Agostinianismo protestante hoje

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Santo Agostinho (Philippe de Champaigne, c. 1645–50)

I. Introdução

A afirmação de alguns de que os tempos mudam não é correta. Na verdade, quem muda somos nós, não algo abstrato chamado “o tempo”. O grande mestre do cristianismo ocidental, Agostinho de Hipona, já tinha conhecimento disso. Em meados do ano 410, ele pregara um sermão cuja introdução mencionava coisas das quais as pessoas falam: “Que época ruim”, “Que tempos difíceis”! Não é diferente nos dias atuais, em que as pessoas, cristãs e não cristãs, reclamam das mesmas coisas. Santo Agostinho, no entanto, de maneira resoluta rejeita esse tipo de queixa. Ele diz: “vivamos bem e os tempos serão bons”. Nós somos o tempo, e da forma como somos assim será o tempo.[1] Nossa forma de encarar a vida sofreria um impacto se levássemos a sério Agostinho na maneira de formularmos essas coisas? Começo propondo que essas palavras de Agostinho podem ser uma correção necessária a dois tipos de cristãos, que aparentemente podem parecer muito distintos, mas tanto um quanto o outro estão muito preocupados com o que para eles significa ser a natureza única do momento atual.

O primeiro grupo de cristãos que me vem à mente são aqueles que têm uma preocupação muito acentuada a respeito da malignidade presente — ruim o bastante para levar muitos a diagnosticar o mundo como muito doente, em estado terminal. Não resta dúvida de que tal postura é comum no nosso meio hoje, uma postura de ver o mundo muito difundida nas igrejas e nas correntes teológicas das mais variadas. É um problema, todavia não estou de acordo com a tendência de que nomear o seu problema de “pessimismo” seja o correto. Entretanto, tampouco concordo de chamar “otimismo” como base no que diz Agostinho “Vivamos bem e os tempos serão bons”, porque a resposta de Agostinho dificilmente seria uma resposta que definiríamos como a mais otimista. Ele ao pregar, por exemplo, um sermão sobre Efésios 5.15,16 “Redimi o tempo […], porque os dias são maus” — passagem bíblica que teria sido utilizada para examinar o espírito de sua própria época — Agostinho começa o sermão afirmando categoricamente que os tempos são maus… desde Adão.[2] Pode-se, então, concluir que Agostinho não inclui no jogo esse primeiro grupo de cristãos, os que sofrem um disparate em relação ao tempo presente; ao contrário, deixa-os fora por ele ser concretamente mais pessimista do que eles, sobretudo no que diz respeito à extensão dos tempos ruins.

Contudo, acredito também que Agostinho advertiria ao segundo grupo, o mais otimista, e, apesar disso, também muito preocupado em descobrir qual é o espírito de nosso tempo. Refiro-me neste momento àqueles que têm prazer no intuito de tentar descrever nossa época como “pós-moderna”, esses nos dizem que estaríamos passando por uma “mudança de paradigma”, à qual a igreja deve se ajustar, um período que, talvez, não signifique o fim, mas certamente um novo tempo. Não diferente do primeiro grupo de cristãos, Agostinho responderia a esse segundo grupo, do âmago da mensagem cristã, dizendo que as mudanças de paradigmas de fato significativas ocorridas na história foram duas: a Queda e a Redenção. Dito isso à maneira de John Webster, “A igreja e a teologia estão entre o intervalo da primeira vinda de Cristo em humildade, e a segunda vinda de Cristo, em glória”; Este intervalo — e não outro, cultural, pós-moderno ou qualquer outro intervalo — é que determina o que a igreja e a teologia devem ser.[3] Trata-se de um movimento entre esses intervalos em que há uma realidade nova à qual se ajustar. Assim, diante disso, as supostas diferenças entre “moderno” e “pós-moderno” — à medida que sempre existiram — ambas perdem a importância, e nosso olhar mais uma vez se abre para o que nós, homens de todas as épocas, temos em comum.

Entretanto, certamente convém aqui ser um pouco mais preciso no que diz respeito ao que estou tentando dizer. Não resta dúvida de que é louvável a tentativa de caracterizar nosso tempo de uma maneira que seja a mais correta possível: faz parte da natureza do cristão e também de qualquer pessoa que pensa tentar perceber seu próprio tempo, tentar entendê-lo, descrever seus sinais característicos para, com isso, ter uma ideia de como servir melhor em nosso tempo. É bom que se faça isso e que seja feito da melhor maneira possível (porque é fácil errar, portanto é fundamental que haja mais pessoas preocupadas em como fazer a coisa da maneira correta). Mas quando esse intento vai em outra direção — e isso acontece facilmente —, para a afirmação de que estamos entrando em um tempo totalmente novo, diferente da história humana de outrora, quando termos como “pós-moderno”, “paradigma” adquiri a categoria de uma linguagem escatológica, é momento oportuno de parar e refletir. Essa proposta, depois de tudo, pode nos fazer oscilar em diferentes direções, conforme essa fixação nas mudanças de épocas que podem vir tanto do que a celebram quando dos que a lamentam. Persuadir-nos de que estamos diante de algo completamente novo pode, nas mãos de alguns, ser um mecanismo para baixar nossa guarda, uma maneira de fazer com que deixemos certas posições não porque elas se mostraram equivocadas, mas, sim, pela simples “inadequação” a uma novidade, novidade que na realidade pode ser algo inexistente. Pode-nos levar também, nas mãos de outros, a nos concentrar em determinadas doenças que se apresentam como sendo urgentes, sintomas de uma doença terminal, fazendo com que negligenciemos a preocupação em longo prazo com todos os problemas humanos. As teorias sobre a história não são inofensivas, não devemos permitir que elas determinem nossa agenda numa ou noutra direção.

