O caso das citações do AT no NT já é um conhecido “campo de batalha” para a maioria dos ramos da erudição conservadora. Estudos recentes quanto à natureza, extensão e o método da inspiração têm sido motivados pelo uso das citações veterotestamentárias, estudos estes que refletem às vezes uma perspectiva um tanto frouxa do texto sagrado da parte dos autores levantados pelas citações não são, de modo algum, menos intrigantes. A tendência que prevalece, mesmo entre eruditos conservadores, tem sido de tornar os autores cristãos em grande parte dependentes dos métodos judaicos de interpretação, tais como o Pesher e o Midrash. Isso tem sido levado a tais extremos que Paulo parece não passar de um plagiador hermenêutico que procura no judaísmo palestino um modo de introduzir o “evento de Cristo” em todo canto e fresta do AT.
O presente ensaio reflete o crescente interesse de seu autor no uso da profecia de Isaías pelos escritores do NT. Este ensaio procurará indícios, mais do que respostas, às questões quanto à maneira pela qual os textos citados foram entendidos e aplicados. O que o autor espera fazer com este estudo é lançar luz sobre a tese que afirma que os escritores neotestamentários, e Paulo em especial, estavam bastante conscientes da natureza sagrada do texto do AT ao citarem o que julgavam ser passagens apropriadas a um ataque à ideia que declara ser possível reivindicar inspiração divina (mesmo que falível!) para escritos que são tidos como distorções dos textos usados como apoio tanto para seus ensinos doutrinários quanto éticos.
1. A FUNÇÃO DOS CAPÍTULOS 9-11 NA EPÍSTOLA AOS ROMANOS
1.1 A Conexão entre os capítulos 9-11 e a Epístola como um Todo
Estes três capítulos têm sido vistos sob diversas perspectivas por diferentes intérpretes. Morris indica que Krister Stendahl crê que eles sejam o coração da carta, enquanto Lloyd-Jones os considera como um post-script do capítulo 8. Hunter e Dodd sugerem que os três capítulos são uma composição independente que, apesar de paulina, é estruturalmente distinta do restante do livro, onde funciona como um parêntese. Posições como essas, entretanto, comprometem seriamente o efeito que a epístola teria tido nas vidas dos leitores originais. A menção frequente de judeus e gentios, bem como de um contraste entre ambos os grupos ao longo da carta, sugere um tensão crescente entre os dois segmentos da igreja em Roma. Paulo lidou com ambos tanto em uma base teológica (1.18-8.39) quanto prática (12.1-15.13). Portanto, gentios e judeus deveriam viver em harmonia porque ambos eram culpados diante de Deus (1.18-3.20), ambos foram reconciliados com Deus mediante a obra salvífica de Cristo (3.21-5.21) e ambos receberam uma nova vida caracterizada por vitória sobre a antiga servidão ao pecado através da habitação do Espírito Santo (pp. 601-839). Tais fatos (indicativos) são seguidos de imperativos nos capítulos 12-15, os quais se concentram em relacionamentos interpessoais – particularmente na questão de dialogismon (Rm 14.1), na qual costumes judaico-gentílicos recebem certo destaque.
A conexão entre o tratado teórico-teológico dos oito primeiros capítulos e a aplicação prática que Paulo faz na parte final é uma análise histórico-profética do status de Israel diante do Deus da aliança. Sem essa ponte histórico-profética, a parte aplicativa da epístola perde o seu impacto, enquanto o tratado teórico-teológico deixa descoberta a questão importantíssima de se de fato Deus relegou Israel a um ostracismo quanto à revelação e ao seu relacionamento com Ele.
Isso, de modo algum, nega a unidade fundamental dos capítulos 9-11, mas sugere que eles pertencem a uma unidade maior, como é indicado pelo parágrafo inicial (9.1-5), um elaborado contraste com a gloriosa declaração de 8.38-39. A afirmação de que a justiça de Deus alcança uma segurança definitiva, para aqueles que adequadamente se relacionam com Ele, poderia ser contestada por um observador criterioso, à luz da rejeição de Israel em favor da igreja cristã. Paulo, com a emoção típica (9.1-5), começa a tratar do assunto que, como indicado acima, tinha aparentemente um efeito divisor na igreja de Roma, i.e., a aparente rejeição de Israel do plano de Deus (cf. exortação em 15.7, por exemplo, onde a questão de rejeição está claramente em pauta).
