A história da “nova perspectiva de Paulo”2
Krister Stendahl publicou, no começo de 1970, o livro Paul Among Jews and Gentiles, em que sugeriu que a interpretação tradicional usava as lentes de Lutero e da Reforma para interpretar Paulo, dando início à chamada “nova perspectiva de Paulo”. Em 1977, foi lançada a obra de E. P. Sanders, Paul and Palestinian Judaism, que se tornou uma obra extremamente influente no que se refere à mudança de perspectiva no estudo sobre a relação entre o judaísmo e Paulo, seguida por Paul, the Law and the Jewish people, escrita em 1983.
Sanders, partindo de suas pesquisas no material rabínico, argumentou que o judaísmo da Palestina, na época de Jesus e de Paulo, não era uma religião legalista, preocupada em acumular méritos diante de Deus — antes, era uma religião baseada na graça de Deus revelada nas alianças com Israel, especialmente no Sinai. Portanto, longe de ser legalista, o fariseu da época de Jesus e de Paulo se considerava, por nascimento, dentro da graça e da aliança. Ele não praticava as “obras da lei” de forma legalista, nem para justificar-se — mas simplesmente para manter-se dentro da aliança. Dessa forma, Sanders concluiu que o padrão religioso do judaísmo palestino não era o legalismo, mas o nomismo da aliança, que consistia de “entrar” (pela graciosa eleição de Deus) e “permanecer” (pela obediência) no pacto.
James D. G. Dunn é outro autor importante. Sua ênfase no papel social das “obras da lei” tem recebido grande aceitação. Para Dunn, Paulo atacou as “obras da lei” não porque elas expressassem o desejo de alcançar mérito por parte dos judeus, mas porque entende que elas fazem distinção entre os judeus, o povo de Deus da aliança e os gentios, a quem o evangelho tem sido oferecido. Como Augustus Nicodemus destaca, para Dunn, as “obras da lei”, que Paulo identifica como restritas à circuncisão, às leis sobre alimentos puros e impuros e aos dias especiais do calendário judaico, são emblemas que caracterizam o judaísmo e devem ser rejeitadas porque enfatizam a separação entre judeus e não judeus, a qual Cristo veio abolir.
O trabalho de Stendahl e Sanders, entre outros, têm influenciado de forma decisiva o debate atual da nova perspectiva sobre a relação entre Paulo e a lei. Percebe-se uma mudança na abordagem de vários estudiosos na direção de uma percepção mais positiva e menos crítica ao judaísmo, aos judeus e à lei. Como consequência, Paulo tem sido visto de forma negativa, como detentor de uma perspectiva distorcida da religião dos seus pais, ou mesmo como mal-intencionado em sua maneira de caricaturar e de condenar o judaísmo. E o que é ainda mais sério, a polêmica de Paulo contra as ‘obras da lei’ é lançada no vácuo, já que, segundo a ‘nova perspectiva’, ninguém no primeiro século estava dizendo que a salvação era por obras — muito menos os judeus. Segundo os exegetas da ‘nova perspectiva’, ou Paulo entendeu mal o judaísmo da sua época (…), ou então não estamos entendendo bem Paulo (…); ele realmente nunca foi contra as ‘obras da lei’ como um caminho falso de salvação, como Lutero e outros reformadores afirmaram, e suas críticas à lei, às ‘obras da lei’ e ao judaísmo precisam ser interpretadas de maneira diferente da tradicional.
Em síntese, os defensores da “nova perspectiva” afirmam que:
1. O judaísmo antigo não era legalista, no sentido de ensinar a justificação pelas obras, e assim não pode ser interpretado como uma antecipação do legalismo medieval;
2. O argumento de Paulo contra os judaizantes não tinha a ver com a justificação pelas obras, em oposição à justificação pela graça, mas com o lugar dos gentios na igreja, em face das reivindicações dos judeus de serem o único povo de Deus e sua tendência de usar as obras da lei para excluir os gentios da aliança, em vez de incluí-los;
3. O nomismo da aliança do Antigo Testamento é o meio divino de salvação para Israel, enquanto o evangelho livre da lei é o meio divino de salvação para os gentios;
4. Os reformadores não levaram a sério o contexto religioso de Paulo, e interpretaram mal o evangelho;
5. A oposição entre a lei e o evangelho, enfatizada pelos reformadores, não é bíblica, nem a tendência de descartar qualquer papel para as obras, pois a obediência à lei era considerada a maneira de manter-se fiel à aliança;
6. Os que não concordam com a “nova perspectiva” correm o risco de cair no antissemitismo, implícito ou explícito.3
A resposta à “nova perspectiva”
Para entender o ensino do Novo Testamento, é preciso conhecer a natureza da religião dos judeus do período do segundo templo. E, como vimos, hoje existe um acalorado debate entre os eruditos do Novo Testamento sobre esse tema, o que levou alguns biblistas, seguidores da chamada “nova perspectiva”, como E. P. Sanders, James Dunn e N. T. Wright a modificarem radicalmente a interpretação de vários textos bíblicos, particularmente os de Paulo.4
A “nova perspectiva” tem dois pontos principais que são de interesse para nosso estudo: 1) os judeus do primeiro século não eram legalistas e 2) a justificação não é uma questão de como entrar na aliança, mas sobre quais são os sinais de se encontrar na aliança.