Em relação ao cristianismo dito “pós-moderno” ou dito “emergente”, tenho, pois, minhas dúvidas, sobretudo no que diz respeito ao cristianismo que muito facilmente se escandaliza diante do mal presente. Essas dúvidas se dissipam precisamente ao estudar Agostinho e seu mundo: No fim das contas, a época de Agostinho é muito semelhante a nossa época, logo não se justifica que fiquemos impressionados com alguma novidade aparente. Agostinho vive numa época de convulsão, de desmoronamento de uma unidade política estável, um momento em que muitos olham para trás em busca de um passado perdido, outros olham para a frente perguntando se o fim será iminente, outros perguntando aos astrólogos a respeito do futuro mais próximo. Podemo-nos sentir familiarizados com os conflitos Norte-Sul e Leste-Oeste da referida época em relação à globalização e ao pluralismo. O próprio Agostinho recebera cartas indagando-lhe se, por acaso, todos não adoramos a um ser que “denominamos deus” em todas as religiões, se bem que em cada situação se parece mais como um conjunto múltiplo deuses; e seu interlocutor pagão apresentou isso a Agostinho com engenhosos paradoxos, dizendo-lhe que por meio dessa multiplicidade de deuses, todos adoramos uma unidade última em uma “discorde concordia”.[4] Não há nada novo debaixo do sol.

Diante de tudo isso, não podemos deixar de reconhecer certos fenômenos sociais como algo que vimos de perto, pense no desejo da carreira profissional do jovem Agostinho. Aliás, essa obsessão já vinha de sua família, que fez mais de um sacrifício com o objetivo de tornar o filho um homem de sucesso “a serviço das honras humanas e das falsas riquezas”.[5] Ao ler as Confissões cuidadosamente, nos saltará aos olhos a quantidade de pessoas que estavam na mesma situação de Agostinho. Quase todos os homens que ele menciona em sua obra, amigos que ele faz em sua própria caminhada espiritual, são africanos de origem, mas em alguma etapa de sua ascenção profissional em Roma ou Milão: seu amigo Alípio sai na sua frente ao chegar a Roma para estudar Direito, buscando o caminho do mundo, “que seus pais tanto lhe haviam decantado”.[6] Ao ler isso somos tentados a pensar em muitos evangélicos latino-americanos que faz uma viagem semelhante, tanto em termos geográficos ao retornar do norte, quanto em termos de sua biografia espiritual, seus pais não tiveram a sorte de ter uma educação muito boa, mas tiveram razoável êxito e possibilidades de pagar uma melhor educação para seus filhos; fazem generosos esforços e os estimulam a continuar estudando para que se destaquem. Contudo, o leitor de as Confissões ou de uma boa biografia de Agostinho, saberá que cada um desses personagens — Alípio, Evódio, o próprio Agostinho —, uma década depois se encontram ao regressar para a África. Contudo, não como renomados professores de retórica, mas, sim, como bispos. Não sabemos qual foi a reação de seus pais, o que passou pela cabeça deles, mas ao que parece, o futuro de sucesso não era como amigos do imperador em Milão e sim como amigos de Deus, na África.[7]

No entanto, temos de ser cautelosos ao afirmar que na África estava o futuro. Nada sabemos, nós os homens do futuro, e tampouco sabemos o que realmente é ser bem-sucedido. Ademais, na África, isso não durou muito se aferida segundo critérios triviais de sucesso. Poucas gerações a frente de Agostinho, a África já parecia completamente infrutífera para o cristianismo. Mas não foi uma perda completa; ainda que o cristianismo não tenha durado muito tempo na África, foi a partir dos escritos cristãos produzidos nessa terra que o restante do cristianismo foi nutrido nos séculos seguintes bem como no início da Reforma Protestante.[8]

Esse fato levanta-nos a questão agostiniana da Reforma e o sentido que ela pode ter para evangélicos hoje, e como eles podem se aproximar de Agostinho. Ninguém duvida, a Reforma é um movimento agostinianismo, do começo ao fim. Aliás, em grande parte não é um acontecimento limitado ao século XVI, mas nos séculos subsequentes pode-se afirmar que algum tipo de agostinianismo continuou sendo a norma. Vê-se que ainda no protestantismo liberal do século XIX, essa regra é cumprida (Harnack, Troeltsch, Ritschl, todos escreveram ao menos um livro sobre Agostinho). Contudo, no século XX, essa relação entusiasmada a respeito de Agostinho mudou para uma relação que oscila ora a indiferença, ora a rejeição ou a uma aceitação apenas de lábios. Na verdade, aqueles que transitam no campo dos estudos especializados a respeito de Agostinho pode ter a impressão, possivelmente correta, de que o século XX foi o século do “agostinianismo-católico-romano.” E, via de regra, como costuma suceder em todos os campos, hoje há de tudo: temos diferentes tipos de agostinianismo liberal,[9] alguma proposta do agostinianismo secular[10] e o agostinianismo crítico pós-moderno,[11] o qual Milbank procurou caracterizar a Ortodoxia Radical. Este, é importante lembrar, é um movimento anglo-católico, e ainda com pouco impacto sobre o restante do protestantismo.[12]

