Discipulado como missão e o paradigma missionário de Mateus

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PRIMEIRAS PALAVRAS
II Tm 1.13-14: 13 Retenha, com fé e amor em Cristo Jesus, o modelo da sã doutrina que você ouviu de mim. 14 Quanto ao que lhe foi confiado, guarde-o por meio do Espírito Santo que habita em nós.

II Tm 4.3-5: 3 Pois virá o tempo em que não suportarão a sã doutrina; ao contrário, sentindo coceira nos ouvidos, juntarão mestres para si mesmos, segundo os seus próprios desejos. 4 Eles se recusarão a dar ouvidos à verdade, voltando-se para os mitos. 5 Você, porém, seja moderado em tudo, suporte os sofrimentos, faça a obra de um evangelista, cumpra plenamente o seu ministério.

Nossa responsabilidade como líderes e professores cristãos é a de guardar a sã doutrina que um dia recebemos de alguém. Isso pressupõe que recebemos a sã doutrina de outro guardião e ele, por sua vez, de outro. Dessa forma, o discipulado está presente de modo fundamental no processo de transmissão da sã doutrina de geração para geração.

Porém, nesse processo de passagem da sã doutrina é possível que ocorram rupturas, por motivos históricos, sociológicos, teológicos, etc. Há uma multiplicidade denominacional. As comunidades cristãs independentes, das mais diversas confissões, modelos e ênfases (sem entrar na discussão se estas são ou não de fato cristãs) se multiplicam. Nas palavras de Dom Robinson Cavalcanti, na ocasião do retorno de Cristo, não uma noiva, mas um harém será encontrado pelo nosso Senhor. É tipo de ruptura vivenciada por Israel segundo o registro de Juízes:

Juízes 2.10: 10 Depois que toda aquela geração foi reunida aos seus antepassados, surgiu uma nova geração que não conhecia o SENHOR e o que ele havia feito por Israel.

Pode parecer uma comparação um tanto pessimista, mas é exatamente a mesma comparação que Paulo faz, quando diz que “virá o tempo em que não suportarão a sã doutrina”. Tais rupturas, infelizmente, sempre fizeram parte da história da Igreja. Isso explica o motivo pelo qual a busca da Igreja por avivamentos se repetir ao longo dos anos.

Só se pode avivar, despertar, (awakening – despertamento) aquele que um dia viveu. Quando a Igreja busca um avivamento, está buscando viver novamente o que já foi vivido no passado. Porém, após os avivamentos, a Igreja precisa educar as pessoas a fim de se relacionarem com os frutos do avivamento (por exemplo, os capítulos 12-14 de I Coríntios). Do processo de educação surgem tempos de esfriamento, que resultam numa nova necessidade de avivamento. Este movimento, que de forma cíclica constata-se na história, remonta os Pais Apostólicos, e, de certa forma, o próprio Novo Testamento.

Poder-se-ia dizer, em geral, que no período dos pais apostólicos já haviam desaparecido as grandes visões do primeiro movimento extático, ficando em seu lugar um conjunto de ideais produtoras de certo conformismo eclesiástico, possibilitando o trabalho missionário. Muita gente reclama disso. Deploram que tão cedo, já na segunda geração de cristãos, o poder do Espírito Santo se fora. É o que, inevitavelmente acontece nos períodos mais criativos. Vejam o que aconteceu na época da Reforma: logo depois de sua explosão, a segunda geração que a recebeu, começou uma fase de fixação ou de concentração de algumas ideias particulares. São necessidades educacionais que entram em cena para preservar o que foi dado antes. […] segundo a primeira carta de Paulo aos Coríntios, capítulo 12 em especial, ele já encontrara dificuldades com os portadores do Espírito porque produziam desordem. Assim, acentuou a necessidade da ordem ao lado do Espírito. Nas cartas pastorais, atribuídas a Paulo, a ênfase na ordem eclesiástica torna-se cada vez mais importante. Na época dos pais apostólicos, as experiências espirituais de êxtase tinham quase desaparecido. (TILLICH, 2004, p. 38, 39).

