Estudo, ética e coerência bíblica

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Por Carlos Fernandes

Um dos mais eminentes teólogos da atualidade, o americano Wayne Grudem, de 68 anos, veio ao Brasil em março deste ano para participar do 10º Congresso de Teologia Vida Nova, em São Paulo. Nas semanas que antecederam sua nova visita ao Brasil, o pastor, especialista em teologia sistemática na prestigiada Trinity Evangelical Divinity School conversou sobre o tema com a Revista CRISTIANISMO HOJE. Autor de diversos livros, inclusive sua Teologia sistemática, que se tornou uma obra de referência, Grudem diz que esta disciplina é fundamental à Igreja de hoje. “É importante que os pastores estudem cuidadosamente cada versículo que utilizarão em suas pregações”, defende. Somente assim, acredita, ensinos enganosos com o do teísmo aberto não encontrarão espaço entre os cristãos.  “Ora, como
poderíamos confiar em um Deus se ele pode cometer um erro, ou calcular mal as coisas que podem ocorrer no futuro?”, questiona.

CRISTIANISMO HOJE – Qual a contribuição da teologia sistemática ao Cristianismo contemporâneo? Ela tem algum aspecto de abordagem prática e utilitária à vida do crente?

WAYNE GRUDEM – Em primeiro lugar, agradeço à revista CRISTIANISMO HOJE pela oportunidade de participar de uma entrevista sobre esses temas. A minha abordagem da teologia sistemática é prática e utilitária, porque eu sempre tento ensinar e escrever sobre ela incluindo, sim, aplicações para a vida. A própria Bíblia sempre inclui aplicações práticas na discussão de temas teológicos. No entanto, a forma como eu trato diversos temas não é determinada pelo pragmatismo religioso moderno, mas sim, pelas verdades imutáveis da Palavra de Deus. Eu também considero a minha abordagem coerente com a tradição teológica protestante convencional, em particular com a tradição reformada, que tem sido evidente na Igreja desde 1517. É preciso que a teologia sistemática seja coerente com as declarações doutrinais encontradas nos credos antigos, como o de Niceia e da Calcedônia.

Levar a teologia sistemática ao alcance dos leigos é o desafio de todo escritor dedicado a esse tema. Que cuidados o senhor toma para conseguir isso?
Eu destacaria três coisas, em especial. Em primeiro lugar, tento falar e escrever de modo a envolver os ouvintes e leitores que não tiveram o privilégio de uma formação teológica formal, nem estão familiarizados com o vocabulário técnico utilizado nos estudos bíblicos e teológicos. Em segundo, tento sempre citar as próprias palavras das Escrituras, em vez de, simplesmente, fazer referências em minhas aulas e trabalhos escritos. A Palavra de Deus, e não as minhas palavras, é que tem poder para mudar mentes e corações. Por último, procuro sempre incluir aplicações práticas, como mencionei anteriormente.

O Congresso Vida Nova 2016, do qual o senhor participa em março, no Brasil, discutirá exatamente a importância da teologia evangélica para o engajamento cultural dos cristãos de hoje. Essa integração pode ser promovida sem se abrir mão de valores fundamentais da fé cristã e da sua ortodoxia?
Quanto mais o tempo passa, mais eu me convenço de que uma ampla e profunda ortodoxia teológica, que não comprometa ou renuncie nenhum ensinamento da Palavra, é a melhor base para a compreensão dos pontos fortes e fracos de qualquer aspecto da cultura moderna. Isso ocorre porque a Bíblia fala de verdades que são precisas em relação à condição de todos os seres humanos, em todas as culturas e sociedades. Em meus dois últimos livros, por exemplo, eu tentei aplicar os ensinamentos bíblicos aos campos da economia e da política e descobri, em vários momentos, que a compreensão da teologia cristã ortodoxa é a melhor plataforma para acrescentar insights adicionais a esses campos.

Quais são as suas expectativas para esta nova visita ao Brasil?
Eu espero incentivar os cristãos brasileiros a confiarem que os ensinamentos bíblicos têm muita relevância para as questões culturais de hoje, especialmente em relação às áreas de governo, economia e pobreza. Eu também espero ouvir dos cristãos brasileiros sobre as suas perspectivas sobre essas questões – e, claro, tenho expectativas sobre se eles irão concordar ou discordar dos meus pontos de vista.

Quais informações o senhor tem a respeito da Igreja Evangélica brasileira em relação à sua teologia, atividade missionária e prática cristã?
A maior parte do que sei foi graças a uma visita que fiz a São Paulo, na Universidade Mackenzie, em 2011. Lembro-me, especialmente, de conversas maravilhosas com o corpo docente de estudos bíblicos e teológicos. Eu achei os teólogos brasileiros muito bem informados e articulados em relação à ampla variedade de questões éticas e teológicas.

O Brasil possui poucos livros sobre teologia sistemática em relação ao tamanho de sua Igreja, que já soma cerca de 45 milhões de pessoas. Em sua opinião, de que maneira uma Igreja como a brasileira deveria desenvolver a sua própria teologia sistemática, adaptada às suas características sociais e culturais?
Lembro-me que, no final dos anos 1970, eu estava procurando um livro para usar nas aulas de teologia. Fiquei surpreso ao descobrir que, em língua inglesa, não havia uma importante teologia sistemática desde Louis Berkhof, em 1939. Então, Millard Erickson, um teólogo evangélico bastante qualificado, publicou seu útil Christian Theology, em 1983; e eu, em 1994, publiquei o meu próprio Systematic Theology [lançado no Brasil por Edições Vida Nova]. Mas, desde então, muitos outros grandes livros de teologia sistemática foram publicados por autores evangélicos, e eu acredito que esse é um desenvolvimento muito saudável para a Igreja. Autores americanos, porém, tendem, naturalmente, a dar mais atenção a polêmicas teológicas proeminentes na Igreja dos EUA. Às vezes, nem nos damos conta das controvérsias doutrinárias presentes em outras línguas e culturas. Eu espero que não apenas um, mas muitos autores brasileiros escrevam seus próprios livros de teologia sistemática. Esses livros serão escritos originalmente em português e serão capazes de abordar questões específicas e relevantes ao contexto brasileiro, e até mesmo latino-americano. Na verdade, nem todos esses livros precisam abordar toda a gama de tópicos da teologia sistemática, pois há também uma necessidade de volumes individuais dedicados a temas importantes específicos.