O que fica do agostinianismo protestante? O quanto desejaríamos que ficasse? O que fica, pode-se argumentar, é o agostinianismo de várias tradições confessionais e robustas: artigos sobre “o cativeiro pelagiano da igreja” ainda podem ser encontrados nas melhores revistas de tradição reformada, aplicados devidamente aos problemas internos do próprio protestantismo.[13] Mas, na maioria das vezes, pode-se afirmar que é um agostinianismo puramente antipelagiano. Sempre foi assim, me dirão que essa sempre foi a ênfase do agostinianismo protestante. Pode ser, mas essa ênfase não é exclusiva: As Institutas de Calvino teve início com uma reflexão a respeito do sensus divinitatis, algo típico do agostinianismo, a fé que busca o entendimento. Atualmente, entre nós, há somente resquício (embora ainda exista) desse agostinianismo.[14]

Meu interesse em continuar com esse artigo começa aqui: o agostinianismo estritamente antipelagiano é, claro, uma manifestação de um cristianismo muito e exclusivamente centrado na redenção. Se estamos [re]decobrindo a necessidade de ir além da redenção, podemos voltar nossos olhos para aspectos de Agostinho que não estavam no centro de nossa atenção. Isso, diante do restante, faz ainda mais sentido em vista dos paralelos que já mencionei entre nossa época e a época de Agostinho. Se é verdade que tanto a nossa quanto a de Agostinho são épocas semelhantes, certamente faz sentido nos perguntar quais controvérsias faziam com que um homem sábio investisse o seu tempo. Quero que indaguemos a nós mesmos sobre o que significa ser um agostiniano aqui e agora, uma vez que já temos em mente que o pelagianismo foi, na verdade, a última controvérsia (temporariamente falando) que Agostinho enfrentou.

II. As grandes controvérsias

Direcionemos, portanto, nosso olhar para Agostinho. A vida de Agostinho é uma jornada por todo o mercado religioso-filosófico da antiguidade tardia. Uma época à semelhança da nossa, pluralista e globalizada, com filosofias e religiões do oriente que disputavam o coração dos homens, e com um teatro similar aos nossos reality shows. Como dissera o próprio Agostinho, um tempo de amor ao luxo e de “desperdício diário em que os poderosos controlam os fracos”; homens que preferem a vida a uma casa;[15] governantes que antes de qualquer coisa são “fornecedores de delícias”, em que é necessário que haja “prostitutas públicas” para aqueles que não podem pagar uma particular, tal medida é a única contra a pobreza.[16] Antes de sua conversão, Agostinho vivenciou quase tudo que o mundo de sua época oferecia: ainda criança fora “católico popular”,[17] e logo cedo desdenhou de todo cristianismo como sendo coisa infantil e de mulheres; tempo depois, em sua juventude, se tornou maniqueísta e cético; durante doze anos, teve uma concubina à qual abandonou para se casar — entretanto sendo longo o tempo para esperar (dois anos) o casamento, procurou outra concubina durante esse período de espera do matrimônio; até sua conversão, era um homem muito ocupado em alcançar o sucesso social — e obteve esse objetivo, chegando a trabalhar na mesma corte imperial. O próprio Agostinho veio depois a entender que esse desejo pela carreia profissional tornou-se um obstáculo à sua conversão, talvez tão grande quanto sua vida sexual desenfreada (embora grande parte dos leitores de as Confissões geralmente só se dá conta desta última dificuldade).

Contudo, não focarei nessa etapa da vida de Agostinho. O que procuro é aprender com as controvérsias, as quais ele se envolveu depois de se converter. Quais foram aqueles que Agostinho considerou que era importante discutir? Essa pergunta não é difícil de responder, tendo em vista que ele passou a maior parte da vida como cristão escrevendo livros em que os títulos começavam com um “contra”: contra Secundino, contra as duas cartas dos pelagianos, contra Félix, contra Maximiano, contra as cartas de Petiliano, etc. Na verdade, de alguma maneira ele conseguiu passar em torno de treze anos discutindo com cada grupo, sempre pondo fim na polêmica no momento exato, e assim dar início à próxima discursão: treze anos com obras antimaniqueistas, antidonatistas e antipelagianos. Que esses grupos – maniqueus, donatistas e pelagianos – possam ser de interesse atual, é a afirmação que quero defender a seguir.

Primeiro, porém, devemos conhecê-los. Agostinho ao se deparar com os maniqueus encontrou um grupo que (ao menos no norte da África) se apresentava como cristãos — e que na realidade zombavam dos outros chamando-os de “semi-cristãos”[18] —, mas que se entendiam a si mesmos como representantes de um cristianismo “intelectual”. Eles eram, por exemplo, críticos do Antigo Testamento e do que eles consideravam o antropomorfismo do mesmo. As críticas dos maniqueístas caíram numa terra fértil: quando Agostinho os conheceu, ele havia passado por uma experiência negativa ao ler Gênesis — então, eles, vieram prometendo que lhe daria argumentos e ele não seria convidado a sair pela fé[19]. O maniqueísmo é a forma mais madura que tomou o gnosticismo antigo. À maneira de todo movimento gnóstico, prometia certo conhecimento. E o que prometia conhecer era a respeito da condição existencial do homem: por que estamos maus se somos bons? Não é estranho que eles perceberam nossa situação como algo a ser descrito nesses termos. Afinal, muitas das vezes, o ser humano se sente dividido: tem a percepção de estar inclinado, ao mesmo tempo, em direções distintas. É precisamente nessa distinta explicação desta experiência psicológica comum que se pode observar a diferença entre o cristianismo e o maniqueísmo. Depois de sua conversão, Agostinho veio a explicar que efetivamente nos deparamos, às vezes, presos entre “duas vontades”. Mas enquanto Agostinho, depois de sua conversão, explica isso como uma luta entre o velho homem e o novo homem, entre duas tendências de um mesmo homem — afirmando que o “eu está na verdade presente nas duas tendências”[20]— os maniqueus acreditam que essa experiência na realidade mostra que o mal é algo que difere  de  nosso “verdadeiro eu”, que sentir essas duas tendências em nós é um indicio de que há na verdade “duas naturezas”, “duas mentes[21]”. O verdadeiro eu, de acordo com eles, é filho da luz, espiritual; o mal, ao contrário, provem de uma matéria alheia, na qual nosso verdadeiro eu está aprisionado. E a percepção que temos dessa luta em nós nada mais é do que um reflexo da eterna luta entre um princípio do bem e um princípio o mal.

