Jonathan Edwards: A doutrina da ceia e sua demissão de Northampton (Parte1)

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Este artigo dá início a uma série que busca mostrar a relação entre a Doutrina da Ceia defendida por Edwards e sua demissão de um dos pastorados mais conhecidos em toda a história da igreja.

Analisaremos, portanto, a relação entre a demissão de Jonathan Edwards do ministério pastoral em Nor-thampton e sua compreensão da Doutrina da Ceia do Senhor. Apesar de todo o contexto do período da con-trovérsia indicar um relacionamento ferido entre Edwards e Stoddard – seu avô e antigo pastor da igreja – veremos que, na realidade, o que levou Edwards a seguir sua consciência foi o amor pela verdade bíblica. Embora amasse seu avô, seu amor pela verdade do Evangelho se constituía em um elo com a obrigação de ensinar suas ovelhas com uma nova percepção da Ceia e da recepção à membresia na igreja.

Quanto mais percebia o estado da cidade, mais Edwards se convencia da necessidade de mudar a tradição eucarística da igreja em Northampton. Veremos como esse período na vida de Edwards tornara-se em um período de muitas dores. Sua desconformidade com o Pacto do Meio Termo, seu ensino sobre o que as Es-crituras esperam dele, bem como do povo, levaram-no a demissão. Contudo, fica-nos claro o caráter piedoso e amoroso desse homem. Com espírito desinteressado e altruísta, Jonathan Edwards revelou um caráter e-xemplar, que evidenciava aquilo em que cria e pregava.

Nosso foco, então, será, além de analisar o contexto que levou à controvérsia que se desenrolou entre 1748 a 1750, analisar a controvérsia em si.

O CONTEXTO POR TRÁS DA DEMISSÃO: DE STODDARD A EDWARDS
Embora todo o contexto de meados do século dezoito nos pareça apontar para um relacionamento não muito próximo entre Edwards e seu avô Stoddard e descendentes, Murray nos revela o contrário. Digo isso pela forma como Edwards conduziu seu rebanho na pequena Northampton, em caminhos que seu avô antes não os levara. A doutrina da ceia, assim como ensinada por Edwards, ia de encontro com o ensino de Stoddard. Apesar da aparência que se teve por volta da década de 40, Edwards nutria uma estima muito grande por seu avô.

Nota-se tal apreço por ocasião que antecedeu o falecimento de um filho de Salomão Stoddard, tio de Jona-than Edwards, chamado John Stoddard. Nesta ocasião, meados de 1748, toda a família Edwards teve de se adaptar a ausência de Sarah, esposa de Jonathan Edwards, quando esta apressou-se para Boston para ajudar em sua enfermagem, deixando Elizabeth, filha do casal Edwards com apenas treze meses de idade em casa. Isso aconteceu em junho de 1748, mês em que John Stoddard veio a falecer de apoplexia, uma extravasação de sangue em algum órgão do corpo.

Em 26 de junho de 1748 Edwards fez o funeral de John Stoddard, seu tio. Murray registra algumas das pala-vras de Edwards por ocasião de sua pregação no funeral:

“Talvez, nunca houve um homem na Nova Inglaterra para quem a denominação de ‘um grande homem’ mais propria-mente pertenceu… Ele foi um amigo muito fiel… Ele estava completamente estabelecido naqueles princípios e doutrinas religiosas dos primeiros pais da Nova Inglaterra, comumente chamadas de as doutrinas da graça.” (MURRAY, Iain H. Jonathan Edwards: a new biography, Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 1987, p. 314. Minha tradução).

 Edwards sentiu a morte de John Stoddard. Hopkins, citado por Murray, afirma que era seu tio quem fortale-cia suas mãos para a obra do ministério. E tal apreço por seu tio não era diferente do apreço pelo avô.

Segundo Alderi Matos, o reverendo Salomão Stoddard (1643-1729), avô de Edwards, foi um dos mais im-portantes líderes e pastores religiosos puritanos no período colonial. Edwards, sem sombra de dúvidas, foi muito influenciado por seu avô. A própria doutrina da Ceia, assim como entendida e ensinada por Salomão Stoddard, era a forma praticada por Edwards. Ele aceitava o modus operandi de Stoddard. Para seu avô, a Ceia tinha como uma de suas principais funções ajudar indivíduos que não tinham segurança de sua salvação. Todos os cristãos duvidosos deveriam participar da Ceia do Senhor. Stoddard fazia uma distinção clara entre “profissão de fé” em Cristo e possuir uma segurança de que a fé professada era uma fé salvadora. Murray afirma que, para Stoddard, não ter certeza de sua salvação, ou ser um cristão fraco em sua fé e prática, não deveria ser uma barreira para a participação na ceia. Até mesmo aqueles que não são regenerados não deveriam ser deixados de fora, isto porque o não regenerado precisa aprender o que Deus ensina nesta orde-nança e professar o que os cristãos professam.