O presente autor, portanto, dispõe-se a concordar com Stendahl em ver os capítulos 9-11 como cruciais na carta, pois eles (1) fornecem uma defesa contra a objeção mais clara ao tópico fundamental da epístola, a justiça de Deus, e (2) formam a base para as exortações práticas nos capítulos 12-15.
1.2 A Unidade e os Principais Temas da Carta
A unidade entre Romanos 9-11 e o restante da carta também pode ser vista pela presença dos principais temas encontrados nos capítulos 1-8. Na primeira parte do argumento, Paulo demonstrou que tanto os judeus quanto os gentios são culpados diante de Deus. A culpabilidade de Israel é enfatizada em 9.30-10.21. A provisão divina de justiça para ambos os grupos aparece no fim do capítulo 3 (vv. 21-31), enquanto em 9.24-11.15 Paulo enfatiza as bênçãos alcançadas pelos gentios por causa da presente condição de Israel. O conceito de eleição, que forma a base da segurança do crente, é tratado em maiores detalhes nos vv. 6-29.
Riggs indica que o paralelismo mais claro encontra-se entre 3.1-8 e o conteúdo de 9-11. A questão quanto aos privilégios dos judeus (3.1) encontra sua resposta definitiva em 9.4-5. A questão da fidelidade de Deus (3.3), abordada em resumo no capítulo 3, encontra sua resposta apropriada em 9.6-13. A objeção final no capítulo 3, de que Deus é injusto porque usa da falha humana para ressaltar sua fidelidade, é tratada em 9.14-29. Nesses versos, pensamentos quanto à soberania e paciência divinas complementam o conceito de injustiça da parte de Deus. Os capítulos 10 e 11 desenvolvem respectivamente: a alegada falha da justiça de Deus, indicando que Israel era realmente a parte culpada, e a maravilhosa promessa de que a infidelidade de Israel não cancela a fidelidade de Deus, ao contrário, Ele usa a falha humana para ampliar o alcance de Sua salvação.
1.3 As Características Literárias de Romanos 9-11
Não é apenas o conteúdo de Rm 9-11 que se relaciona estreitamente com a mensagem básica e com os temas específicos da carta. A técnica literária básica empregada nos capítulos 9-11 também é encontrada nos capítulos 1-8 e serve como prova adicional da unidade entre as duas partes. Esta técnica simples consiste no uso de (a) perguntas retóricas cujo propósito é (1) responder a objeções; (2) resumir argumentos; e (3) prevenir mal-entendidos. Doze dessas perguntas encontram-se em 9-11, enquanto que aproximadamente vinte e oito delas são encontradas nos oito primeiros capítulos, num equilíbrio bem dosado entre as duas partes; (b) afirmações que ora dão base para um argumento secundário ou derivam dos mesmos. Os aspectos diferenciais em Romanos 9-11 são as citações das Escrituras (AT), muito mais frequentes aqui do que nos capítulos 1-8 (há um total de quinze citações em Romanos 1.18-8.39, contra trinta e duas em 9.1-11.36). Dessas citações (em 9-11), doze (aproximadamente 40%) são do livro de Isaías. Este fato realmente faz sentido. O grande profeta do sétimo século tinha como tema básico a manifestação da salvação final de Deus através do justo governo de seu Servo, em quem Sua bênção prometida a Israel iria se concretizar. Tal tema é evidente em Romanos 9-11, na condição culpada de Israel (cf. 9.30-33) e na validade ininterrupta das promessas feitas à nação (cf. 11.1, 11, 29). Essas citações de Isaías serão o interesse principal deste artigo, sendo centrais no argumento dos capítulos 9-11 e, em virtude da unidade fundamental desta parte com o livro todo, cruciais para a compreensão de Romanos.
