A relação entre ação social e evangelização

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A discussão a respeito de uma determinada igreja local pregar o evangelho ou fazer ação social não é algo novo. Basta estudar a história da Igreja, para encontrarmos momentos em que a Igreja ora tendia mais para evangelização, ora, para a ação social. Neste texto, não é nosso objetivo fazer um levantamento histórico desses fatos, e sim tentarmos observar alguns textos bíblicos relacionados com a missão da Igreja. Para isso, a princípio, procuraremos entender as consequências da queda do homem relatada no livro de Gênesis e, em seguida, discutiremos qual foi a proposta de Deus ao revelar-se progressivamente, sendo Jesus Cristo o auge dessa revelação. E por último, procuraremos saber qual era o objetivo de Jesus Cristo e dos apóstolos ao organizarem comunidades cristãs e como elas influenciaram a sociedade da época.

Partindo do pressuposto de que Deus se revela e envia Jesus Cristo para salvar o ser humano, se o homem não tivesse cometido pecado, tudo isso não seria necessário, e consequentemente missões. Ao fazer o universo, incluindo o planeta terra, e após ter criado todas as coisas do nada, Deus criou a raça humana. Esta foi colocada no planeta terra para desfrutar e cuidar dele. Como diz Timóteo Carriker1 , Deus é o regente do planeta terra, e o homem, o vice-regente. Infelizmente, essa autoridade sobre o planeta, o homem dividiu com Satanás, quando aceitou colocar em prática a proposta do inimigo. João trata disso em sua primeira carta, quando escreve, “sabemos que somos de Deus, e que todo o mundo está no maligno” (1Jo 5.19). Não podemos negar que Satanás atua hoje em nosso planeta. A presença do mal é real.

Percebemos algumas separações como consequência da queda. O homem separou-se de Deus: “e ouviram a voz do Senhor Deus, que passeava no jardim pela viração do dia; e esconderam-se Adão e sua mulher da presença do Senhor Deus, entre as árvores do jardim. E chamou o Senhor Deus a Adão, e disse-lhe: Onde estás?” (Gn 3.8-9). Nesse texto, observamos que o homem já não conversava com Deus como antes, pois se escondera dele. O homem também se separou do próximo. Ao ser questionado por Deus, ele culpou a sua mulher, que antes era amiga e companheira, “então disse Adão: a mulher que me deste por companheira, ela me deu da árvore, e comi”. (Gn 3.12). Também houve a separação entre o homem e a natureza. “Espinhos, e cardos também, te produzirá; e comerás a erva do campo. No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás.” (Gn 3.18-19). O homem separa-se de si mesmo, pois ele já não é o homem que Deus fez, não sexualmente falando, mas o homem e a mulher já não são os seres com os propósitos para os quais Deus os tinha criado. Prova disso é que o ser humano passa a matar outro ser humano. “E falou Caim com o seu irmão Abel; e sucedeu que, estando eles no campo, se levantou Caim contra o seu irmão Abel, e o matou” (Gn 4.8). Com o pecado do ser humano, a natureza também foi afetada. Paulo diz isso em sua carta aos Romanos, “porque a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a sujeitou, na esperança de que também a mesma criatura será libertada da servidão da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que toda a criação geme e está juntamente com dores de parto até agora”. (Rm 8.20-22).

É possível percebermos todas essas consequências no cotidiano das pessoas em nossos dias. Não é difícil entendermos que o ser humano está separado de Deus. Muitas pessoas que ainda não conhecem Jesus, verdadeiramente, colocam em prática valores que não são cristãos, por exemplo: imoralidade, engano, trapaça, adultério, etc. Que o homem está separado do próximo não é novidade, pois ele consegue tirar a vida do outro, seja com agressão física ou psicológica. Podemos entender que o homem também está separado da natureza, pois esta, para muitos “poderosos”, tem sido apenas fonte de matéria-prima ou alimento para o seu próprio lucro. Poucos pensam em cuidar da natureza. O próprio homem, como a mulher, está dividido. Sem Deus, eles não conseguem colocar em prática o propósito que Deus apresentara no início: viver em comunhão com o próprio Deus. É importante lembrarmos as palavras de Tillich: “o coração humano procura o infinito, porque o finito quer repousar no infinito. No infinito ele vê a sua própria realização”2 . O homem é finito e, sem Deus, ele continua sem esperança, porque o ser humano só encontra descanso no infinito. A própria natureza parece não ser a mesma antes da queda, pois o pecado do homem afetou toda a estrutura em que ele vive.