Murray afirma que a posição de Stoddard, o avô, quanto à participação na Ceia do Senhor não é muito clara. E, além de não ser bem definida, estava facilmente susceptível a um mal-entendido. O próprio Edwards diferiu amplamente de seus primos quanto ao que seu avô ensinava. Embora Edwards aceitasse a posição de seu avô até os anos de 1743-44, após esse período o notamos estudando o assunto com mais independência, procurando entender o que as Escrituras ensinam sobre a recepção de novos membros à comunhão, bem como na participação da Ceia. Isso, aproximadamente quinze anos após a morte de seu avô. Para Murray, Stoddard não quis pormenorizar as qualificações bíblicas para a completa participação e comunhão na igreja, mas acabou por abrir demais tal recepção, o que, além de admitir indivíduos estranhos à fé na comunhão, deixou a seu neto, futuro pastor da igreja, um grande problema a ser resolvido.

Mais tarde, vemos Jonathan Edwards rejeitando completamente aquilo que acabou sendo cunhado de Stod-dardianismo. Tracy afirma que Edwards expôs publicamente por duas décadas sua rejeição daquilo que cria e praticara, enquanto auxiliando seu avô na igreja de Northampton. Por duas décadas, “Edwards escreveu que os sacramentos eram selos do pacto feito entre Deus e o homem no momento da conversão”. Edwards, por fim, quebrou completamente com a inconsistência da forma de administração da Ceia de seu avô, não fazendo isso sem grandes dores.

Embora tenha rejeitado o que seu avô ensinou e praticou, o que vemos é um elo muito estreito entre Edwards e seu avô, de quem foi assistente e sucessor, além de um carinho enorme por seu tio, John Stoddard que, a despeito de toda a busca de Edwards pela verdade das Escrituras quanto a Ceia, não deixou de ser, até o último de seus dias, um grande esteio e inspiração para Edwards.

O ESTADO DA CIDADE
Edwards, ao longo de sua caminhada como pastor da igreja congregacional em Northampton, enfrentou grandes desapontamentos com a sua cidade.

Marsden, um grande especialista americano em Edwards, afirma que, apesar de Edwards nutrir em seu cora-ção a ilusão de que seus paroquianos partilhavam de uma vida transformada pelo encontro com a “beleza cheia de esplendor”, foi duro para Edwards constatar que “dia após dia” os cidadãos daquela cidade estavam “preocupados com ciúmes, avareza, cobiças”, tendo Edwards que “suportar suas expressões de mau-humor e irreverência na medida em que vinham para participar dos momentos de culto semanal”.

Nesta altura de seu pastorado, Edwards estava tentando entender a psicologia de sua comunidade. Cidadãos com um grau elevado de distinção social entre si era algo que crescia em meio aos habitantes de Northamp-ton. E na igreja não era diferente. Edwards se preocupou com esta infiltração de ciúmes decorrente de tal diversidade que, ao invés de cooperar para o bem comum evidenciado na partilha cristã, tornou-se um meio de luta para alcançar o status de um grupo seleto.

E era neste contexto que os habitantes da cidade estavam acostumados a se aproximarem da mesa do Senhor para participarem da Ceia. Gerstner nos conta de um sermão de Edwards intitulado “Aqueles que participam espiritualmente de Cristo comem a comida dos anjos”. Nesse sermão, nos conta Gerstner, Edwards “acusa seu povo de negligenciar a Ceia do Senhor, salientando o quão triste era aquilo uma vez que a Ceia repre-senta o maná que caiu do céu. Era chamada de comida dos anjos”. Edwards, segundo Gerstner, continuou a explicar o que atualmente a comida dos anjos era e por que Cristo é chamado a comida dos anjos bem como dos santos. Gerstner acha irônico que o mesmo pastor – Edwards – que acusava seu povo de vir para a ceia de modo negligente, e também de não virem à Ceia, seria despedido por sua postura de impedir as mesmas pessoas de participarem da Ceia.