2. A NATUREZA E A LÓGICA DAS CITAÇÕES DE ISAÍAS EM ROMANOS 9-11
2.1 O Suposto Tratamento Paulino do Antigo Testamento
Longenecker declara enfaticamente que a marca mais profunda da herança judaica de Paulo como apóstolo é detectada no seu uso do AT. Com isso ele quer apontar não somente para a aplicação às chamadas “sete regras de Hillel”, mas também à prática de interpretações do tipo Midrash, que exigiam uma grande liberdade na manipulação do texto do AT. Ele concorda com T. W. Manson, ao citá-lo, dizendo que a maior preocupação de Paulo era com o significado do texto e, uma vez que o mesmo havia sido determinado mediante algum procedimento hermenêutico qualquer, a “reprodução acurada das palavras tradicionais dos oráculos divinos tomou lugar secundário em relação ao que era tido como o seu significado essencial e aplicação imediata.” Esse conceito permeia toda a literatura investiga da pelo presente autor, mas não pode ser aceito por aqueles que afirmam a inerrância de toda a Escritura. Portanto, uma análise das citações de Isaías em Romanos 9-11 é necessária como uma orientação provisória na defesa de um método hermenêutico paulino mais conservador e orientado pelo texto (do AT), o que deveria servir como modelo para nosso uso pessoal do AT.
2.2 Uma Lista das Citações de Isaías em Romanos 9-11
Como foi observado acima, há doze citações explícitas de Isaías em Romanos 9-11. Esse uso vasto (40% do total) sugere que o assunto com o qual Paulo estava lidando nestes capítulos (1) foi tratado por Isaías; ou (2) era paralelo a algum tema tratado por Isaías; ou (3) foi a culminação de um processo já presente na época de Isaías. A última alternativa é a adotada pelo autor como razão da predominância das citações de Isaías no texto.
O que se segue é uma tentativa de alistar todas as citações explícitas de Isaías nos capítulos 9-11 da carta de Paulo aos Romanos como um primeiro passo na sua classificação e utilização.
Juntamente com essas citações explícitas, introduzidas formalmente por uma expressão ou frase, duas outras passagens em Isaías são usadas como alusões por Paulo, Isaías 8.14 (Rm 9.32) e Isaías 29.16 e 45.9 (Rm 9.20). A distinção entre citação e alusão aqui utilizada é meramente formal (presença ou ausência de uma fórmula introdutória) e não deve ser exagerada. O uso que Paulo fez de uma ou outra seguiu o mesmo princípio que governa as alusões (das quais as citações são formas especiais), i.e., que pelo seu uso numa obra literária o leitor será capaz de ligar um ou mais elementos em um texto qualquer com outros elementos independentes e não idênticos num texto evocado.
CITAÇÕES DE ISAÍAS E ROMANOS 9-11
ROMANOS ISAÍAS FÓRMULA INTRODUTÓRIA CONCORDÂNCIA
9.27-28 10.22-23 dele clama Isaías N
9:29 1.9 como Isaías já disse G
9.33 28.16 como está escrito N
8.14
10.11 28.16 a Escritura diz N
10.15 52.7 como está escrito N
10.16 53.1 Isaías diz G
10.20 65.1 E Isaías a mais se N-G
atreve, e diz
10.21 65.2 Quanto a Israel, G
porém, diz
11.8 29.10 como está escrito N
11.26-27 59.20-21 como está escrito N-G
27.9
11.34 40.13 pois N-G
Nas citações alistadas acima as siglas empregadas devem ser entendidas de acordo com a seguinte descrição:
G/H = Concorda com a Septuaginta que concorda com o texto Hebraico (TM)
G = Concorda somente com a Septuaginta
H = Concorda somente com o Texto Massorético
N = Não concorda nem com o Texto Massorético nem com a Septuaginta
N-G = Não concorda com nenhum dos dois, mas está mais próximo da Septuaginta
2.3 Terminologia e Definições
A fim de se proceder a uma análise das passagens acima, é necessário definir clara e corretamente as categorizações normalmente empregadas por eruditos nos estudos paulinos. Uma vez que Longenecker e Ellis têm sido dois dos mais destacados estudantes do assunto, suas definições servirão de base para o presente estudo. Os dois termos cruciais nesta investigação são o Midrash e o Pesher. Esses dois termos se tornaram tão frequentes na literatura paulina que os eruditos, aparentemente, presumem que qualquer uso que Paulo faz do AT vai cair em uma das duas categorizações.