A busca pelo avivamento, tão discutida e pregada em ambientes eclesiásticos em nossos dias, tem se dado num processo diferente daquele que a história apresenta para nós. Nos avivamentos pelos quais que a Igreja passou, a marca essencial era o retorno às Escrituras e à sã doutrina.

Parece que, em nossos dias, a Igreja, marcada principalmente pela expressão da juventude, busca o avivamento através de seus sentimentos: música, espiritualidade emotiva e uma suposta experiência de comunidade. Ocorre, então, uma mudança drástica na maneira da Igreja buscar o avivamento. A Bíblia e a razão deixaram de ser o centro, perdendo seu lugar para a subjetividade e emoção. Embora a emoção sempre tenha um papel fundamental na religião, quando ela exclui a razão, presta um grande desserviço.

Para tentar entender um pouco melhor esse processo, vamos dividir o assunto em duas partes: Na primeira parte vamos discorrer brevemente sobre a situação atual da espiritualidade e das Escrituras na Igreja contemporânea. Na segunda parte apresentamos algumas pistas de ação que julgamos ser importantes nesse processo em que estamos vivendo.

1. A SITUAÇÃO ATUAL DA ESPIRITUALIDADE E DAS ESCRITURAS NA IGREJA CONTEMPORÂNEA
A igreja contemporânea é, em linhas gerais, uma igreja jovem. Num artigo escrito para o livro O Melhor da Espiritualidade Brasileira, organizado por Nelson Bomilcar, Marcelo Gualberto afirma que a juventude cristã brasileira tem na espiritualidade sua maior virtude e seu maior fracasso:

I. Virtudes
a. O consumo de material evangélico nunca foi tão grande em toda a história do protestantismo no Brasil.

b. Segundo pesquisas, 80% das decisões por Cristo nas igrejas são de jovens entre 13 e 25 anos.

c. O jovem tem encontrado na igreja um ambiente de expressão de sua espiritualidade.

II. Fracassos
a. Espiritualidade consumista (fast food, quantidades e hedonismo)

b. Música como sinônimo de adoração e como um fim em si mesma.

c. Desconexão entre o que se sabe e o que se vive.

Com o surgimento da geração gospel e do culto-show, com fortíssima ênfase na celebração, não há mais espaço e nem interesse no estudo sistemático da Palavra e no crescimento espiritual. O sensível desinteresse de adolescentes e jovens na escola bíblica dominical (já abolida em muitas igrejas) evidencia este fenômeno. Embora seja uma juventude conectada e bem informada, já que o mundo está à distância de uma tecla, também se trata, sob a ótica espiritual, de uma geração sem conhecimento bíblico, imatura e vulnerável a qualquer ‘novo vento de doutrina’. E doutrina nova é o que não falta. (BOMILCAR, 2005).

Diante desse quadro, que certamente muitos de nós identificamos como realidade em nossas igrejas e/ou denominações, os líderes são tentados pelas estratégias de mercado a atender as demandas dessa juventude. Consequentemente, trocam o cajado por um modelo de gerenciamento. Trocam a simplicidade da partilha do pão pela frieza da cultura midiática. Cedem aos desejos da juventude em ter seus cultos-show e a música como sinônimo de adoração, e acabam por negociar a sã doutrina.

Ceder à tentação de agradar a juventude alimentando-a com uma pseudo-espiritualidade é cometer o erro sobre o qual Paulo alertou Timóteo no texto lido inicialmente:

II Tm 4.3-5: 3 Pois virá o tempo em que não suportarão a sã doutrina; ao contrário, sentindo coceira nos ouvidos, juntarão mestres para si mesmos, segundo os seus próprios desejos. 4 Eles se recusarão a dar ouvidos à verdade, voltando-se para os mitos. 5 Você, porém, seja moderado em tudo, suporte os sofrimentos, faça a obra de um evangelista, cumpra plenamente o seu ministério.