Se existe algo que é característico do maniqueísmo é esta concepção do bem e do mal, sua concepção da história como uma luta entre duas substâncias opostas do bem e do mal. Nós cristãos desde o início reconhecemos que tal conceito do ponto de vista moral é correto: que a história é isso, uma luta entre o bem e o mal; mas a tese dos maniqueus não é uma tese moral mas, sim, metafísica: trata-se de realidades boas em guerra com realidade más, de um princípio eterno do bem em luta com um princípio eterno do mal. Ao contrário desta tese do maniqueus, os cristãos sustentam que não há um princípio eterno do mal, mas, sim, anjos caídos — que o único princípio eterno é o bem. Todavia, esta resposta cristã — de que o mal é uma privação, algo que não existe em si mesmo, mas, sim, como parasita da realidade — ninguém a defendeu e explicou de tal maneira como Agostinho. Conforme escreve em sua obra as Confissões: “As coisas que se corrompem são boas; se fossem o supremo bem não podia se corromper, mas tampouco podia se  corromper se de maneira alguma fossem boas”.[22] O mal é uma desordem das coisas boas, ou o desejo desordenadamente de querer as coisas boas. De qualquer maneira, em um caso ou outro, o mal fica impossibilitado de qualquer pretensão de ser uma realidade última.

Seguimos, porém, para a próxima controvérsia. Já no final quando ainda enfrentava os maniqueus, Agostinho já estava começando um debate com outro grupo: os donatistas. Trata-se de um discursão que surgiu um século antes de Agostinho, diz respeito àqueles que cederam às perseguições. Até onde um “traidor” — e traditor era quem havia entregado (tradere) os livros sagrados para os perseguidores — podia continuar fazendo não apenas parte da igreja, mas também continuar sendo um pastor que realiza atos eclesiásticos legítimos? Poderíamos resumir o conflito entre Agostinho e os donatistas com essa pergunta. A resposta dos donatistas é simples: para eles simplesmente não fazia sentido conceber a ideia de que possa existir na igreja uma convivência pacífica entre maus e bons. Além disso, acreditavam em si mesmo como sendo os verdadeiros herdeiros da igreja dos mártires, que pareciam ter sido extinguidos com a cristianização do império: era necessário manter o ideal de uma igreja pura, e, portanto, pequena e perseguida. Agostinho, ao contrário, embora compartilhasse muito desse ideal[23], se notabiliza pela maneira em que defende as ações da igreja como válidas a despeito da qualidade (ou falta de qualidade) moral dos membros dela.

Seguramente, o texto que com frequência é mais citado por Agostinho sobre esse tema é o chamado de Cristo para não separar o trigo do joio antes do fim (Mt 13). Para ele, os donatistas, ao romper a comunhão com outros cristãos, estavam ignorando essa advertência de Cristo, estavam antecipando o dia do juízo. Agostinho relembra-os que cada geração — no que diz respeito a história da salvação — teve de aguentar certo grupo de “maus” em seu meio:

Arão tolera a multidão que exige um ídolo. Ela ergue um ídolo e o adora; Moisés tolera a milhares de pessoas que murmuram contra Deus e também o ofendem; Davi tolera a Saul, que o perseguia.[…] Todos os santos servos e amigos de Deus tiveram de tolerar a alguns do seu povo; e não se separavam deles durante a participação dos sacramentos naquela época.[24]

Sobre Cristo, ele diz a eles em outro lugar, não lhes interessa saber nada que não esteja na Bíblia; mas a imagem de igreja que eles constroem tem como fundamento a vaidade humana.[25] Não resta dúvida de que isto é uma advertência digna de atenção a um protestantismo predisposto a se dividir diante de cada mal possível que venha a encontrar na própria comunhão.

O próprio Agostinho certamente cometeu graves erros em sua luta contra os donatistas. As suas cartas 93 e 185 constituem o primeiro esforço de um cristão para defender o uso da força contra outros crentes.  Ao criticar os donatistas, ele chegou a escrever que a época dos apóstolos e dos mártires já havia passado.[26] Tempo depois, ele teve de se arrepender por escrever essas palavras e de reconhecer que sempre — até o fim da história — haverá perseguições.[27] Entretanto, isso não deve ser um impedimento para que olhemos questões em que se detectam adequadamente os problemas dos donatistas. Agostinho diagnostica nelas problemas típicos do mundo evangélico contemporâneo: não são muitos os donatistas, eles são perseguidos. Por causa disso, eles, muitas vezes, falam como se esse fato fosse garantia de integridade, como se pelo fato de ser minoria e de ser perseguido bastasse como garantia de que estão professando a verdade.[28] “O que fazemos é o que consideramos santo.”[29] Esse pensamento deles é o que Agostinho contesta. Os donatistas gostam do embate, mas não da argumentação.[30]

O que Agostinho reprova nos donatistas é, de certa forma, que a atitude reativa deles depende de determinadas falsas expectativas. Esperam um nível de perfeição muito alta para essa vida. Contudo, é precisamente nesse caso que ele concentrará toda sua discussão com os pelagianos na etapa final de sua vida. O Agostinho antipelagiano é, sem dúvida, o mais familiar para nós protestantes. Em as Confissões, Agostinho dissera a Deus “Dá o que tu ordenas e ordenas o que queres”,[31] e quando as Confissões eram lidas publicamente, essa frase causava perplexidade no monge britânico Pelágio, que acreditava que colocar todas as coisas nas mãos de Deus amenizava a responsabilidade do homem. Pelágio certamente é diferente dos donatistas: estes são um movimento popular-eclesial norte africano, herança da igreja dos mártires, aquele é um asceta britânico; ao invés de liderar um movimento popular, a missão de Pelágio tem como objetivo central a elite. Entretanto, tanto um quanto o outro são reações comuns nos momentos de crise. E Agostinho capta corretamente o que eles têm em comum.