O Midrash é definido por Ellis como um “comentário… uma contemporização da Escritura a fim de aplicá-la ou de torná-la significativa à situação presente”. Essa definição é expandida em referência a uma double entendre (i.e., “de significado duplo”), “alterações interpretativas do AT”, “citações combinadas ou compostas de vários textos do AT, alterados para serem aplicados à situação vigente”, e o uso de “fraseologia bíblica” para relacionar um evento com passagens do AT.
Mesmo que esta definição soe inocente, há um perigo inerente no uso da palavra “alteração”, pela qual os autores frequentemente querem dar a entender uma distorção intencional das palavras originais ou do significado das passagens citadas ou aludidas. O presente autor tem como preocupação a ocorrência cada vez mais frequente do termo Midrash nos círculos conservadores sem essa salvaguarda. O perigo é que as pressuposições que se tem sobre a natureza da inspiração bíblica vão impedir o exegeta de fazer uma exegese objetiva. Um exemplo de Ellis será o suficiente.
Ao exemplificar o Midrash, ele usa Romanos 10.11, que é uma citação de Is 28.16, dizendo: “A palavra ‘todo’ não está no texto do AT, ela representa a interpretação de Paulo mesclada na citação e melhor servindo ao seu argumento (10.12s)”. Assim, Romanos 10.11 é promovido (ou demovido) à categoria de Midrash, porque o adjetivo grego pas não estava no texto do AT, sendo uma adição interpretativa de Paulo. Ellis certamente sabe que a construção hebraica: “artigo definido” + “particípio” recebe uma construção “qualquer que seja” muito naturalmente. Assim, ainda que a tradução de Paulo contenha, sem dúvida, um elemento interpretativo, isso não é realmente uma adição ou alteração; é apenas uma maneira normal de traduzir o texto do AT. O pré-entendimento de Ellis em relação ao uso que Paulo faz do AT determinou previamente o modo pelo qual ele iria classificar a passagem em Romanos.
A definição de Longenecker contém a essência do problema aqui levantado. Ele diz: o Midrash designa “uma exegese que, indo mais profundamente do que o sentido literal, tenta penetrar no espírito das Escrituras para examinar o texto por todos os lados, derivando assim interpretações que não são imediatamente óbvias”.
O Pesher não é muito diferente do Midrash, já que também procura a contemporização do AT. Mas o Pesher vai além do Midrash no sentido de que virtualmente nega à passagem em pauta qualquer significado no que diz respeito ao contexto em que ela surgiu ou foi registrada. Esta perspectiva pode ser observada na compreensão que os membros da comunidade de Qumran possuíam quanto ao AT como algo dado principalmente para o seu próprio beneficio e cuja mentalidade exegética era o iminente cumprimento escatológico. Uma maneira simples de entender esta forma de interpretação mais radical (que Ellis classifica como um tipo de Midrash) nos é oferecida por Longenecker. Enquanto a exegese rabínica do tipo de Midrash afirma que “aquilo tem relevância para isto”, o tipo de exegese Pesher de Qumran dizia que “isto é aquilo”. Consequentemente, quando Raphael Vincent, por exemplo, escreve sobre um Derash Homilético em Romanos 9-11, não está fazendo qualquer distinção entre um e outro tipo. Ele, na realidade, aglomera todas as citações debaixo da categoria Midrash. Da mesma forma, Dinter generaliza ao falar da “marcante presença da interpretação midráshica em Romanos 9-11”, juntando artificialmente passagens que outros desejam separar.
Dadas essas definições e observações preliminares, é hora de examinar as citações alistadas acima para ver se elas apontam na direção de Midrash e Pesher como uma técnica de interpretação paulina típica.
2.4 Análise Individual das Citações
2.4.1 Romanos 9.27-28
Esta passagem, que cita Is 10.22-23, serve no desenvolvimento do capítulo como uma antecipação de uma possível objeção do tipo: “Se Jesus de Nazaré é realmente o Messias de Israel, como a maior parte do povo O rejeitou?,” ao expandir o pensamento da eleição soberana por Deus de judeus e gentios para a salvação (9.22-25).
