção a esse fato em nenhum local das Escrituras. Há quem entenda que esse texto se refira a um plural majestático, uma figura de linguagem que diz respeito à dignidade e à grandeza divina. Mas o autor também faz objeção, argumentando que plurais majestáticos raramente são usados com verbos, se é que são usados assim. Há também quem interprete como um plural autodeliberativo, mas segundo o autor, não há paralelos suficientes para respaldar tal interpretação. Ele então conclui sugerindo que Gênesis 1.26 nos dá base, para, a partir da revelação presente do Novo Testamento, olharmos retrospectivamente para a criação do homem e identificar ali uma referência à Trindade. Ele diz: “No que se refere ao sensus plenior (o sentido ou significado pleno) da Escritura, as palavras de Deus atestam aqui uma pluralidade no ser divino, expressa posteriormente pela doutrina da Trindade. Os leitores originais não teriam compreendido isso, mas nós, que temos a trama toda revelada, podemos revisitar essa passagem e identificar as pistas ali” (p. 49).
A próxima análise é sobre as aparições do Anjo do Senhor. Para o autor, tais aparições nas narrativas bíblicas deixam explícitas que não se trata de um anjo comum. Dessa forma, esse anjo é identificado como o próprio Deus, o que indica uma pluralidade divina. Ele faz aqui uma relação entre as aparições do Anjo do Senhor e as teofanias. Comentando o texto de Gênesis 18 e 19, ele diz: “Aqui temos uma justaposição desconcertante e persistente de homens, anjos e o Senhor. É como se as fronteiras houvessem desaparecido. […] A questão é que o Deus único se apresenta de um modo que gera dúvidas” (p. 52). Agostinho supõe que essa poderia ser uma aparição do Cristo pré-encarnado.
Outro aspecto interessante analisado no livro é o conceito de exegese prosopológica. Trata-se de um método utilizado, sobretudo, por alguns Pais da Igreja, para analisar a forma como Cristo e os autores do Novo Testamento interpretaram certos textos do Antigo Testamento, vendo em Jesus seu cumprimento real e mostrando a impossibilidade de tal cumprimento se dar em outros além de Cristo. Um exemplo é o Salmos 110.1: “O Senhor disse ao meu Senhor: assenta-te à minha direita, até que eu ponha teus inimigos debaixo dos teus pés”. Todos os autores neotestamentários que fizeram uso dessa passagem apontaram para Cristo como o seu cumprimento. E fica evidente, a impossibilidade de tal cumprimento se dar em qualquer outro que não ele. O argumento do Dr. Letham com isso, é que tal método exegético corrobora a ideia da Trindade presente nos mais diversos textos veterotestamentários.
Ainda nessa primeira parte, no capítulo denominado “Jesus e o Pai”, o autor enfatiza a relação entre o Pai e o Filho. Ele se vale de diversos textos em que Jesus está realizando obras que são atribuídas ao Pai no Antigo Testamento, o que atesta a divindade de Cristo. Para isso, ele investiga textos que apontam Jesus como Criador, Juiz, Salvador, dentre outros. Ele também aponta a adoração a Jesus como algo legitimado no Novo Testamento. Mostra Estevão orando a Jesus em Atos 7.59-60. E conclui dando destaque especial à preexistência de Cristo mencionada em Hebreus 1.3-4; 1Pedro 1.20; João 1.1-4; Apocalipse 1.17 e outros mais.
Há também um capítulo específico sobre o Espírito Santo. Nele, o autor destaca o desenvolvimento do Binitarismo e do Trinitarismo. Ele argumenta, com base no trabalho de Larry Hurtado, que “Quase não há dúvida de que o foco explícito da adoração no Novo Testamento era Binitário. A importância evidente de Jesus Cristo e o impacto de sua ressurreição colocaram sob os holofotes uma concentração unificada de adoração a Deus Pai e ao Senhor Jesus Cristo” (p. 84). Mais adiante, ele diz: “O status do Cristo ressurreto está claramente no âmago da atenção da igreja. […] Isso está totalmente em sintonia com a atividade do Espírito Santo, que não chama a atenção para si mesmo, mas para Cristo” (p. 86). Seu ponto não é negar que houvesse adoração ao Espírito Santo ou negar que houvesse uma consciência de sua divindade no Novo Testamento, mas sim evidenciar os papéis distintos de cada uma das pessoas da Trindade, o que, por si só, é uma prova da própria Trindade. O Dr. Letham então conclui mostrando que há um número maior de referências ao Espírito Santo no Novo Testamento em comparação com o Antigo Testamento. Somente Paulo menciona o Espírito Santo mais vezes que o Antigo Testamento inteiro.