Normalmente apresenta-se o conflito descrevendo a Agostinho como o defensor da graça, e a Pelágio como defensor do livre-arbítrio. Uma simples compressão razoável destes dois homens e do que representam faz com que abandonemos esses clichês. O Agostinho antipelagiano também afirma ser um defensor da liberdade, assim como Pelágio também afirma ser um defensor da graça. É necessário perceber que compreender a graça, todavia, é que Pelágio e o seu círculo representam. Poderíamos chamá-lo de uma concepção “exterior” da graça: Deus nos deu o livre-arbítrio, o conhecimento da lei e o exemplo de Cristo. Isso não é graça? Contudo, não é com o conhecimento da lei, mas com o amor que nos colocamos em marcha, que nos esvaziamos. Com isso, há a pergunta crítica de Agostinho: Procede de Deus o conhecimento que infla, e de nós, ao contrário, o amor que edifica?[32] É nessa pergunta que podemos estabelecer um divisor de águas entre o agostinianismo e o pelagianismo, pois toda a graça exterior que Pelágio defende, Agostinho entende como necessário acrescentar a graça no interior: não somente regá-la, mas também fazê-la crescer. Portanto, com isso, deveria não haver dúvidas de que surge uma maneira singular de olhar a liberdade. São conhecidas as palavras de Agostinho “Não é com a liberdade que se alcança a graça, mas, sim, com a graça que se alcança a liberdade”.[33] No entanto, não diz respeito apenas do caminho que dá acesso à liberdade, e sim do que se entende por liberdade. Agostinho, porém, entende a liberdade como uma coisa diferente de autonomia — ele, na verdade, fala dela como uma imitação perversa de Deus[34] —, sua preocupação torna-se, para nós, completamente contemporânea. É o momento de voltar o nosso olhar para a atualidade no que diz respeito a todas essas controvérsias.

III.  Quais discussões são importantes hoje?

Nós, evangélicos, estamos acostumados a ressaltar o caráter simples, pragmático, da fé cristã, com isso torna-se fácil para os evangélicos perder a capacidade de discutir com adversários semelhantes àqueles que Agostinho enfrentou. Tudo isso não é irrelevante para olharmos com atenção? Essas controvérsias não tiram nosso foco das batalhas morais que cremos ser fundamentais hoje? Na realidade, as controvérsias de hoje pressupõem um entendimento muito definido a respeito do que é a liberdade, do que é o mal, do que é a convivência entre os que têm opiniões contrárias a essas controvérsias. Podemos ter uma ideia completamente errada se imaginarmos que, se não pensarmos a respeito do assunto, é possível falar com maturidade de temas específicos e polêmicos.

Portanto, não é incomum que Agostinho não tenha se limitado a discutir com ascéticos nem com pagãos, que não minimizou essas controvérsias entre cristãos, que não pregou um “mero” cristianismo, mas, sim, que sua mente passou pelo esforço purificador dessas três controvérsias.  Dito de outra forma: Agostinho é cristão platônico, mas o platonismo cristão não é o agostinianismo especificamente, mas, sim, o platonismo de qualquer cristão culto daquele período: o próprio de Agostinho é o platonismo cristão que passou pelo filtro purificador das três controvérsias que mencionamos aqui. Na verdade, devemos relembrar de que Agostinho escreveu uma grande obra contra o paganismo, A cidade de Deus, mas a escreveu depois de ter passado décadas de controvérsias com estes entendimentos rivais do cristianismo. Vejamos assim: a crítica vulgar ao platonismo defende que ele avilta o mundo material, que representa uma filosofia política utópica e que conclui antecipadamente muito a respeito das forças humanas. Não importa o que quer que seja em todas essas coisas (e há algo, mas somente algo certo nessas críticas), a verdade é que as três grandes controvérsias doutrinais que analisamos podem ser vistas como corretivos a cada um destes perigos: o antimaniqueísmo retorna a Agostinho à valorização do mundo material, o antidonatismo ao reconhecimento do caráter diverso dos grupos humanos, o antipelagianismo ao descobrimento da ambivalência de nosso próprio coração.  Não é uma purificação menor.

A herança agostiniana que tem influenciado o Ocidente nem sempre é a melhor, e, certamente, ler livros cujo subtítulo é um “contra” costuma ser uma experiência exaustiva. Contudo, um platonismo cristão purificado pelos três filtros dessas controvérsias tem ainda algo para nos dizer. Quais as lições que existem para nós nestas três controvérsias? Examinemo-las inversamente, começando pelos pelagianos. Os pelagianos, em última instância, defendiam a independência do homem, e isso é algo que está no âmago da cultura contemporânea. Quando afirmo isso, certamente não me refiro apenas ao desejo explícito de inserir a autonomia pessoal como polo que rege a nossa vida; pois, nosso “pelagianismo secular”, encontra-se da mesma forma representado no sucesso e nas reivindicações meritocráticas de nossa cultura. Parte significativa de nosso cristianismo contemporâneo corresponde a uma versão simplória desse pelagianismo: um cristianismo triunfalista que afirma seguir de vitória em vitória e no qual Deus é clamado, mas que assume que tudo ou quase tudo depende do poder de quem pede, e assim sucessivamente. A força corretiva que a leitura de Agostinho oferece nesse contexto é inquestionável.