Sua forma textual não se conforma nem com o TM nem com a LXX, sugerindo uma tradução livre com omissões deliberadas. As palavras omitidas estão relacionadas com a promessa da destruição dos receptores originais das palavras de Isaías, que Paulo aparentemente resume com o termo geral logos. O contexto de sothesetai significa, literalmente, “retornar”. Será que isto aponta para uma interpretação tipo Midrash? Assim pensa Vincent, que diz que “ambos actualizam el texto”.
Isso, porém, é desnecessário, desde que em seu contexto histórico (a invasão de Judá pela Assíria) o significado do verbo hebraico shub englobaria a implicação de libertação, salvação da destruição pelo exército invasor. A promessa de Isaías do retorno de um remanescente (uma paranomasia com o nome de seu filho) se relacionava à crise contemporânea, mas também com a história de Israel como um todo de maneira típica. O que acontece, então, é que Paulo toma a categoria básica empregada pelo profeta e, sem alterar sua conotação original, expande-a para a situação presente, o que é legítimo, pois, como Morris indica, “um remanescente de Jacó retornará ao Deus Forte” (Is 10.21), não apenas à Palestina depois do cativeiro.
Em ambos os casos, fé foi o elemento crucial. Como parecia impossível a Acaz e sua corte confiar na mensagem de salvação da Assíria coma base na pura confiança em Javé, assim também parecia impossível aos judeus dos dias de Paulo aceitar pela fé um Messias crucificado. Em ambos os casos, um pequeno remanescente arriscou confiar em Deus e recebeu Sua salvação. Em resumo, o que Paulo está fazendo é aplicar o princípio histórico determinado por Isaías de que a indisposição de crer vai resultar em julgamento imediato (outra paranomasia de Isaías). A citação assume proporções dramáticas quando se percebe a urgência de Paulo quanto à situação política entre Israel e Roma. A destruição no passado pairava sobre os judeus como uma massiva espada de Dâmocles, e somente confiança na mensagem de Deus iria desviá-la, mas a nação como um todo não o quis. Portanto, a escolha de Isaías 10.22-23 é crucial desde que Israel mais uma vez entrou no ciclo da rejeição e estava pronto para o julgamento de Deus. Não é de admirar que Paulo sentisse profunda emoção quanto ao destino de seu povo (cf. 9.1-3).
2.4.2 Romanos 9.29
O contexto histórico desta citação é uma invasão devastadora de Judá por Tiglate-Pileser III (não registrada na Escritura embora indicada em Is 1). O texto de Romanos segue a LXX e tem como diferença mais evidente em relação ao Texto Massorético o uso de sperma para traduzir o hebraico sarîd Kimehat. Essa mudança é uma técnica midráshica de Paulo ou ele está apenas citando a LXX sem nenhum referencial teológico em mente?
A resposta apropriada é, na opinião do presente autor, “nem um nem outro”. O sentido de Isaías é que somente a graça da aliança divina desviou o aniquilamento total nas mãos dos assírios. Os pecados de Judá eram tão hediondos que mereceriam o mesmo destino que Sodoma e Gomorra, e ainda assim Deus poupou a nação moribunda por amor do remanescente. Nos dias de Paulo, de igual modo, o pecado da rejeição da mensagem de Deus e de Seu mensageiro era passível de obliteração. Mesmo assim, a graça de Deus poupou a “semente” através de quem as promessas poderiam ser legitimamente concretizadas. Esta é, provavelmente, a razão pela qual Paulo reteve o termo sperma da LXX, pois o mesmo provê uma ligação natural com a parte inicial do capítulo (9.4) e os propósitos eletivos de Deus através da descendência de Isaque (9.7-8). Ainda mais, o termo “semente” fala de potencialidade e de continuidade.
Finalmente, a menção de Sodoma e Gomorra destacou a natureza graciosa de tal preservação, assim como Ló havia sido preservado da destruição total com base na amizade entre Abraão e Deus.