Em outro sermão, agora expondo Lc 22.19, Edwards comenta acerca do comportamento de alguns com mo-dos “horrivelmente profanos”. Neste sermão não publicado mencionado por John Gerstner em seu livro sobre a teologia bíblica racional de Jonathan Edwards, Edwards acusa tais paroquianos de observarem a Ceia, mas de negligenciarem perseverar na santificação e, fazendo assim, que estariam comendo e bebendo condenação sobre si mesmos.

É, então, por volta de 1744 que Edwards começa a não admitir algumas pessoas à membresia na igreja a menos que tais pessoas fizessem uma profissão de verdadeira piedade testemunhando uma experiência da Graça Salvadora bem como de conhecimento das sãs doutrinas. É nesse contexto que Edwards começa a entender que a Ceia aberta, assim como administrada por Stoddard, tinha de estar errada. Os princípios de seu avô produziam uma igreja que parecia impermeável às verdades da doutrina do Evangelho. Tracy, comentando isso, assim afirma:

Ele contou para algumas pessoas de sua mudança de coração e insinuou fortemente em seus novos princípios no Religi-ous Affections (Afeições Religiosas), mas uma controvérsia pública era evitada pelo fato de nenhum novo requerente a membresia aparecer até dezembro de 1748. 

Marsden comenta que, para Edwards, uma vez que Cristo estava presente na comunhão com seu povo, “era uma zombaria por aqueles que o traíam renovar seus votos, como em um casamento no qual eles nunca foram fiéis”. Para Edwards, aqueles que se aproximavam da Ceia do Senhor eram, ou seus discípulos, ou seus assassinos, assim como na crucificação. Edwards declarava que as pessoas participavam da Ceia, do corpo e do sangue, tanto “como amigos e discípulos, como canibais sedentos por sangue”. Marsden comenta que a cerimônia solene do pacto selaria tanto a comunhão com Cristo como a condenação de Cristo. Com tudo isso em mente, Edwards começaria uma mudança na tradição eucarística de Northampton.

EDWARDS MUDA A TRADIÇÃO EUCARÍSTICA
Edwards estava fortemente desapontado com o fato do Grande Despertamento pelo qual a igreja passou não a ter trazido de volta à observância semanal da Ceia do Senhor. Gerstner comenta que, como Calvino, “Edwards acreditava que a Eucaristia deveria ser observada publicamente a cada semana”. Edwards, em seu sermão em Lc 22.19, já mencionado acima, cujo título é “A Ceia do Senhor deve ser mantida e assistida em memória de Cristo”, partilha sua visão de que o povo de Deus deveria comemorar mais frequentemente o amor de seu redentor.

A visão de Edwards quanto a Ceia era a seguinte: a admissão à Ceia deveria ser uma confirmação do batis-mo. Edwards, agora, ensinava que a Ceia deveria ser para a família do fiel. Era para aqueles que haviam sido recebidos por uma profissão de fé e, então, para suas crianças em suas profissões, ou confirmações, de fé. No pensamento de Edwards nunca havia existido lugar à mesa do Senhor para pessoas que não fossem filhos do Senhor. Gerstner comenta:

Edwards se refere à Ceia do Senhor e a explica em termos de uma oferta de carnes ou de cereais. Ele a toma assim para significar essencialmente a mesma coisa, tendo referência particular à Ceia do Senhor como um banquete. Neste contexto, ele apela para seu povo que venha à festa e alimente-se de Jesus Cristo. Este é o tema de um sermão em João 6.51, também pregado pouco antes do término de seu ministério em Northampton, intitulado “Todas as bênçãos divinas estão tanto em Cristo como através de Cristo, como se fossem uma festa provida de sua carne que foi dada por nós”. Todas as bênçãos, ele explica, são através de Cristo e em Cristo pela virtude da união com Ele e através da dádiva de Sua carne. Os crentes, por assim dizer, alimentam-se de Sua carne que é vida. Consequentemente, qualquer um que se aproxime de qualquer outra maneira será reprovado, enquanto todos os outros serão exortados a festejarem com Ele.

Em um sermão sobre Rm 2.16, Edwards censura alguns ministros do Despertamento por julgarem o coração de modo muito superficial e rápido, olhando apenas para breves recitações de certas experiências. O próprio Edwards chegou a advertir George Whitefield por tal comportamento. Tais ministros preocupavam-se apenas com o comportamento das pessoas e não com sua profissão de fé. Edwards afirmou que muitas destas pessoas que falavam como santos eram, antes, filhos do Diabo. Gerstner comenta que, para Edwards, “ape-nas aqueles que fossem visivelmente santos deveriam ser admitidos à Ceia do Senhor”.