Entretanto, são também inquestionáveis os riscos de que seja mal interpretada. Há o perigo de que somente se perceba, aqui, a prioridade da graça, e não a compreensão da liberdade que decorre dela; Há também o perigo de que a reação ante a pretensão conduza a um pobre discurso paternalista. Esse tipo de deformação é preocupante pela maneira em que perverte precisamente a misericórdia, pela qual Agostinho aceita a luta interna que acompanhará cada um de nós, até o final. A luta entre a carne e o espírito não significa apenas a vida debaixo da lei, conforme pensava Agostinho na juventude, mas, sim, também a vida debaixo da graça. Ao escrever Contra Juliano, Agostinho lembra-nos de que nem os que são contra nem os que são a favor do prazer podem negar a luta interna em que vivemos.[35] Um antipelagianismo “raiz” não significa apenas afirmar a primazia da graça ou do caráter irremediavelmente caído do ser humano. Significa também um olhar de maturidade a respeito do caráter gradual e sempre incompleto que faz parte da nossa transformação nesta vida. Precisamos de um agostinianismo que se restrinja a um antipelagianismo; mas que não seja um menos do que isso.

Já, todavia, os donatistas, nos dá vontade de querer tratá-los com mais simpatia. No meu coração e mente não há espaço para compreender os maniqueus e os pelagianos, mas posso entender os donatistas. Contudo, essa sensação que tenho me faz suspeitar de que muitos evangélicos também a tem, o que pode ser muito traiçoeiro: os donatistas representam um cristianismo reativo; esse cristianismo que, muitas vezes, faz um excelente diagnostico da sociedade ao seu redor, mas que é estéril em relação a essa mesma sociedade. Tem de se perguntar se realmente os donatistas deveriam ser para nós mais simpáticos do que os maniqueus e os pelagianos, ou se não compartilham com alguns dos mesmos problemas profundos. Enquanto o pelagianismo pode ser considerado uma resposta elitista e marcadamente ascética diante dos problemas de massificação da igreja, o donatismo pode ser visto como uma reação popular africana e marcadamente eclesial diante do mesmo desafio. Diante dos perigos de um cristianismo massificado e carente de exigência, o donatismo respondeu com o intuito de uma comunidade pura, sem traidores; o pelagianismo, ao contrário, respondeu colocando uma destacada ênfase no dever de o homem tomar sobra suas mãos a salvação.

Agostinho tem uma reação contrária a ambos, pois ambos pretendem nesta terra um tipo de perfeição que está reservado para a vida futura. Contudo, ter presentes esses paralelos, nos condiciona a outro olhar para sua realidade. Porque nós protestantes acostumamos a ter um olhar atento para denunciar qualquer forma moderna de pelagianismo, mas na maioria das vezes fazendo tal coisa de uma perspectiva donatista. O grande calvinista do século XIX, B.B. Warfield, escreveu numa ocasião em que a Reforma do século XVI era “o triunfo da doutrina agostiniana da graça contra a doutrina agostiniana da igreja”. Assim, as igrejas atuais seriam, de certa forma, ramificações de um Agostinho dividido contra si mesmo. Mas se os dois movimentos, pelagianos e donatistas, estão relacionados conforme vimos aqui, logo não é possível se salvar de um dos problemas sem se proteger também contra o outro.[36]

Tradicionalmente, tem se destacado o Agostinho antidonatista como posição eclesiológica: os reformadores protestantes somaram-se à tradição católica que os precedia em afirmar que a veracidade dos atos eclesiásticos não dependia da qualidade moral dos pastores, e, certamente, fizeram o correto ao seguir esse caminho. Mas somos capazes de enxergar como isso tem importância, além da eclesiologia, para toda nossa visão de mundo? Se quisermos pensar na relevância desta controvérsia para o agostinianismo hoje, devemos vê-la não apenas como uma tese sobre os sacramentos: o que está em jogo é um reconhecimento do caráter misto tanto da igreja quanto das restantes instituições e esferas da realidade. Particularmente, isso se torna realidade na concepção de tolerância decorrente de um olhar como este. Agostinho convidara aos donatistas para tolerar, mas não estava entendendo isso como um simples processo de pacificação ou indiferença diante dos conflitos. Lembrando novamente o exemplo de Moisés, este ficou furioso com aqueles que murmuravam contra Deus, mas ele os suportou com paciência, não removeu eles da comunhão do povo de Deus. “Corrigimos aqueles que são possíveis de corrigir, o restante toleramos”.[37] Agostinho está chamando aos donatistas, particularmente, a suportar, a tolerar, mas está preservando a legitimidade de que considerem e declarem o mal que estão tolerando. Agindo assim, lembra-nos precisamente de que a tolerância é sinônimo não de frouxidão ou de indiferença, mas, sim, de paciência, que é uma virtude fundamental para resistir positivamente a males que não podemos mudar.[38] Contudo, é importante relembrar que essa tolerância pode ser cultivada precisamente porque antes se afirma a bondade de tudo o que é criado. A asserção radical dessa bondade última é o que permite agir de maneira diferenciada diante do mal, e a não ser somente dominado por ele: a posição antidonatista — e à medida que caminhamos deveríamos olhar com atenção para a conexão entre essas polemicas — depende do que foi afirmado contra o maniqueus.

