Os PDFs da discórdia

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Os tempos realmente são sombrios. Meu clamor, e não é covardia, é que o Filho do homem volte logo, pois está bem difícil ser embaixador neste mundo caído. Ainda mais quando olhamos para a Igreja e vemos muitos cristãos defendendo com unhas e dentes atitudes que não passam pelo crivo mínimo da ética comum.

O mais recente pomo de discórdia é a história dos “PDFs”. Ao arrepio da ética e da lei, diversos estudiosos de teologia e leitores de livros cristãos se reúnem em grupos de WhatsApp e Telegram com o intuito de compartilhar arquivos digitalizados de grandes obras de teologia e assuntos cristãos do Brasil. Algumas obras de autores como Augustus Nicodemus, Franklin Ferreira, Renato Vargens e outros são livremente distribuídas entre a turminha ao sabor da velocidade da banda larga de cada um.

Até aí temos uma prática imoral e ilegal. O que mais espanta, porém, é que, uma vez descobertos, ao invés de correrem em prantos e dobrarem seus joelhos em franco arrependimento, simplesmente batem no peito e clamam pelo “direito ao pecado”, torcem a verdade em mentira, e, de quebra, apedrejam quem denuncia esta prática, em especial os autores, que apenas querem receber o fruto de seu trabalho. A cena é dantesca, mas é real. Também por isto, Maranata, ora vem Senhor Jesus!

Por que a cena é dantesca? Vamos explicar. A questão toda aqui é se é lícito e moral baixar e distribuir obras digitalizadas por aí, ao sabor do vento, enquanto as mesmas são vendidas em livrarias, sites de editoras e, inclusive, em e-books. Consideremos dois aspectos: a) legal b) teológico. Passemos ao legal.

Afinal de contas, o que é direito autoral e como ele funciona na Terra Brasilis. No dizer de Pontes de Miranda (para quem não é do Direito, Pontes é uma espécie de “papa” do Direito Civil brasileiro), “os direitos autorais são um feixe de direitos”. Assim, não existe apenas “um” direito do autor; sua natureza jurídica é híbrida, pois, assim como a existência humana é multicomplexa, o que disciplina a criação do espírito também o é. Desta forma, nasce uma tríade de direitos quando se fala em direito autoral, que também, na lição de Pontes, podem ser definidos como (A) direito autoral de personalidade, ou direito moral; (B) direito autoral de exploração; e (C) direito autoral de nominação.

Neste passo, é  importante ressaltar que, da tríade de natureza jurídica deste “Direito Autoral”, o direito de personalidade, ou moral, é o que tem a precedência sobre os demais. É inalienável, irrenunciável. É a maneira de se perpetuar a memória de seu criador, que, no dizer conhecido, “vive” na sua obra. Vilipendiar este direito equivale à impossível tentativa de viver a vida de outrem.

O direito autoral está intimamente ligado com a Dignidade Humana e não se trata de um “direitinho”, mas de uma garantia constitucional, protegida pela nossa Constituição e por diversos tratados internacionais.

Constituição brasileira:

Art. 5. (…)

XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;

 Declaração Universal dos Direitos do Homem:

XXVII 2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor.

 Acima citamos apenas a Constituição Brasileira e a Declaração Universal dos Direitos do homem para não sermos prolixos, todavia a proteção se estende à Convenção de Roma, Convenção de Berna e diversas leis nacionais.

O fato é que o autor “vive” na sua obra e a partir dela também decorre os direitos patrimoniais, ou seja, o direito de receber por tê-la criado. Ninguém pode, não importa a boa intenção, distribuir cópias sem a prévia autorização do autor, que é o dono da obra. Tá na lei, não sou eu que estou dizendo:

 Art. 28. Cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica.

 Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:

I – a reprodução parcial ou integral;

(…)

VII – a distribuição para oferta de obras ou produções mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para percebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda, e nos casos em que o acesso às obras ou produções se faça por qualquer sistema que importe em pagamento pelo usuário;

(…)

X – quaisquer outras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas.

 A distribuição da obra é direito exclusivo do autor e ninguém pode fazê-la sem sua expressa autorização. Mas e esta galera dos grupos de WhatsApp e Telegram que estão distribuindo a obra gratuitamente por aí, quais os ilícitos que estão cometendo?

