Caricaturas de Cristo (I): O Jesus politicamente correto

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Em uma peça teatral chamada “Corpus Christi” escrita por Terrence McNally e exibida nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Austrália, Jesus realiza um casamento entre homossexuais e é seduzido por Judas Iscariotes. Em outra peça, no festival “Glasgay” durante outubro e novembro de 2009, em Glasgow, Escócia, Jesus foi representado como o transexual Filha de Deus “Jesus A Rainha dos Céus”. Para a “teologia lésbica” da pastora Carter Heywood, da Igreja Episcopal nos Estados Unidos, Cristo é substituído por crista e tece-se o seguinte comentário: “o sofrimento e morte da crista pode representar o pecado de clérigos, homens de Deus que se opuseram às mulheres e ao nosso poder sagrado e erótico.”1 

Por incrível que pareça, estas visões modernas de Jesus têm precedentes antigas. O movimento herético conhecido como “Montanismo” anunciou uma nova dispensação no início do século III d.C. A figura do “ungido”, Montanus, encorajava a profecia extática e contava com o apoio das profetizas Maximila e Priscila, que proclamavam uma crista feminina. Além das profetizas da Crista, a seita dos carpocratas parece ter optada por um modo alternativo de discipulado, incluindo nos ritos de iniciação atos homossexuais. Quem pensa que o cristo feminino e o cristo homoafetivo é tudo novidade pensa errado: como diria o pregador de Eclesiastes, “não há nada novo debaixo do sol”.  

Dentro da realidade brasileira do século 21, porém, há algumas novidades. Em Brasília, a saga Malafaia x Willys e na mídia Gabi x Malafaia chama atenção ao dilema cristianismo-homossexualismo, estado laico x país cristão. No que se refere às caricaturas, uma rápida consulta na internet revela versões do jesus gay fotografadas desfilando nas paradas gay. Alguns anos atrás foi dito em colóquio por um teólogo brasileiro “Deus é gay”.2  Ainda me disseram que o discípulo amado seria, na verdade o discípulo amante de Jesus. Me poupe.

Como avaliar estas caricaturas, antigas e modernas, que divergem tão radicalmente do quadro tradicional e ortodoxo de Jesus Cristo? Minimizar a sua importância – “é apenas uma peça de teatro, apenas uma representação, apenas arte, apenas ficção, apenas uma manifestação cultural, apenas um conceito, apenas um comentário” – é cair na ingenuidade e negar a grave ofensa que tais representações causam a milhões de pessoas. Quando a peça de McNally chegou ao Reino Unido, o tribunal islâmico Shariah daquele país, considerando a peça blasfêmia – uma vez que, para os muçulmanos, Jesus é mensageiro e profeta de Alá – anunciou um fattwa (ameaça de morte) contra o autor.
Naturalmente, muitos cristãos ficaram pasmos com a caricatura que McNally fez de Cristo, se bem que – omissa e morna tanto quanto a igreja de Laodiceia – a Igreja da Inglaterra não fez nenhum pronunciamento oficial a respeito.

Evidentemente os jesuses mencionados acima são caracterizações extremas que aparentemente tencionam causar polêmica, inevitavelmente escandalizando as pessoas. Representam o ponto de vista radical de uma minoria militante – obviamente, nem todos os homossexuais aplaudiram a peça de McNally com sua aguda falta de sensibilidade e decoro. Porém, despido dos trapos mais exagerados, por trás do jesus dos teatros e das teologizações ultrafeministas, encontra-se o jesus politicamente correto, o jesus do lobby gay. Produto da cultura secular, o jesus ‘PC’ aparece com o discurso alegadamente sofisticado do “homem (pós)moderno.” Independente da escassez das evidências, acredita “como todo mundo” que o homossexualismo é geneticamente predeterminado, e embora não seja homossexual, afirma a normatividade da prática homossexual. Em vez do jesus gay que tem um caso com Iscariotes nos deparamos com o jesus simpatizante.