Em relação ao primeiro ponto, os proponentes da “nova perspectiva” dizem que os judeus não acreditavam em salvação pelas obras, mas na justificação pela graça por meio da fé. A interpretação legalista foi um erro, provocado pela controvérsia entre Agostinho e Pelágio e, depois, entre Lutero e a igreja católica. Lutero e Agostinho, supostamente, leram Paulo com os óculos dessas controvérsias, e entenderam erroneamente o que Paulo quis dizer na sua discussão da livre graça versus as “obras da lei”. Quanto ao segundo, a justificação não tem a ver com o como ser salvo, mas sobre como saber quem é salvo.5 Outra afirmação da “nova perspectiva” é que a doutrina da justificação não é uma preocupação central na teologia de Paulo e não está no centro do evangelho.
À luz disso, o discurso de Paulo em Gálatas não seria uma refutação da justificação pelas boas obras. A questão é sobre como se identifica quem faz parte da aliança. Os judeus seguiam o “nomismo pactual”. Assim, deve-se guardar a lei como sinal de quem pertence ao povo da aliança. Por isso, eles queriam impor a lei aos convertidos gentios, não para salvá-los (pois já eram salvos), mas para que esses se distinguissem dos ímpios. Paulo respondeu dizendo que o sinal de quem pertence ao povo da aliança não é a circuncisão e nem o guardar a lei, mas é a fé somente. Nesse sentido, a fé dos gentios era o único sinal necessário não para ser salvo, mas como o sinal exterior para mostrar que eles faziam parte da comunidade da aliança. A justificação, então, não seria uma declaração de que a pessoa é justa, perdoada dos pecados, diante da lei, mas a declaração de que essas pessoas realmente pertencem ao povo da aliança. Assim, a força do argumento de Paulo na epístola aos Gálatas e em outras de suas discussões contra o legalismo judaizante, é completamente esvaziada.
Em resposta, vários eruditos do Novo Testamento afirmam que a “nova perspectiva” não leva em conta todos os dados acerca do judaísmo do primeiro século. Enquanto é correto entender a fé do Antigo Testamento como uma religião da graça e não das obras, parece que durante o período interbíblico o legalismo floresceu em Israel. Na literatura rabínica da época, existem duas tradições diferentes de justificação, uma fundamentada na eleição de Israel e outra alicerçada nas obras do indivíduo.6 O fato é que, no discurso da elite religiosa judaica, tanto as obras quanto a graça estavam presentes. Não há razão para se duvidar de que a tendência em favor do legalismo poderia ter sido mais forte na religião popular. Mas, de qualquer maneira, fica claro que o legalismo era um problema e, com certeza, um problema que Jesus e Paulo enfrentaram no dia da pregação das boas-novas.
É justamente no contexto desta última observação que devemos destacar a questão dos discursos de Jesus contra os judeus. É necessário lembrar que a polêmica de Jesus foi dirigida não contra o povo de Israel, mas contra a elite religiosa, que estava desencaminhando o povo. Qual foi o ponto em disputa entre Jesus e a liderança religiosa? Obviamente, um ponto foi a questão de sua identidade como o Messias, o Filho de Deus, como se vê em João 8. Mas, além disso, na discussão entre Jesus e os fariseus, em Mateus 23, Blomberg nota que há elementos de legalismo nas pesadas exigências que os fariseus estabeleceram para o povo (Mt 23.4, 13-14).7 Também podemos ver na parábola do fariseu e do publicano que o fariseu dependia de suas obras como base de sua justificação, enquanto o publicano suplicou pela graça de Deus. A parábola não faria sentido se não houvesse legalismo na prática dos fariseus. Caso contrário, qual seria o objetivo de Jesus ao contá-la?
Podemos fazer as mesmas observações sobre os argumentos de Paulo contra as “obras da lei”. Se não houvesse um elemento de legalismo operando no pensamento de pelo menos alguns judeus, por que ele argumentou contra essas obras como a base para se gloriar? O argumento permaneceria o mesmo, se os judeus estivessem apenas se gloriando nas obras como sinais de sua membresia na aliança e não como um sistema de mérito através do qual a justiça seria adquirida? Se esse era o caso, então por que Paulo continua o argumento com o contraste entre o trabalhador, que merece um salário, e a fé, que é o instrumento para receber a justiça imputada e não merecida (cf. Rm 4.4-8)?