O ilícito civil é pacífico. A lei e a Constituição preveem expressamente que o direito de distribuição da obra é exclusivo do autor e somente pode ser feito a partir de sua expressa autorização. Assim, aqui temos um ilícito civil, não importa a gratuidade da distribuição. Uma vez que a atividade de distribuição gratuita, sem autorização prévia, é ilegal, nasce o direito de indenizar. A indenização deve cobrir o valor que o autor poderia ter auferido se a distribuição gratuita não tivesse ocorrido. A lei do direito autoral prevê indenização no valor das cópias distribuídas ou calculado em três mil exemplares se o número for desconhecido:

 Art. 102. O titular cuja obra seja fraudulentamente reproduzida, divulgada ou de qualquer forma utilizada, poderá requerer a apreensão dos exemplares reproduzidos ou a suspensão da divulgação, sem prejuízo da indenização cabível.

Art. 103. Quem editar obra literária, artística ou científica, sem autorização do titular, perderá para este os exemplares que se apreenderem e pagar-lhe-á o preço dos que tiver vendido.

Parágrafo único. Não se conhecendo o número de exemplares que constituem a edição fraudulenta, pagará o transgressor o valor de três mil exemplares, além dos apreendidos.

E quem recebe o PDF ilegal? Incorre nas mesmas penas de quem distribui, sendo seu solidário. Ou seja, se o autor da obra não identificar o distribuidor ilegal, tem o direito de acionar quem a recebeu.

 Art. 104. Quem vender, expuser a venda, ocultar, adquirir, distribuir, tiver em depósito ou utilizar obra ou fonograma reproduzidos com fraude, com a finalidade de vender, obter ganho, vantagem, proveito, lucro direto ou indireto, para si ou para outrem, será solidariamente responsável com o contrafator, nos termos dos artigos precedentes, respondendo como contrafatores o importador e o distribuidor em caso de reprodução no exterior.

A lei diz: “Quem ADQUIRIR, com a finalidade de vantagem, proveito, para si, será solidariamente responsável com o contrafator”. Veja, o seminarista ou estudante de teologia que adquire a obra gratuitamente obtém vantagem e proveito para si, pois deixa de pagar o valor da obra! Logo, responde solidariamente com o contrafator.

E o crime? O que diz a lei? A previsão do crime de violação dos direitos autorais está no artigo 184 do Código Penal, que diz o seguinte:

 Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa

§ 1º. Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente.

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

§ 2º. Na mesma pena do § 1º incorre quem, com o intuito de lucro direto ou indireto, distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire, oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda, aluga original ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos direitos ou de quem os represente.

A intenção do legislador penal foi de punir aquele que obtém lucro direto ou indireto com a distribuição ilegal das obras. No caso dos PDFs da discórdia, parece-me que o distribuidor, aquele que criou o grupo e o administra, incide, em tese, no crime previsto, pois certamente obtém lucro com tal distribuição, nem que seja de forma indireta ao promover seu nome, blog, site, monetizando, posteriormente tais canais. Aquele que recebe também, em tese, comete o crime, pois de certa forma está tendo um lucro direto, pois não está pagando o preço que deveria pagar pela obra.

Há quem vai invocar também o § 4º do mesmo art. 184 para tentar aliviar a consciência. Diz o texto:

§ 4º. O disposto nos §§ 1o, 2o e 3o não se aplica quando se tratar de exceção ou limitação ao direito de autor ou os que lhe são conexos, em conformidade com o previsto na Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, nem a cópia de obra intelectual ou fonograma, em um só exemplar, para uso privado do copista, sem intuito de lucro direto ou indireto.

Ou seja, somente a qualificadora do crime não se aplica para quem comete o “pecadinho” de baixar somente um exemplar. Mas o crime previsto na cabeça (chamamos em juridiquês de caput) do artigo permanece! É imoral, ilegal, e, sim, CRIME! E, ainda que não fosse crime, a conduta ilícita sob o ponto de vista civil é plenamente passível de responsabilização e indenização.

Passemos ao que a Bíblia diz.

Não queremos nos aprofundar neste tema, pois os leitores da Revista Teologia Brasileira e os infratores dos direitos autorais, conhecem muito bem os textos bíblicos. Mas o que nos deixou estarrecidos foi o mantra repetido do seguinte versículo bíblico: Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, limpai os leprosos, expeli os demônios; de graça recebestes, de graça dai. Mateus 10.8.