Após a separação entre o homem e Deus, parte deste quer se relacionar com aquele. Dois versículos, logo no início da Bíblia, deixam clara a situação humana: “E chamou o Senhor Deus a Adão, e disse-lhe: Onde estás?” (Gn. 3.9) e “disse o Senhor a Caim: onde está Abel, teu irmão? E ele disse: não sei; sou eu guardador do meu irmão? (Gn 4.9). Esses textos demonstram a posição do homem perante Deus, ou seja, separado de Deus e do próximo. Deus pergunta para Caim onde está o teu próximo, teu irmão. São dois aspectos do pecado que permeiam toda a Bíblia. Nos Dez Mandamentos, os cinco primeiros mandamentos são voltados para o ser humano em relação a Deus, os outros cinco são voltados para o ser humano em relação ao próximo. Dessa forma, percebemos que o interesse de Deus é ver o ser humano se relacionando com ele e com o próximo de uma forma saudável, sem trocas, sem barganhas, sem trapaças, e outras coisas mais. Por esse motivo, é que encontramos um Deus no Antigo Testamento muito irado com algumas práticas do ser humano, dentre elas: adoração aos bens materiais e a injustiça. Deus se desagrada com a adoração a coisas limitadas, como ídolos, dinheiro, nação, templo etc., e também com a injustiça, como explorar os outros, utilizar o próximo como objeto para atingirmos nossos objetivos, etc. Quando Deus tira o povo hebreu do Egito, com o objetivo de formar a nação de Israel, ele deixa claro para Moisés por que vai agir assim: “E disse o Senhor: tenho visto atentamente a aflição do meu povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus exatores, porque conheci as suas dores. Portanto desci para livrá-lo da mão dos egípcios…” (Êx 3.7-8), e depois Deus diz: “e ouvirão a tua voz; e irás, tu com os anciãos de Israel, ao rei do Egito, e dir-lhe-eis: O Senhor Deus dos hebreus nos encontrou. Agora, pois, deixa-nos ir caminho de três dias para o deserto, para que sacrifiquemos ao Senhor nosso Deus” (Êx 3.18). Deus estava e está irado com a injustiça e com a adoração a coisas finitas.

Todo o Antigo Testamento demonstra essa postura de Deus. Ele quer que o ser humano o reconheça como Deus e que trate o próximo com amor, como outro ser humano. Um bom relacionamento com o próximo requer um bom relacionamento com Deus. Com este texto de Juízes e outros do Antigo Testamento, percebemos o perigo da adoração errada: “e deixaram ao Senhor Deus de seus pais, que os tirara da terra do Egito, e foram-se após outros deuses, dentre os deuses dos povos, que havia ao redor deles, e adoraram a eles; e provocaram o Senhor à ira” (Jz 2.12). Além disso, encontramos em Levítico e em outras passagens o perigo da injustiça: “não furtareis, nem mentireis, nem usareis de falsidade cada um com o seu próximo; nem jurareis falso pelo meu nome, pois profanarás o nome do teu Deus. Eu sou o Senhor. Não oprimirás o teu próximo, nem o roubarás; a paga do diarista não ficará contigo até pela manhã” (Lv 19.11-13). Em Provérbios, encontramos esta afirmação: “melhor é o pouco com justiça, do que a abundância de bens com injustiça” (Pv 16.8). Logo depois, no mesmo livro, lemos que “fazer justiça e juízo é mais aceitável ao Senhor do que sacrifício” (Pv 21.3). Os profetas também revelam essa vontade de justiça da parte de Deus. Mencionaremos apenas Isaías. “Aprendei a fazer bem; procurai o que é justo; ajudai o oprimido; fazei justiça ao órfão; tratai da causa das viúvas. Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem mal; que fazem das trevas luz, e da luz trevas; e fazem do amargo doce, e do doce amargo! Ai dos que são sábios a seus próprios olhos, e prudentes diante de si mesmos! Ai dos que são poderosos para beber vinho, e homens de poder para misturar bebida forte; dos que justificam ao ímpio por suborno, e aos justos negam a justiça!” (Is 5.17, 20-23).