Em relação a esse jesus PC é comum ouvir comentários do tipo: “Já que Jesus amou a todos, se estivesse aqui, certamente seria defensor da causa LGBT”. Aplaudindo, recentemente, a iniciativa do governo britânico de legalizar o casamento gay, a pastora presidenta da Fraternidade Evangélica de Cristãos Lésbicas e Gays (EFLGC) afirmou: “Todos nós somos filhos de Deus e Ele nos ama igualmente, por que então não posso me casar com a pessoa que amo?” 3

Nos fóruns da internet, no colégio ou na parada de ônibus, ao comentar este assunto o povo se expressa com tamanha convicção e até indignação, “Jesus não disse nada a respeito deste assunto, e ponto final!” É subentendido que o aparente não posicionamento de Jesus por meio do “silêncio” equivale à conivência ou aprovação. Mas, se a questão for tão simples assim, se está tão nítido que Jesus apoia a causa, por que tanta resistência da maioria de cristãos, e por que aqueles intermináveis debates na internet, no colégio, na parada de ônibus, e no planalto? Enfim, a dificuldade com o jesus PC se resume simplesmente ao preconceito e conservadorismo dos dirigentes das igrejas e dos 40 milhões de evangélicos brasileiros, ou trata-se de algo mais fundamental?

(i) Separando as coisas…
É preciso separar as coisas. Falar de Jesus é uma coisa, falar dos dirigentes das igrejas atuais é outra. Falar de cristãos que têm uma orientação homossexual é uma coisa, falar de militantes da causa (cristãos ou não), é outra. A infeliz lógica das caricaturas pesa aqui, pois oponentes ideológicos tendem a distorcer a visão do outro, daí o debate descamba pelo viés contraproducente dos apelidos, rótulos e generalizações. Para os propósitos deste ensaio – o primeiro de uma série relacionada às caricaturas contemporâneas de Cristo – falaremos somente de Jesus.

Incondicionalmente e categoricamente, Jesus ama as pessoas homossexuais. Qualquer afirmação contrária a esta verdade seria antibíblica e anticristã. Vou além. Caso aparecesse por aqui em carne e osso Jesus abraçaria, física e metaforicamente, pessoas gays. Ele estaria na companhia delas, andaria com elas, jantaria, conversaria e riria com elas. Enfim, Jesus as acolheria em amor – assim como a igreja atual deveria. É igualmente certo que Jesus denunciaria toda violência homofóbica, repudiando quaisquer agressões verbais e físicas ao indivíduo. Jesus jamais tolerava o bullying. Por outro lado, para o nosso constrangimento, Jesus revelaria a hipocrisia de líderes cristãos que vivem uma vida dupla moral, (cf. Mt. 7.1). Alguns seriam surpreendidos ao entender que estejam na condição dos infelizes excluídos da presença de Jesus – é bom que nos relembremos de Lucas 6.46:  “Por que me chamais: Senhor, Senhor e não fazeis o que eu vos mando?”.

É certo, pois, que Jesus seria o defensor das pessoas que autoidentificam como gays, mas defender a causa gay? Isto é outra história! Abraçar a pessoa não é igual a abraçar sua causa. Amar incondicionalmente a pessoa não é igual a concordar com tudo que ela faz ou diz. O problema, com certeza, é que para muitos homossexuais a opção sexual forma parte importante (em alguns casos a mais importante) da identidade pessoal. Imaginar que ninguém menos que Jesus Cristo discordasse com a prática homossexual seria um afronto pessoal.   

Em relação às causas, é bom relembrar que a única causa que Jesus defendeu – à exclusão das demais – era aquela comparada ao grão de mostarda, a do Reino de Deus. Muitas vezes, Jesus andava frustrando aqueles que imaginavam que ele levantaria sua bandeira, que abraçaria sua causa. Isso valeu até para os próprios discípulos, cujos projetos e interesses pessoais tendiam a aparecer – a exemplo do “pedido” infeliz de Tiago e João: “queremos que nos faças o que te pedirmos” (Mc 10.35 (cf. 10.35-45). Assim como alguns lamentavam que Jesus se recusava a viver pela espada como algum tipo de messias militar, alguns lamentarão o fato de que Jesus se recusa a se enquadrar como um porta-voz politicamente correto.