É claro que atender a demanda da juventude é apenas um exemplo. A lista de assuntos e ênfases que lotam auditórios é ampla: cura, prosperidade, batalha espiritual, etc. No entanto, devemos lembrar que o ministério cristão não consiste em ensinar, pregar ou cantar o que as pessoas querem ouvir. Nosso ministério é guardar a sã doutrina, mantermo-nos fiéis ao chamado:

I Coríntios 4:1-2: 1 Assim, pois, importa que os homens nos considerem como ministros de Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus.  2 Ora, além disso, o que se requer dos despenseiros é que cada um deles seja encontrado fiel.

Antes de termos responsabilidades para com as pessoas, temos responsabilidades para com Deus e Seu Evangelho. Ceder às tentações ministeriais é cometer o crime que Israel cometeu:

Jeremias 2.13: “O meu povo cometeu dois crimes: eles me abandonaram, a mim, a fonte de água viva; e cavaram as suas próprias cisternas, cisternas rachadas que não retêm água.”

Como guardiões da sã doutrina, devemos então perguntar: o que é a sã doutrina? Será que o que eu julgo ser sã doutrina é também para outras pessoas? O que é o Evangelho? Qual o centro da mensagem de Jesus? As respostas para estas perguntas são as mais diversas possíveis.

Temos, então, outro problema: em algum ponto da história do evangelho no Brasil nós nos perdemos, pois já não conseguimos mais definir e explicar facilmente no que consiste o Evangelho ou qual era a mensagem central de Jesus.

Emil Brunner, teólogo suíço, disse que o Evangelho que não puder ser expresso em palavras num cartão postal não pode ser o mesmo Evangelho exposto por Jesus nas ruas empoeiradas da palestina no primeiro século da era cristã.

Sendo assim, entendemos que não se trata apenas de falta de interesse ou de estímulo daqueles que nos ouvem, como concluem alguns, mas falta para todos nós uma reflexão mais profunda sobre o evangelho que temos pregado.
 
2. A DIVISÃO ENTRE A OBRA E A PESSOA DE JESUS
Pode ser que em nossa pregação exista uma divisão entre a pessoa e a obra de Jesus.

2.1. A pregação da obra de Jesus
A obra de Jesus é o centro da pregação evangelística da igreja no Brasil desde tempos imemoráveis. Como obra de Jesus, falo da salvação e da vida eterna. Será que não é assim que temos ouvido e pregado o evangelho: aceite Jesus – consequência: salvação e vida eterna – leia-se: vida eterna depois da morte.

A pregação da obra de Jesus é fruto da concepção da divindade de Jesus isolado de sua pessoa. Ele, por ser Deus, morreu em nosso lugar e nos justificou perante o Pai. A justificação, o perdão dos pecados e a vida eterna, portanto, tem sido o cerne da nossa evangelização.

O problema é que pessoas se convertem a Jesus com a ideia de que agora estão perdoadas de seus pecados e que, quando morrerem, desfrutarão da vida eterna no céu com Deus. E isso já basta!

Dessa maneira, que compromisso tal pessoa tem com a pessoa de Jesus se já é suficiente a bênção de morrer e ir para o céu? O que mais poderiam querer de Jesus, além do livramento do fogo do inferno? Este evangelho nada mais é do que uma espécie de apólice de seguro para ser utilizado na vida futura. Há, portanto, uma soteriologia parcial. É preciso olhar para a pessoa de Jesus para completarmos nosso conceito e kerygma soteriológico.

2.2. A pessoa de Jesus
Devemos nos lembrar que a heresia que João condenou em sua primeira carta consistia na negação não a divindade de Jesus, mas a humanidade de Jesus. Esta heresia foi posteriormente nomeada Docetismo.

I Jo 4.2,3: 2 Vocês podem reconhecer o Espírito de Deus deste modo: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne procede de Deus; 3 mas todo espírito que não confessa Jesus não procede de Deus. Esse é o espírito do anticristo, acerca do qual vocês ouviram que está vindo, e agora já está no mundo.