Também observamos no Antigo Testamento, dentre vários versículos, textos relacionados com a ecologia: “Se vires o jumento que é de teu irmão, ou o seu boi, caídos no caminho, não te desviarás deles; sem falta o ajudarás a levantá-los. Quando encontrares pelo caminho um ninho de ave numa árvore, ou no chão, com passarinhos, ou ovos, e a mãe posta sobre os passarinhos, ou sobre os ovos, não tomarás a mãe com os filhotes; deixarás ir livremente a mãe, e os filhotes tomarás para ti; para que te vá bem e para que prolongues os teus dias” (Dt 22.4,6,7). Assim, notamos que, no Antigo Testamento, Deus está preocupado com a posição do ser humano em relação a Ele, ao próximo, à natureza, etc. Então, o que acontece com essa postura de Deus no Novo Testamento? Ele não está mais interessado numa verdadeira adoração? Na prática da justiça? Deus não está mais interessado em que o ser humano cuide do planeta? Se dissermos que Deus perdeu esses interesses, é como se disséssemos que Deus mudou os seus propósitos.

Começando por João Batista, entendemos que a sua pregação apresenta o conteúdo de uma adoração correta: “eu, em verdade, vos batizo com água, para o arrependimento; mas aquele que vem após mim é mais poderoso do que eu; cujas alparcas não sou digno de levar; ele vos batizará com o Espírito Santo, e com fogo” (Mt 3.11); de justiça e arrependimento: “e, respondendo ele, disse-lhes: quem tiver duas túnicas, reparta com o que não tem, e quem tiver alimentos, faça da mesma maneira. Uns soldados o interrogaram também, dizendo: e nós que faremos? E ele lhes disse: a ninguém trateis mal nem defraudeis, e contentai-vos com o vosso soldo” (Lc 3.11,14). O próprio Jesus falou isto de João: “porque João veio a vós no caminho da justiça, e não o crestes, mas os publicanos e as meretrizes o creram; vós, porém, vendo isto, nem depois vos arrependestes para o crer” (Mt 21.32). Não só João Batista, Jesus também se preocupou com a justiça. Em Mateus lemos: “bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus; porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus” (Mt 5.10,20). Compreendemos, assim, que Deus está interessado em nossa conduta. Estamos praticando a justiça ou a injustiça? O que a justiça e a adoração correta têm a ver com a missão integral? Têm tudo a ver.

Quando pensamos em missão integral, precisamos lembrar que o nosso objetivo é reconciliar o ser humano em todos os seus aspectos: com Deus, com o próximo, com si mesmo, com a natureza, etc. Afinal, Deus não nos deu o ministério da reconciliação? “E tudo isto provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por Jesus Cristo, e nos deu o ministério da reconciliação” (2Co 5.18). Dessa forma, precisamos ampliar o nosso conceito de missão. A evangelização reconcilia o ser humano com Deus, porém a falta de educação, a falta de alimento, a falta de saúde, a falta de justiça são também questões com as quais a Igreja tem de lidar. O próprio Jesus ensinou, alimentou, curou e praticou a justiça. A Igreja não é Corpo de Cristo na terra? Logo, ela precisa dar continuidade àquilo que Jesus começou. Jesus não saiu apenas pregando. Além de pregar, ele praticou o que pregou. Para que a sua pregação desse resultado, ele formou uma comunidade que colocou em prática uma ética com base na justiça, na verdade, no amor, no perdão, na misericórdia, etc.