Portanto, o uso que Paulo faz de Isaías está de acordo com suas afirmações prévias sobre a graça eletiva de Deus na história da nação e com a percepção de Isaías da atividade salvadora de Javé no seu próprio tempo. A mudança de termo reflete o uso genérico que Paulo faz da LXX e a sua percepção de que a tradução transmitia o significado básico do profeta, enquanto também lhe forneceu uma Stichwort (palavra de ligação) que iria unir o capítulo mais facilmente nas mentes de seus leitores.
2.4.3 Romanos 9.33
Esta passagem apresenta mais do que o cabedal normal de problemas para o intérprete. Primeiro, ela é uma citação composta de dois textos diferentes em Isaías. Segundo, ela diverge significativamente tanto do Texto Massorético quanto da Septuaginta. E, por fim, dá às palavras de Isaías um significado bem diferente daquele pretendido pelo profeta.
Cranfield argumenta que Isaías entendia originalmente suas palavras como uma designação de Sião como o “lugar” onde Deus iria prover segurança àqueles que confiassem Nele. Vincent, por outro lado, sugere que Paulo emprestou a regra rabínica da analogia (gezerah shawah), a fim de construir sua tese, iluminando mutuamente dois textos que compartilham uma palavra comum, embora com significados diversos. O uso de citações compostas não é, por si só, um problema, desde que ambos os textos são usados de um modo compatível com seus significados originais. A questão do texto, porém, merece atenção desde que é uma das razões por que esta passagem é considerada como exegese midráshica ou tipologia pré-paulina.
A LXX aparentemente lê yebosh ao invés de yahish do Texto Massorético, chegando assim à expressão ou mê kataischyne. Ainda mais, o(s) tradutor(es) grego( s) adicionou ep’ auto onde o hebraico não possui objeto. Paulo concorda com a LXX nesta parte da citação. É possível justificar Paulo quando este adota a leitura da LXX; “não será confundido”, em vez do hebraico: “não fugirá”? Será isso, por si só, um uso midráshico da profecia? O presente escritor acredita que não, principalmente porque a LXX poderá ter usado o que Paulo considerou uma paráfrase válida baseada na intenção autoral desta profecia de ruína dos líderes apóstatas dos dias de Isaías.
Contra o contexto de manobras políticas e de infidelidade religiosa da parte da liderança de Israel, Isaías levanta a bandeira da confiança em Javé como meio de salvação (numa referência fundamental, libertação histórica). A consequência da incredulidade seria a invasão e a devastação rápida de Jerusalém e seus habitantes (Is 28.17), os quais fugiriam com pressa (hish) ou seriam esmagados (Is 28.18). De acordo com essa análise, a ação de fugir com pressa do inimigo invasor seria a causa para completa vergonha diante daqueles cuja fé em Javé os líderes ridicularizaram. Assim, Paulo teria visto a LXX fornecendo, por assim dizer, uma metonímia de efeito em sua tradução, a qual ele reteve em virtude de preservar a ideia original de Isaías.
A outra razão pela qual esta passagem é considerada um Midrash é a aparente referência a Sião como a rocha, o lugar de refúgio para os crentes. Essa ideia, defendida por Cranfield (cf. n. 24, supra), deriva apoio do fato de que o Targum de Isaías 28.16 apresenta: “Eis que eu estabeleço em Sião um rei, um rei poderoso”. A implicação é que a compreensão messiânica cristã da passagem era baseada não em Isaías, mas no Targum.