[O docetismo é] o ensinamento segundo o qual Jesus era plenamente Deus, mas apenas parecia ser humano (termo derivado do gr. dokeo, “parecer ou aparentar”). Os teólogos docetistas realçavam a diferença qualitativa entre Deus e o ser humano e, portanto menosprezavam os elementos humanos da vida de Deus a favor dos que remetiam à sua divindade. A igreja primitiva rejeitou o docetismo, considerando-o uma interpretação herética do ensino bíblico sobre Jesus. (GRENZ, 2002, p. 42).

Da mesma forma, nega-se a humanidade de Jesus quando Dele extraímos somente o que nos interessa, isto é, a salvação e a vida-eterna (geralmente entendida como pós-morte). Há implícito aqui o que Dietrich Bonhoeffer chamou de graça barata. Isto é, uma graça que extrai da cruz as bênçãos da vida-eterna e negligencia a necessidade do discipulado.

Assim, é urgente resgatar o estudo e a pregação do Jesus da história, do Verbo que se fez carne e habitou entre nós. Precisamos olhar para a humanidade de Jesus, seus ensinos e implicações para a vida.

E quando olhamos para a pessoa de Jesus, descobriremos que vida-eterna não significa “vida depois da morte”, mas, nas palavras do Mestre: vida eterna é vida em abundância, em plenitude, aqui e agora (Jo 10.10). No mesmo sentido, Paulo fala que temos paz com Deus (Rm 5.1). Sabemos que paz no hebraico (shalom) significa plenitude de vida. Sobre esse assunto, traduzo aqui um texto de René Padilla:

“A vida em abundância sobre a qual Jesus define sua missão (Jo 10.10) é a vida que no Antigo Testamento se define em termos de shalom, vocábulo hebreu cujo sentido é tão rico que na tradução grega do Antigo Testamento […] se usam mais de vinte e cinco palavras gregas para traduzi-lo. Shalom é prosperidade, saúde integral, bem estar material e espiritual, harmonia com Deus, com o próximo e com a criação. Shalom é plenitude de vida.

Deste ponto de vista, não se justifica a concepção da vida plena em termos exclusivamente espirituais. A teologia segundo a qual a vida que Cristo oferece é uma vida ultramundana, além da história, está relacionada com o pensamento grego com sua ênfase na dicotomia entre a eternidade e o tempo, entre alma e corpo, entre o espiritual e o material. Necessita ser corrigida pela visão bíblica, para a qual a esperança escatológica inclui uma nova criação, um novo céu e uma nova terra, e a ressurreição do corpo.

A vida “em abundância” ou “eterna” é a vida do Reino de Deus que irrompeu na história na pessoa e na obra de Jesus Cristo e que culminará na segunda vinda de Cristo, a Parusía. É a vida em que, aqui e agora, todas as coisas são feitas novas pelo poder de Deus (II Co 5.17); é vida que deriva sua qualidade da relação com Deus e se manifesta em todas as esferas da sociedade, no trabalho, na família e
na igreja.

Os que, em conformidade com a missão de Jesus Cristo, promovem a plenitude de vida não podem menos que tomar a responsabilidade sobre as difíceis questões delineadas pelo sistema econômico atual, […] que define a vida em ter ao invés de ser. A “vida em abundância” é a vida em que se cumpre cabalmente o propósito para qual Deus a criou e a sustenta; é a concretização do amor e a justiça do Reino de Deus. Promove-se esta vida na medida em que se vive conforme o propósito de Deus, se anuncia a mensagem da vida em Cristo […] e se atua em serviço da vida em todas as suas dimensões.”

A diferença na prática: a pregação da obra de Cristo nós expressamos com palavras; a pregação da pessoa de Cristo, que não se distingue de Sua obra, nós expressamos com nossas vidas. O discipulado é o evangelho proclamado com a vida, de modo integral. O discipulado preocupa-se com a “vida em abundância”, pois não se limita a pregar para “ganhar almas”, mas se põe a serviço da vida, em todas as suas dimensões.

2.3. Pistas para Ação: o ponto de partida
Aqui cabe a pergunta: por que discipular? Qual a ligação entre discipulado e missão? Para tentar responder as perguntas acima, vamos considerar o evangelho de Mateus e seu paradigma missionário, a fim de descobrir como os primeiros cristãos entenderam sua vocação e missão.