Um pastor pode beneficiar seus ouvintes utilizando a teologia sistemática em suas pregações?
É importante que os pastores estudem cuidadosamente cada versículo que utilizarão em suas pregações. Os bons comentários bíblicos são úteis nesse caso. Porém, também é importante que os pregadores observem esses versículos à luz dos ensinamentos da Bíblia inteira, e é aí que entra a importância de livros sobre teologia sistemática – ela é uma tentativa de compreender e resumir o ensinamento das Escrituras como um todo em relação a diversos temas.

Em Política segundo a Bíblia, um de seus livros publicados no Brasil, o senhor apoia a participação dos cristãos nesta esfera da vida pública. No Brasil, a classe política em geral – inclusive, a representação parlamentar evangélica – passa por um descrédito generalizado, com casos de corrupção, má conduta, favorecimentos indevidos, tráfico de influência e outras irregularidades. O senhor acha adequado tratar de política na igreja? E como isso pode ser feito com uma ética adequada, sem interferir ou contaminar a pregação da mensagem cristã?

Se os pastores estão cientes da corrupção no governo, é ainda mais importante que eles abordem essas questões claramente. Na própria Bíblia, vemos gente como José, Daniel, Neemias e Ester, no Antigo Testamento; e João Batista e Paulo, no Novo, que não só atuaram politicamente como deram conselhos e orientações a altos funcionários do governo. No caso de alguns, exerceram funções executivas – e, em todos os casos, tratava-se de governos seculares. Ora, a narrativa bíblica aprova essa conduta, e acho que deveríamos seguir esse padrão. Eu não acho que abordar questões políticas do púlpito possa, como você disse, contaminar a pregação da mensagem cristã, pois esta deve englobar tudo o que é mostrado na Bíblia, o que certamente inclui ensinamentos sobre a natureza e as responsabilidades do governo civil. Vemos isso em Romanos 13 ou I Pedro 2 e, também, nos ensinamentos sobre reis bons e maus reis de Israel, no Antigo Testamento. Com certeza, não há nada de errado em pregar sobre aquilo que é ensinado na própria Bíblia.

Sempre que ocorrem grandes catástrofes climáticas ou humanitárias, como o avanço da pobreza e da fome, terremotos, epidemias, grandes atos terroristas e conflitos internacionais, as ideias propostas pelo teísmo aberto voltam ao centro de discussão. Como o senhor vê essa teologia?
O teísmo aberto afirma que Deus não conhece as ações e escolhas humanas futuras, até que elas aconteçam. Isso contradiz, frontalmente, centenas de passagens bíblicas em que Deus previu acontecimentos futuros. Em Isaías, o Senhor se distingue, repetidamente, dos falsos deuses das nações vizinhas pelo fato de conhecer o futuro, diferentemente deles. Eu concluo, portanto, que a ideia do teísmo aberto é contrária às Escrituras – e, por isso, errada. No teísmo aberto, Deus não é onisciente, pois não conhece acontecimentos futuros que dependem de escolhas humanas. Os defensores de tal doutrina afirmam que isso não nega a onisciência, pois, para eles, tal atributo divino  inclui apenas os acontecimentos que já ocorreram. Porém, essa não é a maneira como a Bíblia retrata o conhecimento do Senhor. E como poderíamos confiar em um Deus, e orar a ele pedindo sua orientação, se esse Deus pode cometer um erro, ou calcular mal as coisas que podem ocorrer no futuro? Esse não é o Deus da Bíblia! Não poderíamos confiar nesse Deus, e esse é o maior ponto fraco dessa teoria.

A operação de sinais e maravilhas, assim como o exercício dos chamados dons espirituais é uma prática contemporânea no Brasil – especialmente em igrejas como a Assembleia de Deus e outras denominações pentecostais. Como a questão da contemporaneidade dos dons espirituais tem sido tratada nos EUA e na Europa?
Eu acredito que há menos polêmica em relação a essas questões nos EUA e no Reino Unido do que havia há vinte ou trinta anos. Ainda há grandes críticos, como John MacArthur, mas a posição mais comum agora, entre pastores e estudantes de seminário, é: “Eu acredito que a Bíblia ensina que esses dons espirituais continuam ativos atualmente, mas não os percebo em minha experiência pessoal. Porém, eu estaria aberto ao seu uso em minha igreja se a sua prática abusiva puder ser evitada.”

Os grandes avivamentos espirituais que transformaram a Igreja no passado parecem ter sido enterrados no tempo, quando observamos o Cristianismo praticado por muitos hoje. O senhor acredita que ainda há espaço para movimentos espirituais de transformação e renovação na sociedade?
É claro! Afinal, Jesus Cristo ainda não voltou à Terra. E ele continua e está construindo a sua Igreja. O Reino de Deus ainda está avançando como um pequeno grão de mostarda, que se transforma em uma grande árvore. Eu estou na expectativa de grandes avivamentos em diversos lugares do mundo. Tudo isso, porém, está nas mãos de Deus, e ele não nos revelou o seu tempo.

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