Isso também deve ser rejeitado. Como A. T. Hanson argumenta, Paulo não citou Isaías (ou qualquer outra parte do AT) num vácuo histórico, mas ele considerou cuidadosamente o contexto histórico do texto citado. Seria “pedir demais” crer que Paulo não estivesse ciente do conjunto de passagens em Isaías onde o conceito de rocha era usado em relação a Deus. A própria passagem que ele combina com Isaías 28.16 é prova de que o sentido básico de Isaías era a pessoa de Deus, e que Sião compartilhava do conceito de refúgio somente em virtude de sua posição como o lugar de manifestação de Deus na terra. Isaías 17.10 oferece um paralelo esclarecedor, quando alude ao esquecimento da parte de Israel do Deus de sua salvação, “da Rocha da tua fortaleza”. Aqui a metáfora comum é sur, que permeou o conceito de Israel sobre Deus desde o começo da sua história (cf. Gn 49.24; Dt 32.4; 2 Sm 22.2-3; Sl 18.4). A mesma palavra hebraica, sur, é usada em paralelismo com ´aben em Isaías 8.14, demonstrando, sem dúvida, que Isaías via Deus tanto como Rocha de salvação quanto Pedra de tropeço. As firmes convicções de Paulo quanto à divindade e ao caráter messiânico de Jesus tornaram a aplicação deste conceito bem natural para ele.
O problema, então, não é de Paulo, que estava derivando suas ideias do Targum, mas dos eruditos que tomam o atalho de acusar Paulo de plágio, ao invés de procurar diligentemente no AT as ideias expressas pelo apóstolo.
Os conceitos básicos desta passagem aplicam-se à outra metade da citação, Isaías 8.14. Tematicamente, Paulo estaria apontando à natureza paradoxal da manifestação de Deus a Israel, que gira em torno do “eixo” da fé. Assim como nos dias de Isaías a questão era confiança no Deus que faz o impossível, nos dias de Paulo a questão era confiança no Deus que fez o inimaginável, i.e., encarnar-se, morrer como um criminoso e ressuscitar dentre os mortos. Esse tema de continuidade entre a missão e mensagem de Isaías e a missão e mensagem de Paulo atinge seu ponto culminante na citação do quarto cântico do Servo de Isaías, que será considerado agora.
2.4.4 Romanos 10.16
Esta passagem também é incluída entre os midrashim paulinos. A razão para essa classificação é a visão de Paulo da missão da Igreja e de sua própria missão apostólica como um cumprimento da missão do Servo.
Falando com referência ao texto, não há variações significativas entre Paulo e o Texto Massorético (aqui ele cita a LXX verbatim). A adição de Kyrie na LXX é aceita e usada pelo Apóstolo porque reflete a noção básica de que alguém diferente do Servo ou Javé é o orador em Is 53.1. A interpretação dispensacionalista tradicional deste versículo tem sustentado que o pronome “nossa” refere-se ao remanescente escatológico de Israel, deplorando a descrença histórica de seus antepassados. Isso significa considerar o sufixo pronominal hebraico como um genitivo objetivo. Se tal fosse o caso, parece que Jeremias e Dinter estão corretos em considerar esta passagem como um Midrash, porque o sentido pretendido pelo autor teria de ser substancialmente alterado pela citação de Paulo, uma vez que ele está falando da proclamação apostólica do evangelho aos judeus e gentios.
Se, contudo, o sentido de Isaías é aquele determinado por um genitivo subjetivo (note a mudança de “a mensagem que foi pregada por nós” para “a mensagem que foi pregada”), a perspectiva de Paulo quanto ao seu ministério apostólico seria coerente com o referente mais amplo, possibilitado pela escolha gramatical. Portanto, ele vê como o significado inspirado de Isaías 53.1 a rejeição da mensagem profética sobre fé no Servo de Javé como o objeto de confiança na promessa da salvação efetiva e concretização das promessas de bênção universal contidas nas alianças. Percebe ainda a proclamação do evangelho a uma geração dura e descrente de israelitas como um referente mais amplo (não necessariamente cumprimento) do sentido único e inspirado de Isaías (Israel é historicamente impenetrável no que diz respeito a mensagens de graça e confiança).
Este artigo já mencionou a ideia de que Paulo parece identificar estreitamente sua missão com a de Isaías, assim como o contexto em que cada um ministrou. Paulo o faz não em forma midráshica, desconsiderando o contexto histórico-literal de suas fontes, mas usando claramente correspondências históricas válidas entre os dois Sitz im Leben (fonte e uso).
2.4.5 Sumário Quatro das doze citações explícitas de Isaías em Romanos 9-11 foram analisadas aqui como exemplos do material das citações e técnica paulinas.