É importante ressaltar que não há nenhuma novidade naquilo que afirmamos como “ponto de partida”, apenas o que entendemos ser a sã doutrina, conforme pregada por Cristo, isto é, o centro da pregação de Jesus: o Evangelho do Reino. Ao abordarmos o Evangelho do Reino não falamos apenas da divindade ou da humanidade de Jesus, mas sim do plano de Deus em Cristo de reconciliar consigo todas as coisas, fazendo uma nova criação – II Coríntios 5.17, 19. Nosso olhar, portanto, deve ser mais abrangente.
 
3. O PARADIGMA MISSIONÁRIO DE MATEUS
O Evangelho de Mateus contém uma das perícopes mais importantes para a teologia da missão. Muito utilizada em campanhas missionárias, principalmente para indicar a necessidade de “ir” para um campo missionário, Mt 28.16-20 pode ser um risco para quem o interpreta meramente como um slogan missiológico. Para que seja possível compreender a “Grande Comissão” como Mateus a concebeu, é necessário olhar para o todo de seu evangelho.

David J. Bosch (2009) elenca uma série de frases de teólogos que se empenharam em definir a perícope citada acima: “um resumo de todo o evangelho de Mateus”; “o clímax do evangelho”; “uma espécie de culminação de tudo o que foi dito até esse ponto”. Tais frases mostram para nós que a Grande Comissão não pode ser isolada do restante do evangelho de Mateus, mas deve ser interpretada à luz do contexto maior do evangelho.

O primeiro evangelho, conforme está disposto em nosso Novo Testamento, é um texto essencialmente missionário. “Foi primordialmente por causa de sua visão missionária que Mateus se pôs a escrever seu evangelho, não para compor uma ‘vida de Jesus’, mas para oferecer orientação a uma comunidade em crise quanto à maneira como deveria entender sua vocação e missão” (BOSCH, 2009, p. 83 – itálicos meus). Ou seja, o evangelho de Mateus apresenta para nós o caminho para descobrirmos nossa identidade missionária, a saber, fazer discípulos de Jesus Cristo.

Ensinando-os a guardar todas as coisas…” 
A imagem de Jesus, por causa da frase acima, pode parecer legalista. Porém, ao dizer que os discípulos deveriam fazer discípulos e que o conteúdo do ensino era obediência aos mandamentos, ou ordenanças, de Jesus. Protestantes podem preferir ouvir falar em proclamação ao invés de ensino, ou perdão dos pecados e vida eterna, ao invés de guardar ordenanças. E de fato fazemos isso.

Mateus utiliza três palavras para definir a atividade missionária do cristão: fazer discípulos, batizar e ensinar. Por que não utilizar palavras como “pregar”, “proclamar” ou “evangelizar”? Parece que Mateus está consciente de seus propósitos aos escolher as palavras.

Por trás de sua opção terminológica há importantes considerações teológicas (leia-se: missiológicas). Para apreciá-las, é importante reconhecer que, para Mateus, ensinar de modo algum é um empreendimento meramente intelectual […] O ensino de Jesus é um apelo à vontade de seus ouvintes, e não primordialmente a seu intelecto; é uma conclamação a uma decisão concreta de segui-lo e submeter-se à vontade de Deus […] Além disso, o ensino não implica meramente na inculcação dos preceitos da Lei e a obediência a eles, como o judaísmo contemporâneo o interpretava […] Não, o que os apóstolos deveriam “ensinar” às novas discípulas, de acordo com Mateus 28.20, é submeter-se à vontade de Deus revelada no ministério e ensino de Jesus. Não há evangelho que possa distanciar-se […] do Jesus terreno. Suas instruções permanecem válidas e autoritativas, também para o futuro. É preciso manter a continuidade entre o Jesus terreno e o Cristo exaltado. (BOSCH, 2008, p. 93).

Fazei discípulos…”
Neste ponto está uma quase exclusividade de Mateus. A terminologia no grego é fazer discípulos. O termo  grego utilizado só aparece quatro vezes no Novo Testamento, sendo três vezes em Mateus e uma vez em Atos: Mt 13.52; 27.57; 28.19 e At 14.21.