Ora, qualquer novato em teologia sabe que um princípio basilar de exegese é que a Bíblia deve ser interpretada pela própria Bíblia e que um versículo isolado não pode ser tomado isoladamente como sede de doutrina. Imagine um doido qualquer ensinando “vai, levanta, mata e come” (At. 10.13) ou “vai e te enforca” (Mt. 27.5)! O contexto de Mateus 10 é do chamado divino de cura e expulsão de demônios e que os apóstolos não deveriam cobrar por tal chamado como faziam os pagãos da época e até hoje encontramos pessoas que fazem isto mediante paga. Todavia o trabalho e o labor em prol do evangelho deve ser remunerado, até porque o pregador necessita dele para sobreviver. São diversas as passagens bíblicas que incentivam este pagamento: 2 Coríntios 11:8, Filipenses 4:15-16, 1 Timóteo 5:17-18, 1 Coríntios 9:13-14.

Em outras palavras, usar o texto “de graça recebestes, de graça dai” é ou um total desconhecimento bíblico ou uma grande desonestidade intelectual mesmo. Lembre-se que a produção de uma obra requer tempo, muito tempo. Estudo, pesquisa e reflexão. Depois, todo um processo de cessão de direitos à editora, que investe um “caminhão” de dinheiro da diagramação, revisão, editoração, impressão, distribuição e marketing. Todo este processo custa muito dinheiro e a venda da obra apenas retroalimenta este processo. O lucro da editora e do autor são mínimos. Basta ver as diversas editoras que estão quebrando em nosso país.

Além de fraudar o direito autoral, cometer um ilícito civil e penal, ao distribuir e receber gratuitamente obras, você está prejudicando toda uma cadeia de produção de obras que um dia poderá deixar de existir resultando na impossibilidade de pessoas como Augustus Nicodemus, Franklin Ferreira e Renato Vargens de produzir, pois não existirá ninguém mais para publicar e distribuir. Quem serão os prejudicados? Todos nós, inclusive você que hoje se gaba por receber uma obra sem pagar.

Por fim, não me venha com o discurso pífio de que não possui condições financeiras para comprar uma obra. Se isto for verdade as procure em uma biblioteca, peça emprestado, envie e-mails aos autores e casas publicadoras explicando sua situação. Mas de forma nenhuma use um argumento que valide uma imoralidade e um ilícito civil.

Para terminar: imagine você trabalhando oito horas por dia para receber seu salário, e, no final do mês, seu empregador dissesse: “não posso lhe pagar, se pagar vou prejudicar meu sustento. Ah, e você não pode reclamar, pois de graça recebeste, de graça dai!”

O tempora! O mores!

"Direito Religioso" aborda questões teóricas profundas sem perder o olhar prático da experiência profissional dos autores, Thiago Vieira e Jean Regina, advogados especializados no atendimento a inúmeras igrejas e entidades confessionais no país.

Nosso desejo, ao publicar esta obra — agora em sua terceira edição revisada e ampliada —, é que ela seja uma ferramenta prática para pastores, presbíteros e demais líderes religiosos, auxiliando-os especialmente nas questões jurídicas diárias da igreja.

Publicado por Vida Nova

4 COMENTÁRIOS

  1. Perfeita análise! E surpreende-me o fato de que acadêmicos e estudantes que ensejam produzir literaturas de sua própria autoria, pratiquem e advogam tal crime. Isso soa meio hipócrita, incoerente, pois certamente não permitiriam tal dano para si.

    Observa-se, até nas igrejas, que alguns maliciosamente (ou por ignorância, talvez) justificam esse ato com o pseudo discurso moral da “Cultura Cibernética” — dizem ser comum no mundo tecnológico a circulação livre de arquivos e dados na web, e portanto não cometem crimes (a ideia de uma “terra sem lei” que pode ser facilmente refutada pela análise legal apresentada no texto). Ainda que assim fosse, o cristão deveria portar-se como luz.
    Agradeço aos autores pela conscientização da gravidade e da impropriedade desse ato (imoral), e desmistificação do falso ensino do “…de graça dai, e de graça recebei”..
    E de fato meus queridos: Maranata.

  2. Assunto polêmico e pra falar a verdade nem sei o porque de ser tão polêmico. A pirataria deveria ser consenso como é a pornografia, ou o ato de furtar, alias como deveria ser qualquer outro pecado. Graças a Deus hoje em dia não tenho mais o desejo de buscar o “pdf” do fulano de tal. E andar dentro da normalidade é abençoador.

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