Não estamos falando de justiça humana, de revoluções para derrubar governos injustos, de vendermos tudo, dar para os outros e morarmos todos juntos em um galpão bem grande. Não é essa a proposta de Jesus. O nosso Mestre não organizou nenhum exército para derrubar o Império Romano, não saiu roubando pão para distribuir aos pobres, não saiu vendendo saúde ou curando somente aqueles que aceitassem sua mensagem. Jesus tinha e tem amor para oferecer. Ele curava, ensinava, salvava, dava o pão porque amava. Ele valorizava mais as pessoas do que as coisas. Os discípulos aprenderam isso, como se pode ver na passagem em que Lucas narra o que eles estavam fazendo: “E era um o coração e a alma da multidão dos que criam, e ninguém dizia que coisa alguma do que possuía era sua própria, mas todas as coisas lhes eram comuns. E todos os que criam estavam juntos, e tinham tudo em comum. E vendiam suas propriedades e bens, e repartiam com todos, segundo cada um havia de mister. E, perseverando unânimes todos os dias no templo, e partindo o pão em casa, comiam juntos com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus, e caindo na graça de todo o povo. E todos os dias acrescentava o Senhor à igreja aqueles que se haviam de salvar” (At 2.44-47). No capítulo 4, Lucas retoma o assunto: “E era um o coração e a alma da multidão dos que criam, e ninguém dizia que coisa alguma do que possuía era sua própria, mas todas as coisas lhes eram comuns. E os apóstolos davam, com grande poder, testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e em todos eles havia abundante graça. Não havia, pois, entre eles necessitado algum; porque todos os que possuíam herdades ou casas, vendendo-as, traziam o preço do que fora vendido, e o depositavam aos pés dos apóstolos. E repartia-se a cada um, segundo a necessidade que cada um tinha” (At 4.32-35).

Tanto no capítulo 2 como no capítulo 4, sempre que Lucas fala da pregação dos apóstolos, ele menciona que não havia necessitado na igreja. No capítulo 2, ele diz que todos os dias o Senhor acrescentava à igreja aquele que se havia de salvar. Como disse o professor José Fernandes Furtado3 , “parece que o Senhor acrescentava à igreja aqueles que precisavam ser evangelizados”. Mas antes de mencionar isso, Lucas diz que ninguém dizia que coisa alguma do que possuía era sua. Eles repartiam com os necessitados. No capítulo 4, Lucas novamente faz menção ao fato de os apóstolos darem testemunho com grande poder da ressurreição do Senhor Jesus. Antes e depois de falar sobre isso, Lucas diz que não havia necessitado entre eles. Poderíamos perguntar o que tem a ver evangelização com a situação de não haver necessitado entre eles? Podemos concluir que a autoridade da pregação dos apóstolos estava na prática. Eles falavam para as pessoas do amor de Jesus. Se elas quisessem conhecer esse amor de Jesus, apenas precisavam ir à igreja, pois ali, naquela comunidade cristã, o amor era demonstrado. Não havia necessitado entre eles.

Tanto Jesus como os apóstolos valorizaram mais as pessoas do que os bens materiais. Por que, além de evangelizarmos, não ajudamos financeiramente os jovens das igrejas a fazerem faculdades ou cursos profissionalizantes? Por que as nossas igrejas não ajudam os nossos irmãos a pagarem seus planos de saúde? Por que as nossas igrejas não ajudam os nossos irmãos a pagarem seus aluguéis, conta de luz, água, IPTU atrasados? A desculpa que mais ouvimos é: “não podemos fazer isso, porque as pessoas vão ficar dependentes da igreja”. Será que não temos sociólogos, antropólogos, médicos, psicólogos, psiquiatras cristãos que possam auxiliar os pastores a fazerem uma triagem para descobrir como ajudar as pessoas? Para que tudo isso ocorra, precisamos valorizar mais as pessoas do que os bens. Só assim demonstraremos o amor de Jesus. “Conhecemos o amor nisto: que ele deu a sua vida por nós, e nós devemos dar a vida pelos irmãos” (1Jo 3.16). 

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Notas

1CARRIKER, Timóteo. O caminho missionário de Deus: uma teologia bíblica de missões.  São Paulo, Sepal, 2000, p. 15.

2 TILLICH, Paul. Dinâmica da fé. São Leopoldo, Sinodal, 1996, p. 13.

3 Professor José Fernandes Furtado lecionou grego e hebraico na Faculdade Teológica Batista de São Paulo.

 

1 COMENTÁRIO

  1. Gostei muito do artigo, estou cursando Teologia e tenho que apresentar um projeto de pesquisa com o tema: Adolescente em conflito com a lei: Responsabilidade Social da Igreja de Cristo. E estava a procura de referenciais teóricos, concerteza vou colocar este artigo. Muito bom!!!!

  2. Meu querido professor em missoes na Teologica, fiquei feliz em ler o seu artigo e ver nele que o senhor não mudou é eu também creio assim e acho que a igreja esta com os olhos fechados e não consegue ver o quanto Ela ‚ importante para … sociedade nós dias atuais, oro para que Deus abra os nossos olhos para ver as necessidades dos nossos semelhantes, parabéns pelo artigo… Pastor Levy Martins.

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