Desenvolvimento histórico
A segunda parte é a maior do livro. Seu foco é analisar o desenvolvimento histórico da doutrina da Trindade e o autor já começa com o texto integral do Credo Niceno-Constantinopolitano de 381 d.C. Esse Credo possui grande importância para a História da Teologia, pois, dentre outras coisas, ele amplia a concepção do Credo Niceno no que diz respeito à divindade, procedência e adoração ao Espírito Santo.
Os Pais Apologistas foram os primeiros a investigar a relação entre o Filho pré-existente e o Pai. Eles usaram ideias originadas em Filo de Alexandria e enfatizaram os elementos de unicidade eterna com o Pai, como Palavra imanente em Deus, e sua manifestação na história humana como Palavra emitida ou expressa.
Após isso, o autor investiga a contribuição de Ireneu de Lião (130 a 200 d.C.). Ireneu combateu o herege Marcião e os gnósticos em suas concepções distorcidas sobre Deus. Apesar de não explicar a relação entre as três pessoas da Trindade, ele provou a sua existência a partir de eventos da história humana. Deu ênfase especial ao batismo de Jesus, onde o Espírito desceu sobre o Filho, e este o derramou, posteriormente, sobre seus seguidores. Também são analisadas as contribuições de Tertuliano (160 a 220) e Orígenes (185 a 254).
Um capítulo específico é destinado a falar sobre a controvérsia ariana e as controvérsias terminológicas relacionadas à Trindade. Termos como hypostasis/ousia, homoousios, genetos/gennetos, agenetos/agennetos são discutidos em seu devido contexto no período niceno. E no pós-niceno são discutidos: anomeanos e eunomianos, homoousianos e homoiosianos.
Há também um capítulo específico para tratar sobre a contribuição de Atanásio, arcebispo de Alexandria. Mesmo antes de haver uma ortodoxia definitivamente estabelecida, o trinitarismo atanasiano é evidente na forma como esse gigante da teologia trabalhou com o texto sagrado. Sua teologia envolvia três eixos básicos: criação, encarnação e divinização. Ele entendia que Jesus Cristo foi o agente que fez todas as coisas ex nihilo. Ele também entendia que a encarnação era o meio pelo qual o Senhor leva os pecadores à incorruptibilidade e acreditava que: “Ao tornar-se homem, Cristo recebeu e assumiu o que é nosso e, ao fazê-lo, santificou (divinizou-o), tornando-o adequado para a comunhão com Deus. Em troca, ele concedeu à humanidade a graça de participar da natureza divina. Essa troca na encarnação é a base para o ensino de Atanásio sobre a divinização (theosis): ‘Ele se fez carne para que fôssemos feitos Deus’” (p. 161).
Os demais capítulos da segunda parte se ocupam em analisar as obras dos capadócios, Agostinho, o cisma entre o Oriente e Ocidente ocasionado pela cláusula filioque. E um capítulo específico é destinado à contribuição de João Calvino nas Institutas da Religião Cristã, versão de 1559. O Dr. Letham enfatiza que a exposição trinitária de Calvino é fundamentada na Bíblia em linguagem objetiva que evita, em grande medida, a terminologia filosófica. O ponto fundamental de sua argumentação está na defesa da divindade do Filho e do Espírito Santo. A discussão que se segue é sobre o quanto o trinitarismo de Calvino é inovador. Há quem afirme que ele se afastou do trinitarismo niceno, enquanto outros alegam que seu trinitarismo foi exclusivamente bíblico. A conclusão do Dr. Letham é que a atenção que Calvino dedicou às três pessoas o coloca mais perto da tradição Oriental que da Ocidental. Mas no fundo, ele foi um defensor profundamente conservador do trinitarismo.
Debate contemporâneo
O Dr. Letham afirma que a partir do século 17, por causa do Iluminismo, a doutrina da Trindade sofreu severos ataques. O que gerou uma série de réplicas às críticas que foram feitas. Ainda assim, o paradigma pós-iluminista passou do estudo de Deus para o estudo do homem. A Bíblia continuou sendo atacada, e os estudiosos abandonaram a eternidade para dar ênfase à dimensão histórica dos estudos bíblicos. Isso fez com que a relevância das Escrituras fosse exclusiva a esse mundo, o que faz com que a revelação divina não revele Deus necessariamente como ele é eternamente em si mesmo.