O termo “discípulos” é comum nos evangelhos e em Atos. Dentre os sinóticos, é Mateus quem mais o utiliza: 72 vezes em Mateus; 46 vezes em Marcos; 37 vezes em Lucas e 28 vezes em Atos. “Discípulo” é a definição do posterior “cristão” (At 11) nos evangelhos. Em nenhuma outra parte do NT o termo é encontrado, nem mesmo em Paulo. O termo mais utilizado como complemento de “discípulo” é “seguir”, “após” (Ex: Lc 9.23; Mt 9.9).

Resumindo, a tarefa do discípulo de Jesus é transformar outras pessoas naquilo que eles são, isto é, discípulo. Dessa maneira, não existe ruptura entre o ministério do Jesus terreno e a missão da igreja, guiada pelo Cristo exaltado. Os discípulos são modelados de acordo com os primeiros discípulos de Jesus, que foram modelados pelo próprio Jesus.

O ensino do discipulado está ligado ao ensino de Jesus. O discípulo de Jesus ensina outras pessoas a obedecer às ordenanças de Jesus. O conteúdo do discipulado é o evangelho do Reino de Deus e suas subdivisões e consequências. 

4. JESUS E O EVANGELHO REINO
O Evangelho do Reino era central na pregação de Jesus:

Marcos 1.14-15: 14 Depois que João foi preso, Jesus foi para a Galiléia, proclamando as boas novas de Deus. 15 “O tempo é chegado”, dizia ele. “O Reino de Deus está próximo. Arrependam-se e creiam nas boas novas!”

Os apóstolos de Jesus Cristo tinham a consciência de que estavam, por intermédio do Espírito Santo, dando continuidade àquilo que Jesus “começou a fazer e a ensinar”, tendo sido capacitados pela doação do Espírito Santo, que os conduziria à missão, a saber, continuar a proclamação e ensino acerca do Reino de Deus:

Atos 1.1, 8: 1 Em meu livro anterior, Teófilo, escrevi a respeito de tudo o que Jesus começou a fazer e a ensinar […] 8 Mas receberão poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês, e serão minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria, e até os confins da terra.

A pregação apostólica, portanto, estava imbuída da sublime tarefa de pregar e ensinar acerca do Reino de Deus:

Atos 28.30-31: 30 Por dois anos inteiros Paulo permaneceu na casa que havia alugado, e recebia a todos os que iam vê-lo. 31 Pregava o Reino de Deus e ensinava a respeito do Senhor Jesus Cristo, abertamente e sem impedimento algum.

4.1. O que é o Reino?

“O Reino de Deus é sua realeza de Rei, seu governo, sua autoridade… o Reino não é uma região, um domínio nem um povo, mas o reinado de Deus. Jesus disse que devemos ‘receber o reino de Deus’ como uma criança (Mc 10.15). O que é recebido? A igreja? O céu? Não! O governo de Deus é recebido. A pessoa, a fim de entrar no futuro domínio do Reino, tem de se entregar, aqui e agora, em total confiança ao governo de Deus”. (LADD, 2008).

Pela definição acima, não há espaço para interpretarmos a obra de Cristo separadamente de sua pessoa. No texto de Marcos 1.14, 15, podemos perceber que o Reino de Deus chega ao mundo na pessoa de Jesus Cristo. É Ele quem inaugura o reinado de Deus sobre a terra.

Com isso, o reinado de Deus traz como consequência o discipulado. É submisso ao Rei, ou seja, faz parte do reinado de Deus, aquele que se coloca sob o aprendizado de Jesus hoje. Ou seja, nós não apenas fomos salvos, mas estamos sendo salvos.
 