No entanto, a atualidade de Agostinho também se estende a pontos diferentes de sua reação diante da mediocridade humana. As posições destes grupos relacionam-se também com o olhar que cada um deles tem no que diz respeito à vida intelectual do cristianismo. Os pelagianos são semelhantes a nossos amigos intelectuais-seculares, os donatistas a nossas próprias deturpações anti-intelectuais. Os pelagianos insultaram Agostinho por ele ser um mero “argumentador africano”, ele lhes respondia “Admitimos que a nossa doutrina é do povo”;[39] os donatistas acusavam ele de “dialético”, que corrompe a simplicidade da fé — Agostinho lhes respondia “Vocês querem brigar, não querem debater”.[40]Mas sua própria posição tem origem no debate com os maniqueus, em que aprendeu a iniciar pela fé, mas buscando a compreensão. Na verdade, ao olhar para trás, para a maneira como Agostinho foi parar no maniqueísmo na juventude, ele admite ter sido enganado pela promessa de uma “mera e simples razão”. Quem não seria seduzido por tal promessa, sobretudo um jovem que ansiava por conhecer a verdade?[41] Essas palavras não devem ser interpretadas como um alerta contra a razão. Agostinho desenvolveu uma metafísica do bom caráter de tudo o que é real contra o maniqueísmo, mas por isso, precisamente, na controvérsia com os maniqueus, a polêmica adquire naturalmente propensão filosófica: de acordo com Agostinho, o mundo conhecido como bom é um mundo que nos convida para ser descoberto, seu “peso, número e medida.” Porém, o exercício racional que implica isso é uma prática de seres conscientes de sua enfermidade, na verdade com uma dupla enfermidade: ignorantia et difficultas. Trata-se não somente de que a nossa vontade seja fraca, tampouco de que apenas nos falte conhecimento, mas, sim, de que há um domínio da ignorância e da impotência, ambos nos aprisionam. Hoje, é comum reconhecer os pré-requisitos não cognitivos de conhecimento, a conclusão de que nossa capacidade de compreender é atingida por questões que diz respeito a como amamos, sentimos, cremos; todavia, Agostinho tem em vista uma relação singular da fé com a razão: ao implicar a aceitação do conhecimento e a concomitante submissão da nossa vontade, esta atende ao mesmo tempo nossas duas doenças, uma humanidade em que os problemas não se restringem nem à ignorância, nem à única incapacidade ou debilidade da vontade.

É nessa controvérsia com os maniqueus, portanto, que se dá o início da elaboração agostiniana da relação entre fé e razão. Os maniqueus, que tomaram a iniciativa de oferecer a razão em lugar da fé, terminam nesta espécie esquisita de racionalismo mitológico, que define os maniqueus assim como a outros grupos gnósticos. Mas, por esse mesmo motivo, a resposta agostiniana ao maniqueísmo não é a simples afirmação da primazia da fé, mas uma dependência recíproca entre os dois. “Para crer compreenda minhas palavras, para compreender creia na palavra de Deus.”, disse em um sermão.[42] O credo ut intellegam apresenta certa primazia da fé, mas tão estrutural ao projeto agostinianismo é a codependência de fé e razão que encontramos frequentemente em sua obra: “Nem todo o que pensa crê, porque alguns pensam para não crerem; mas todo o que crê pensa, pensa crendo e crê pensando”.[43] E esta codependência, sem dúvida, é significativa para o modo como Agostinho vê as Escrituras: não apenas sua primazia é indiscutível, mas também não resta nenhuma dúvida para ele de que o conteúdo das Escrituras é tanto acessível aos doutores quanto aos incultos. Contudo, ao mesmo tempo, não poupa ironias sobre aqueles que vão até ela acreditando em uma suposta inspiração que lhes permita dispensar a humildade de aprender com outros.[44]

Embora tenha enfatizado o vínculo entre donatistas e pelagianos, há, pois, que relembrar que o que está por trás de tudo isso é, em primeiro lugar, uma posição antimaniqueista. Foi a controvérsia com os maniqueus que formou o intelecto de Agostinho, a que o deixou preparado para as duas controvérsias restantes. Ao enfrentar os maniqueus, Agostinho deixa seu nome marcado na grande tradição cristã de luta com correntes gnósticas. É aí onde permanece gravada no seu intelecto a bondade da criação, a necessidade de iniciar com a fé, mas buscar o entendimento, a necessidade de compreender o abismo radical entre Criador e criatura, a compreensão do paradoxo de tudo o que ocorre na história secular. No tempo como o nosso, em que os movimentos gnósticos estão longe de desaparecer, é imprescindível trazer de volta essa mentalidade.[45]

Uma realidade má não existe, e sim um mal que é a ausência de realidade; mas essa ausência de realidade é moralmente muito verdadeira, portanto, estamos diante de qualquer coisa, menos uma minimização do mal. O valor prático dessa concepção do mal torna-se claro de imediato: se o mal não é um ente, uma realidade, um grupo, uma parte da realidade, não se pode destruí-lo. O que tem de fazer não é destruir o mal, mas, sim, reordenar nossa vontade. Entretanto, isso precisamente significa converte-se. Para ser antimaniqueista não basta apenas ter uma experiência de conversão, não se trata de simplesmente sair, como saiu Agostinho, de uma seita; significa ter uma visão de mundo centrada na conversão: na necessidade não de destruir o mal, mas, sim, de redimir o bem que está mal. Quiçá um dia estejamos em condições de falar ao mundo atual como falou Agostinho ao maniqueus: “Junto-me a vocês para lamentar por tudo o que está mal, juntem-se vocês a nós em gratidão pelos bens em que estão o mal”.[46]