(ii). Ligando os pontos…
É verdade que até onde saibamos, Jesus não disse nada diretamente sobre a homoafetividade. Como cristãos bíblicos, sensíveis aos contornos do debate contemporâneo, a falta de algum pronunciamento categórico nos obriga a retornar aos relatos contidos nos evangelhos para perscrutá-los, a fim de determinar qual a atitude de Jesus perante a homossexualidade. Como a criança que liga os pontos para revelar a forma do desenho, creio ser possível recriar das evidências bíblicas a perspectiva de Jesus quanto à sexualidade humana.
    
Em primeiro lugar, sobre o “silêncio” de Jesus é preciso frisar: presumir que o silêncio equivale ao consentimento é apoiar-se em um preceito suspeito. Na realidade, como outros religiosos judeus da época, Jesus afirmou a normatividade do casamento entre o homem e a mulher como propósito de Deus desde a criação do mundo (Mc 10.7-9). Além do mais, como pregador, afirmou a legitimidade das Sagradas Escrituras (o Antigo Testamento), inclusive o segmento de livros (Torá) que entre outras práticas sexuais, condena atos sexuais realizados entre pessoas do mesmo sexo. Se algumas dimensões da lei hebraica foram reinterpretadas ou, até certo ponto, revogados por Jesus, como por exemplo, a legislação tratando de comida (veja Mc 7.1-19; cf. At 10.9-16), torna-se notável que ele não mexeu com aquilo que se refere à prática homossexual.

Porém, no ministério pastoral de Jesus, transparece algo radical e novo que surpreende tanto os discípulos como os adeptos e intérpretes da Torá. No fascinante diálogo de Jesus e a mulher samaritana em João 4, a justiça dá lugar à misericórdia. Embora Jesus confronte esta mulher com a realidade do seu pecado (Jo 4.18), ele não se interessa em intimidá-la, pois não faz menção da gravidade das transgressões dela, nem o castigo da lei que suas ações acarretariam. A palavra de Jesus para a mulher é uma palavra restauradora, uma palavra de orientação que aponta, implícita ou explicitamente, para a necessidade de mudança e modificação do seu estilo de vida: “Deus é Espírito, e é necessário que os que o adoram o adorem no Espírito e em verdade” (Jo 4.24).

Ademais, vemos o exemplo da mulher apanhada em adultério. Visto que a leitura dos meninos judeus costumava ser provada a partir do livro de Levítico por ser uma leitura desafiadora, totalmente familiarizados com o mesmo, os homens judeus conheciam de cor o que a letra da lei demandava nessas circunstâncias. Como a prática homossexual, ao pé da letra, o adultério levava a pena de morte. Em João 8, pois, parecia que a questão da mulher só seria resolvida desta forma severa. Mas, quando a multidão cercava a mulher apanhada em adultério (Jo 8.1-12) Jesus reagiu de forma inesperada. O que será que Jesus rabiscasse na areia?  É tentador conjeturar que Jesus tivesse escrito em grandes letras a mensagem dos profetas Oseias e Miqueias: “QUERO MISERICÓRDIA E NÃO SACRIFÍCIOS” (Os 6.6; cf. Mq 6.8). Ou será que Jesus simplesmente escrevesse: “misericórdia,” ou quem sabe, “hipocrisia”? De fato, este é o único registro em todo o Novo Testamento em que Jesus escreve alguma coisa – (e, para nossa frustração, não sabemos o que foi escrito!). Sabemos, porém, que a vida da mulher “pecadora” foi salva. Novamente, Jesus não mostra interesse no poder executivo do mandamento veterotestamentário. A sentença que ele pronuncia é “Vás, e não pequeis mais” (Jo 8.11). Com Jesus, a justiça divina dá lugar à divina misericórdia, ou melhor, nele, a misericórdia divina e a divina justiça convergem.