4.2. Quais as consequências para o ensino e pregação da Palavra?

Creio que o texto que melhor resume o relacionamento entre salvação futura e o discipulado hoje é o de Tito 2.11-15:

Tito 2.11-15: 11 Porque a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens. 12 Ela nos ensina a renunciar à impiedade e às paixões mundanas e a viver de maneira sensata, justa e piedosa nesta era presente, 13 enquanto aguardamos a bendita esperança: a gloriosa manifestação de nosso grande Deus e Salvador, Jesus Cristo. 14 Ele se entregou por nós a fim de nos remir de toda a maldade e purificar para si mesmo um povo particularmente seu, dedicado à prática de boas obras. 15 É isso que você deve ensinar, exortando-os e repreendendo-os com toda a autoridade. Ninguém o despreze.

A graça que nos salvou é a mesma graça que continua a atuar em nós. Essa atuação presente e contínua da graça em nós é o aprendizado.

A palavra grega é paidéia que significa: castigo, disciplina, aprendizado, discipulado. Não é aquele ensino imediato e sistematizado, do tipo “bancário” (Paulo Freire), mas ensino no sentido de formação. Ao falar em paidéia “não se pode evitar o emprego de expressões modernas como civilização, cultura, tradição, literatura ou educação; nenhuma delas, porém, coincide realmente com que os gregos entendiam por Paidéia. Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global, e, para abranger o campo total do conceito grego, teríamos de empregá-los todos de uma só vez”. (JAEGER, 2003).

Essa palavra ocorre várias vezes em Hebreus 12. Mas em Apocalipse 3.19 traz resumidamente o princípio de Paidéia de Hb 12:

Apocalipse 3.19: “Repreendo e disciplino aqueles que eu amo. Por isso, seja diligente e arrependa-se”

A obra da graça em nós não se limita a salvar para a vida depois da morte. A obra da graça é, fundamentalmente, nos formar para vivermos eternamente sob o reinado de Deus. Transcrevemos a seguir algumas palavras de Dallas Willard sobre o assunto:

Ao contrário do que se costuma dizer, grande parte de nossos problemas não se deve à dificuldade de transferirmos para o coração aquilo que sabemos com a mente. Muitos dos empecilhos são associados ao fato de princípios teológicos equivocados em nossa mente terem chegado ao coração. Esses conceitos errados controlam nossa dinâmica interior de tal modo que, mesmo com a ajuda da Palavra e do Espírito, a mente e o coração não conseguem corrigir um ao outro. […] graça não é o oposto de esforço, mas sim, de mérito. […] A graça não diz respeito apenas ao perdão dos pecados. Muitas pessoas não sabem disso, e esse é um dos principais resultados da prática atual de resumir o evangelho a uma teoria da justificação. […] muitas pessoas entendem a justificação como o único resultado essencial do evangelho, e o evangelho que pregam […] é de que nossos pecados podem ser perdoados. E só!
(2008, p. 64).

A preocupação de Willard é que a justificação (perdão dos pecados) tornou-se o centro da teologia cristã. O problema é que, desta forma, alimentamos o termo cunhado por Dietrich Bonhoeffer (2004, p. 9-19), a saber, a graça barata. Para Bonhoeffer, a graça barata é a justificação do pecado, e não do pecador. É a graça que não implica em arrependimento e disciplina. “Não pode ser barato para nós aquilo que custou caro para Deus”. Resumindo, a graça barata é a graça sem discipulado, enquanto a maior graça que o ser humano pode receber é ser chamado para ser discípulo de Jesus.

Um discípulo de Jesus é aquele que obedece (Mt 28.20). O discípulo, como diz o texto de Tt 2.12, é aquele que aprende a renunciar o mundo que há dentro dela e moldar seu caráter com os valores do Reino de Deus.

Para viver dentro da graça consumidora, basta ter uma vida santa. O verdadeiro santo consome graça como um 747 consome combustível na decolagem. Torne-se o tipo de pessoa que pratica rotineiramente aquilo que Jesus fez e disse. Você consumirá muito mais graça levando uma vida santa do que pecando, pois todo ato santo que você realizar terá de ser sustentado pela graça de Deus. E esse sustento é o favor totalmente imerecido de Deus em ação. É a vida de regeneração e ressurreição […] a justificação não é algo separável da regeneração. E a regeneração se desenvolve de modo natural em santificação e glorificação. (WILLARD, 2008, p. 65).