Apesar disso, os raios de esperança brilharam, sobretudo com o teólogo suíço, Karl Barth, em sua célebre obra “Church Dogmatics”, que, segundo o tradutor da primeira metade da obra, trata-se da análise mais importante sobre a Trindade desde Agostinho. Mesmo considerando essas palavras como um exagero, o Dr. Letham afirma que ninguém duvida que a obra de Barth é de importância seminal. O autor segue então numa investigação minuciosa do pensamento trinitariano de Barth.
Ele também analisa em um capítulo separado as obras de Karl Rahner, Jürgen Moltmann e Wolfhart Pannenberg, apresentando críticas à forma como os dois últimos lidaram com a relação entre Trindade econômica e imanente.
Algo que chama a atenção de qualquer teólogo e estudante de teologia e que não se encontra facilmente em outras obras, é o capítulo destinado a analisar o pensamento Oriental contemporâneo sobre a Trindade. Na verdade, pouca coisa chega até nós sobre a teologia Oriental contemporânea, e o autor traz boas contribuições para amenizar essa carência. Ele analisa três teólogos: Sergii Bulgakov, Vladimir Lossky e Dumitru Staniloae.
Após a Revolução Bolchevique de 1917, muitos intelectuais orientais de destaque tiveram que se exilar no Ocidente. Isso gerou uma tensão entre o pensamento Ortodoxo e o Ocidental. Isso abriu as portas para a teologia oriental no Ocidente e fez com que sua forma de interpretar as Escrituras chamasse a atenção.
O autor conclui tecendo críticas ao pouco desenvolvimento epistemológico em relação à Trindade na teologia oriental, sobretudo na distinção feita entre essência e energias, identificando uma distinção real entre elas, o que coloca em xeque a simplicidade de Deus, pressupondo uma variedade de níveis em Deus e separando as ações de Deus do seu ser.
Questões fundamentais
A última parte funciona como uma espécie de aplicação do que foi apresentado até agora. O autor começa tratando sobre a Trindade e a Encarnação. Ele expõe de forma clara e objetiva a noção de um ser, três pessoas. Discute a validade do uso do termo “pessoa” para se referir ao Pai, Filho e Espírito Santo. Aponta a indivisibilidade da essência divina, fala sobre a comunhão dinâmica presente na divindade e defende uma ordem específica entre as pessoas da Trindade, chamando a atenção para não confundir isso com uma hierarquização trinitária.
Há um capítulo especial sobre a Trindade, a adoração e a oração, mostrando como a base da adoração da igreja segue uma estrutura trinitária: “A adoração da igreja está fundamentada em quem Deus é e no que ele fez. […] O Pai enviou o Filho por nós e para nossa salvação. […] O Pai, juntamente com o Filho, enviou o Espírito Santo para habitar a igreja. O ministério do Espírito Santo é o de falar de Cristo, o Filho” (Pág. 488). O autor ainda fala sobre a Trindade e as missões, mostrando como a visão bíblica é fundamental para entender Deus, em contraste com visões islâmicas e das culturas pós-modernas.
Conclusão
Estamos diante de uma obra monumental que é inigualável do ponto de vista da abrangência e da profundidade em que trata de cada assunto. As referências bíblicas são vastas e fundamentais para compreender corretamente a doutrina.
A divisão das partes e dos capítulos é muito bem-feita, deixando o fundamento da Escritura em primeiro lugar. Após isso, o leitor atento já consegue identificar os problemas nas posições heréticas que são apresentadas. O debate histórico é relevante e contribui para percebermos que houve sim um desenvolvimento na forma de entender e explicar a Trindade, ao mesmo tempo em que nos dá segurança de que essa doutrina acompanha a igreja do Senhor por toda a sua existência e é vital para compreendermos de fato o nosso Deus como Ele se revelou a nós nas páginas da Bíblia Sagrada.
Mais uma obra excelente de Edições Vida Nova, que todo cristão, sobretudo pastores, seminaristas e professores, precisam ter em sua estante como obra de referência no assunto. Não apenas para entender melhor, como para levar novamente a Trindade para seus púlpitos, suas salas de aula, suas orações e seus momentos de adoração a Deus.
[…] Fonte: https://teologiabrasileira.com.br/resenha-a-trindade/ […]