As três controvérsias as quais nos detemos podem bem ser lidas à luz da criação-queda-redenção como motivos que articulam a visão cristã de mundo; cada uma das controvérsias responde, em certo sentido, a uma crise ao redor da compreensão desses três aspectos. Conforme costuma-se dizer, a amplitude de nossa compreensão da redenção depende de nossa compreensão da criação; a pobreza de um agostinianismo puramente antipelagiano pode muito bem ser entendido dessa forma, que infelizmente é a grande parte do agostinianismo protestante vivo hoje. Os que conhecem algo da literatura do século XVI tem conhecimento de que a Reforma não se limitou apenas a um movimento antipelagiano, mas também estava atenta aos surtos maniqueístas e donatistas; contudo, as ênfases que ela nos legou nos deixou com um agostinianismo incompleto. Calvino escreve Augustinus totus noster, com isso querendo dizer que Agostinho estava totalmente do seu lado; chegou o momento de dizermos Augustus totus com outro sentido: que possamos mergulhar em um Agostinho mais complexo e mais completo. O proveito que isso pode dar ao cristianismo contemporâneo não será imediato; todavia, quem está procurando soluções imediatas certamente está longe de compreender a imensidão de problemas nos quais estamos inseridos.

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[1]Sermão 80,8.

[2]Sermão167. 1. Veja também o sermão 296, 11. De todos os textos de Agostinho, o mais enfático a esse respeito é o sermão 346c, 1-2.

[3]John Webster, “Human Identity in a Postmodern Age” em Angus Morrison (ed.), Tolerance and Truth Rutherford House, Edinburgo, 2007. p. 78.

[4]Carta 16, 4.

[5]Confesiones I, 9, 14.

[6]Confesiones VI, 8, 13.

[7]A oposição entre os dois amigos encontra-se em Confesiones VIII, 6, 15.

[8]A esse respeito, veja Oden, Thomas. How Africa Shaped the Christian Mind IVP, 2008.

[9]Como o melhor expoente desta posição, veja Eric Gregory, Politics and the Order of Love, Chicago University Press,Chicago, 2010.

[10]Joanna Vecchiarelli, “Hannah Arendt’s Secular Augustinianism” em Augustinian Studies 30, 2, 1999.

[11]John Milbank, “Postmodern Critical Augustinianism: a Short Summa in Forty Two Responses to Unasked Questions”em Modern Theology 7, 3, 1991.

[12]Veja, porém, James, K. A. Smith (ed.), Radical Orthodoxy and the Reformed Tradition: Creation, Covenant, and Participation Baker, Grand Rapids, 2005.

[13]The Pelagian Captivity of the Church” é um título, na verdade, de R. C. Sproul em Modern Reformation 10, 3, 2001.

[14]Que algo fique pode ser visto, por exemplo, em alguns textos programáticos de Alvin Plantinga. Veja, por exemplo, seu “Augustinian Christian Philosophy” em Gareth Matthews (ed.) The Augustinian Tradition University of California Press, Los Angeles, 1999.

[15]Sermão 16, 2.

[16]Para uma análise como esta veja sobretudo a Ciudad de Dios II, 20.

[17]Veja a passagem reveladora de as Confissões I, 11, 17.

[18]Contra Fausto I, 3.

[19]Confissões III, 5, 9- 6, 10.

[20]Confissões VIII, 5, 11.

[21]Confissões VIII, 10, 22.

[22]Confissões VII, 11, 17.

[23]Os seus vários sermões sobre os mártires testemunham, sobretudo, isso.

[24]Carta 43, 8, 23.

[25]Sobre a correção dos donatistas 1, 2.

[26]Carta 93, 3, 9.

[27]Cidade de Deus 18, 52.

[28]Carta 93, 7, 22.

[29]Carta 93, 4, 14.

[30]Contra as cartas de Petiliano II, 60, 136.

[31]Confissões X, 29, 40.

[32]Sobre  a graça e o livre-arbítrio19, 40.

[33]Sobre a correção da Graça 8, 17.

[34]Veja a análise do mesmo fenômeno em as Confissões II, 6, 13 e Enarrationes in Psalmos 70, II, 6.

[35]Contra Juliano II, 3, 6.

[36]Quanto à implicação mútua dessas controvérsias, veja Pelikan, Jaroslav. “An Augustinian Dilemma: Augustine’s Doctrine of Grace versus Augustine’s Doctrine of the Church?” em Augustinian Studies (Villanova University) 18, 1987, pp. 1-29.

[37]Carta 93, 9, 34

[38]Para uma aplicação desse entendimento de tolerância à situação contemporânea, veja meu ensaio “Uma disposição passageira? Em direção a uma concepção robusta de mera tolerância” em Una disposición pasajera Ediciones UDP, 2013.

[39]Obra Inconclusa contra Juliano II, 2. Cf. também I, 33.

[40]Contra as Cartas de Petiliano II, 60, 136.

[41]Sobre a utilidade de crer 1, 2.

[42]s. 46, 3.

[43]Sobre a predestinação dos santos, 5.

[44]Para o acesso tanto do inculto quanto do doutor, veja Sobre a doutrina cristã II, 9, 14; para a ironia em relação à leitura puramente inspirada, veja o prefácio da mesma obra.

[45]Para uma introdução ao renascimento do pensamento gnóstico, veja Eric Voegelin, Nueva Ciencia de la Política. Katz, Buenos Aires, 2006.

[46]Contra a epístola do fundamento 30, 33.

Traduzido por Ubevaldo G. Sampaio.

Texto original: Agustinimo Protestante Hoy. Estudios Evangélicos.

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