 
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não haverá missão bem sucedida enquanto a mensagem que extraímos da Palavra de Deus não for o Evangelho do Reino em sua essência, conforme pregado por Jesus e pelos apóstolos.

A consequência de se pregar o Evangelho do Reino é que pregaremos compromisso, submissão, e a realidade da vida eterna aqui e agora. O inverso – o evangelho da salvação e da vida depois da morte – só poderá gerar falta de compromisso e falta de interesse, uma vez que só se extraí da cruz aquilo que se quer.

Não basta sermos pregadores da justificação e nos esquecermos da santificação e da esperança. Santificação é a vida no Reino hoje, que se dá pelo discipulado. Não há graça maior que essa. A vida no Reino é vida que está sendo formada, através do ensino, da repreensão, da alegria e do amor.

Queremos ser relevantes em nosso ensino? Devemos resgatar a essência do ministério de Jesus Cristo, isto é, o Evangelho do Reino de Deus. Devemos ser, em primeiro lugar, transformados por Ele, pois este Evangelho não se ensina somente com palavras, mas com vida e amor. (Tg 1.22; I Jo 3.16-18).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOMILCAR, Nelson (org.). O Melhor Da Espiritualidade Brasileira. São Paulo: Mundo Cristão, 2005.
BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. 8 ed. São Leopoldo: Sinodal, 2004.
BOSCH, David J. Missão Transformadora: mudanças de paradigma na teologia da missão. 3 ed. São Leopoldo-RS: Sinodal; EST, 2009.
GRENZ, Stanley; GURETZKI, David; NORDLING, C. Fee. Dicionário de Teologia Edição de Bolso. São Paulo: Vida, 2002.
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
LADD, George Eldon. O Evangelho do Reino. São Paulo: Shedd Publicações, 2008.
TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. 3 ed. São Paulo: ASTE, 2004.
WILLARD, Dallas. A Grande Omissão. São Paulo: Mundo Cristão, 2008.
______________. A Conspiração Divina. São Paulo: Mundo Cristão, 2001.  

10 COMENTÁRIOS

  1. Bom, ‚ pura verdade a explicação do articulista, pois ‚ só o que vemos dos mais novos pregadores. Isso tem atrapalhado o desenvolvimento da obra puramente cristã, como nos temos antigos, no tempo do comissionamento. O que vemos ‚ um gerenciamento de forma vergonhosa, pois vão perdendo o amor … disciplina de ser discipuladores e estão meramente est ticos. Ainda existem aqueles que estão na obra como se estivesse em um governo politico, desenvolvendo um projeto.

  2. EXCELENTE ENSINO. MINHA ORAÇÃO É QUE TODOS OS QUE FOREM ALCANÇADOS POR ELE, TENHA A MESMA VISÇO QUE ME FOI CONCEDIDA PELO PAI. E QUE NOSSO DEUS CONTINUE USANDO VOSSA VIDA NESSE MINISTÉRIO. SEJA ABENÇOADO EM NOME DE JESUS.

  3. ótima narrativa e articulação bíblica…
    Que Deus te conceda sempre sabedoria para ensinar e discipular pessoas segundo car ter de Cristo, mostrando a realidade do Reino e da pessoas de Jesus como tem que ser mostrado. parabéns!!!!!

  4. Ensino e discipulado, discipulado e ensino, são duas obrigaçäes que precisam ser retomadas por nós, Igreja de Cristo, como imperativos e não como possibilidades facultativas.

  5. Paz e graça do Senhor e Salvador Jesus Cristo! Amei o breve coment rio a respeito de discipulado e evangelização. Temos que evidenciar mais o Reino de Deus e procurar depositar o mais precioso naqueles neófitos da igreja de Cristo e prepar -los para a seara, pois o que infelizmente existe hoje ‚ um egocentrismo no campo do conhecimento pessoal( nunca passam ou estimulam os outros a buscar e compreender as palavras de Deus) Ec 9.1-18, Mc 16.15, Mt 28.19-20. Jesus nunca perdeu tempo, Mt 4.17

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