Observações textuais e semânticas levaram o autor à conclusão de que o Midrash, como descrito por intérpretes modernos, não era a abordagem típica do apóstolo, pelo menos no que se refere à literatura profética.
3. AS CITAÇÕES DE ISAÍAS E O ARGUMENTO DE ROMANOS 9-11
De acordo com aquilo que foi visto, pode-se afirmar que Paulo entendia sua situação no tempo e no espaço como muito semelhante àquela do profeta Isaías por volta do século VII a.C. Não apenas a situação histórica era similar, o clima espiritual também “batia”, especialmente com a descrença cínica que permeava o relacionamento de Israel com Deus e uma forte autoconfiança determinando a perspectiva da nação sobre si mesma diante de Deus.
Cada um deles, Paulo e Isaías, trouxe para a sua própria geração uma mensagem que incluía bênção e maldição. Do ponto de vista da aliança mosaica, Isaías pregou a rejeição da nação e a preservação de um remanescente. Do ponto de vista da nova aliança, Paulo observou e explicou a rejeição da nação por causa de sua descrença, com a preservação de um remanescente como sinal de que a bênção prometida, que Isaías também previu e prenunciou, finalmente viria.
Romanos 9-11 serve o propósito de vindicar a justiça de Deus na rejeição do Israel endurecido por causa de sua rejeição da salvação (justificação) que Deus ofereceu pela graça mediante a fé. Isaías é muito citado por causa da profunda semelhança da natureza da oferta de Deus, do momento histórico de ruína iminente e da rejeição nacional da graça que lhe havia sido estendida. Nesse sentido, Isaías fornece a essência do argumento paulino.
CONCLUSÃO
O uso das citações de Isaías foi estudado a fim de se avaliar as alegações de que o Midrash é uma categorização apropriada para a abordagem paulina do AT. Das doze citações explícitas de Isaías em Romanos 9-11, quatro foram examinadas, as quais são rotuladas de Midrash por um ou mais dos eruditos contemporâneos. O presente estudo, ainda que preparatório e não definitivo, indicou que a exegese midráshica não é o método de exegese e aplicação paulino normativo em relação ao AT.
Este fato leva o autor a discordar de Dinter, quando este diz (numa afirmação típica dos proponentes do Midrash):
Ainda, a natureza de servo de Paulo passou por seu grande teste não na sua missão aos gentios… mas no evento inesperado da rejeição do evangelho por seu próprio povo. Nessa matéria, acima de tudo, sua busca pelo profeta Isaías o capacitou a entender as palavras do profeta como diretamente revelatórias de sua própria vida e como um fator essencial na elaboração do evangelho de Deus prometido de antemão pelos profetas (Rm 1.1-2).
Em Romanos 9-11, Paulo demonstra um apelo midráshico bem estudado e paciente das Escrituras hebraicas (tanto na tradição textual hebraica quanto na grega).
O método de Paulo não era midráshico e a sua percepção de Isaías não era diretamente revelatória, mas foi ditada pela noção de sentido-referente guiada pelo Espírito. No caso de Paulo, tal percepção era inerrância garantida pelo tipo de ministério realizado pelo Espírito Santo. No caso do intérprete moderno, direção não garante inerrância, o que exige acuracidade e honestidade intelectual ao estabelecer-se o sentido correto da passagem em pauta e sensibilidade ao Espírito na percepção de referentes válidos. É convicção do presente autor que atribuir a Paulo a prática indiscriminada de Midrash implica em erro duplo.
Estudar as línguas originais é uma necessidade crescente numa época cheia de equívocos sobre a revelação de Deus. E estudar especificamente a sintaxe permite uma interpretação do texto bíblico muito superior àquela que se faz apenas com um domínio da morfologia ou ainda sem o auxílio das línguas originais. Foi por essa razão que lançamos esta obra, que agora ganha uma segunda edição ampliada pelo prof. Marcelo Dias, amigo, aluno e colega de trabalho do saudoso prof. Carlos Osvaldo Pinto. Publicado por Vida Nova. |
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Muito bom, uma preocupação em mostrar a forma correta de análise, e com isso transmitir o interesse de propagar nas mensagens de púlpitos mensagens com cunho exegetico mais sólido. parabéns!