Richard A. Bailey, um doutorando em história americana na Universidade de Kentucky, em seu artigo De-voted Disciplinarian (Disciplinador dedicado) ao periódico americano Christian History (História cristã), escreveu que, apesar de Edwards concordar com seu avô durante a primeira década de seu ministério, à me-dida que a chama do Despertamento começou a se apagar, uma grande preocupação encheu seu coração. O fato de alguns convertidos não permanecerem interessados em questões espirituais o fez repensar sua com-preensão da verdadeira piedade e seus efeitos sobre os cristãos.

Edwards entendia, segundo Bailey, que a piedade influenciaria tanto o coração quanto a mente. Uma vez convencido de que muitas conversões do Grande Despertamento eram falsas, Edwards “pede à sua congre-gação que adote uma política mais rigorosa de admissões, o que exigia aos novos membros uma profissão pública de sua fé antes de serem autorizados a participar da comunhão”. Bailey ainda comenta o quanto este movimento intensificou as tenções dentro da igreja, as quais, finalmente, levaram à sua demissão.

Edwards entendia que, se houvessem santos que fossem oficializados como tais, que estes serviriam como modelos para os não convertidos. Segundo Tracy, conversões bem publicadas seriam um meio excelente para converter a outros de seus caminhos cheios de ciúmes e invejas. Além disso, um completo exame da conversão dos santos inibiria a vanglória em conversas privadas que haviam crescido debaixo do presente sistema de admissão aberta à Ceia.

Gerstner observa de modo interessante o progresso de transformação de seus sermões sobre a Ceia. Em um sermão feito em 1732 sobre o texto de 1Co 11.29, Edwards exorta seus paroquianos a que venham com um sério desejo pelo bem de suas almas. Há apenas uma exortação a que se examinem seguida de um apelo a que venham. Gerstner menciona a falta de clareza quanto ao que Edwards pensava em outro sermão, agora sobre Is 53.7. Neste, Edwards declara que o participante na Ceia do Senhor deve ser uma pessoa que pensa de si mesmo ser um convertido. Por fim, Gerstner menciona um sermão sobre Ez 44.9, feito em 1749, agora com outro tom. Neste, Edwards declara que “esta é a mente e vontade de Deus, que ninguém deve ser admitido à completa comunhão na Igreja de Cristo, mas apenas em profissão e diante dos olhos de um julgamento sensato como sendo verdadeiros santos e pessoas piedosas”.

Segundo Murray, até 1743-44, Edwards admitia indivíduos à comunhão e membresia da igreja sobre as mesmas bases introduzidas por seu avô. Somente a partir de então é que Edwards “põe o dedo na ferida da inconsistência” e começa a levantar questionamentos sobre a admissão de não regenerados à Ceia. Como Marsden afirma, para Edwards, “tudo aponta para a presença real de Cristo. Toda parte do culto de adora-ção, incluindo, mais solenemente, a Ceia, que foi desenhada para eliciar um senso daquela presença espiritual inefável”.

Embora possam ser percebidas algumas diferenças entre os primeiros e os últimos sermões de Edwards, no que diz respeito à Ceia, não se pode afirmar que houve grande mudança em sua teologia. Para Edwards, a Ceia do Senhor sempre foi como uma festa para os filhos de Deus apenas. Segundo Gerstner, ele estava sur-preso pelo Pacto do Meio Termo e pelas doutrinas das Ordenanças Conversoras de seu avô. Para Gerstner, “estando incerto de si mesmo, como um jovem homem, ele estudou o assunto cuidadosamente e apenas quando estava absolutamente certo, ele compartilhou sua doutrina com clareza”.

No próximo artigo, analisaremos todo o processo que levou da controvérsia em si à demissão de Jonathan Edwards de um dos mais famosos ministérios pastorais de toda a história da igreja.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAILEY, Richard A. Devoted Disciplinarian. Christian History, Carol Stream, v. XXII, n. 1, p.16-18, fev. 2002.
GERSTNER, John H. The racional biblical theology of Jonathan Edwards. Vol. 3. Powhatan: Berea Publica-tions, 1993.
MARSDEN, George M. Jonathan Edwards: a life. New Haven: Yale University Press, 2003.
MATOS, Alderi S. Fundamentos da Teologia Histórica. São Paulo: Mundo Cristão, 2007.
MURRAY, Iain H. Jonathan Edwards: a new biography. Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 1987.
TRACY, Patricia J. Jonathan Edwards, Pastor: religion and society in eighteenth-century Northampton. New York: Hill and Wang, 1980.

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