Pelo viés da analogia, creio ser esta a palavra do Mestre em relação a todo e qualquer conduta sexual que foge do padrão bíblico. Creio que esta é a palavra de Jesus para o pecado sexual de qualquer ordem que, como costumava dizer John Stott, subitamente invade o nosso íntimo tomando conta da nossa vida quando menos esperamos, com uma força bastante potente. A meu ver, pois, é 99,9% improvável que Jesus abraçaria a causa daqueles que rejeitam o ensino das Sagradas Escrituras sobre a sexualidade humana. Nos evangelhos, Jesus de Nazaré costuma fazer perguntas incômodas e duras ao indivíduo sem acepção de pessoas – do rabino à meretriz,  dos discípulos aos ladrões – mas, sempre em tom de compaixão como revela o seu diálogo com o “moço rico” (Mc 10.21). O problema com a caricatura de Jesus que vai à defesa da causa gay, é que, diferente de Jesus de Nazaré, o jesus politicamente correto não contesta a filosofia da época, não questiona, não faz perguntas incômodas, não discorda, nem desafia. É um jesus domesticado que – tal como o aparelho celular – foi obrigado a permanecer no “modo silencioso” para evitar qualquer constrangimento. É um jesus obséquio, imaginário e irreal, um jesus incapaz de transformar e sem interesse em salvar a alma das pessoas amadas profundamente pelo seu Pai celestial.

Ademais, vejo como sobretudo irônico, o fato de que na sociedade britânica – uma sociedade que ousa se definir como “tolerante” e respeitadora da diversidade – ninguém menos de que Jesus Cristo seja obrigado a mudar de opinião e no caso do jesus “transex”, até de gênero! Na retórica perversa de alguns, Jesus acaba sendo manipulado como fantoche, reinventado a fim de que vire peça de xadrez na tábua da filosofia social prevalente. Evidentemente, a busca pela contextualização de Jesus exige uma descontextualização radical. Remodelado no barro do socialmente aceitável, Jesus é transformado no jesus dos formadores de opinião. Como um peão na mão da mídia, o jesus PC é empurrado pra lá e pra cá no palco do absurdo. Vivemos em tempos paradoxais, é nos bastidores da globalização que se move a colonização das ideias.

Como expressada de forma equilibrada no artigo 1.10 das Resoluções da Conferência de Lambeth de 1998 (conferência anglicana mundial), na condição de cristãos bíblicos, batemos na tecla que a homofobia e o patriarcalismo têm de ser denunciado, isto é indiscutível. Que Jesus seria defensor dos homossexuais, das mulheres, dos transexuais e de qualquer segmento “minoritário” da sociedade é óbvio para quem tem a mínima familiaridade com os relatos dos evangelhos. O problema é que ao redesenhar Jesus na sua própria imagem e semelhança, os ativistas que lideram estes movimentos confundem pessoas com causas, almas com ideias. Jesus abraçou todas as pessoas mas não abraçou todas as causas. Jesus, conforme, 1Pedro 2.25 é “o bispo das suas almas”, mas nem por isso entendamos que aprova todas as nossas ideias, planos, propostas e propósitos.

Para o mal da sociedade, em nossos dias perdemos de vista o único Jesus que é verdadeiramente relevante e relevante verdadeiramente. Este Jesus encontramos, ou melhor, ele nos encontra por meio dos evangelhos canônicos. É o Jesus de Mateus, Marcos, Lucas e João que veio ao mundo não para julgá-lo, mas para salvá-lo (Jo 3.17). Este é Jesus, o Filho de Deus que “esvaziou a si mesmo, assumindo a forma de servo” (Fp 2.7), o Jesus que morreu para todos – homem, mulher, judeu, gentio, livre, escravo, homo e hetero.

Faço as minhas as palavras do Reverendo Professor Gerald Bray, que em uma carta enviada ao jornal britânico “The Times,” publicado no 24.04.12 afirmou o seguinte, “Gay ou hetero, não há nenhuma discriminação aos pés da cruz. Todos nós somos pecadores que ouviram a promessa do Evangelho que comunica-nos que quando nascemos de novo em Cristo, as coisas desse mundo passarão e libertados, andamos em novidade de vida.”

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1HEYWOOD, C. Touching our Strength: the Erotic as Power. New York: Harper, 1989.
2CAVALCANTI, R. Reforçando as Trincheiras. São Paulo: Vida, 2007: 36.
3Em uma entrevista dada ao Sky News em 11.12.12.

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