Além disso, é interessante notar que os que seguem a “nova perspectiva” querem realçar as diferenças entre a soteriologia da igreja católica medieval e a dos judeus antigos. Mas, ao examinar a questão mais de perto, o paralelo entre ambos os sistemas permanece. A “nova perspectiva” diz que os judeus não acreditavam que a justificação (que era a membresia no povo da aliança) foi recebida através das obras. As pessoas não entraram na aliança fazendo as obras da lei. Mas, nisso, o catolicismo é igual à “nova perspectiva”. Para os católicos, como já vimos, a justificação inicial vem mediante o batismo, e a criança é aceita na igreja, o que seria o equivalente de fazer parte da aliança, por meio da graça, e não por obras. Na “nova perspectiva”, segundo Sanders, embora as obras da lei não sejam o meio para entrar na aliança, elas são essenciais para se permanecer nela. Quem não faz as obras da lei, então, não pode continuar no estado de justificação. O argumento do catolicismo romano é exatamente esse. As boas obras são necessárias para manter a justificação. Foi exatamente contra isso que Lutero, Calvino e toda a Reforma Protestante lutaram. Portanto, Moo está absolutamente correto ao afirmar que a “nova perspectiva” não conseguiu livrar o sistema rabínico do sinergismo entre a fé e as obras. Uma vez que as boas obras são introduzidas no processo, elas passam a ter papel decisivo na salvação. Na prática, o legalismo será o resultado. Pela força da polêmica de Paulo contra a justificação pelas boas obras, é evidente quão relevante isso era na vida da igreja primitiva.
Essa curta discussão não tem como alvo lidar adequadamente com todas as questões levantadas pela “nova perspectiva” sobre Paulo. Mas, apesar de essa posição estar sendo aceita por vários eruditos, ainda existem muitos que se opõem a ela no mundo acadêmico. O mundo de Israel do primeiro século era sociologicamente complexo, portanto seria um erro reduzir as crenças religiosas do povo a uma unidade monolítica. Existia uma diversidade de práticas, crenças e seitas entre o judaísmo do primeiro século. Entre elas, o legalismo teve seu lugar e, assim, era uma ameaça à vida da nascente igreja. Esse legalismo precisava ser enfrentado, e tanto Jesus quanto Paulo responderam ao desafio à altura. Embora os estudos recentes possam enriquecer nossa interpretação de Paulo com novas informações, eles não conseguiram produzir dados convincentes que bastem para derrubar a interpretação tradicional dos teólogos luteranos e reformados sobre obras versus graça.
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1Resumido e adaptado de Franklin Ferreira e Alan Myatt, Teologia Sistemática (São Paulo: Vida Nova, 2007), p. 308-310, 337-341.
2Cf. Augustus Nicodemus Lopes, “Paulo e a lei de Moisés: um estudo sobre as ‘obras da lei’ em Gálatas”, em Alan B. Pieratt (ed.). Chamado para servir; ensaios em homenagem a Russell P. Shedd, p. 65-73. Para um resumo da posição de Stendahl, Sanders e Dunn, cf. John Stott, Romanos, p. 19-29. Cf. também Alister McGrath, Teologia sistemática, histórica e filosófica; uma introdução à teologia cristã, p. 528-530 e Alister McGrath, Iustitia Dei, p. 376-387.
3Peter Stuhlmacher, Lei e graça em Paulo; uma reafirmação da doutrina da justificação, p. 47. Cf. também Donald A. Hagner, “Paulo e o judaísmo: testando a nova perspectiva”, em: Peter Stuhlmacher, Lei e graça em Paulo, p. 93-133.
4Cf., por exemplo, E. P. Sanders, Paul and Palestinian Judaism, James. D. G. Dunn, A teologia do apóstolo Paulo, p. 387-447 e N. T. Wright. What saint Paul really said. É importante ter em mente que os adeptos da “nova perspectiva” discordam uns dos outros sobre vários pontos de interpretação, mas têm em comum os pontos essenciais aqui mencionados. Entre os três, Wright tem se identificado como evangélico, afirmando a natureza forense da justificação. Por isso, e por causa do valor dos seus outros escritos, ele tem alguns defensores entre os evangélicos. Até mesmo os críticos entre os evangélicos reconhecem o valor da erudição de Wright em muitos pontos. Mesmo assim, entre outros problemas, ele redefine a justificação de modo que a doutrina deixa de ser uma questão soteriológica (como a pessoa é salva), passando a ser eclesiológica (quem está dentro do povo de Deus). Em outras palavras, a justificação não se refere a como se tornar justo (moralmente inocente) diante da lei. Assim, Wright quer minimizar as diferenças entre a fé reformada e o ensino católico. Parece que o ensino de Wright não é consistente, colocando em dúvida seu compromisso com a fé evangélica. Algumas obras de Wright, como seus escritos acerca da ressurreição de Jesus, são muito proveitosos. Mas nossa opinião é que, apesar de quaisquer pontos positivos que se encontrem nas obras de Wright, ele não é um guia confiável para se entender corretamente a questão da justificação.
5Peter Stuhlmacher, Lei e graça em Paulo, p. 40-47.
6Peter Stuhlmacher, op. cit., p. 49. Cf. também Douglas Moo, The Epistle to the Romans, p. 211-217.
7Craig Blomberg, Matthew. The New American Commentary, v. 22, p. 341, 344.