500 anos da Reforma

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Neste ano de 2017 a igreja evangélica no mundo inteiro celebra os 500 anos da Reforma Protestante do século 16. A data tradicional em que se celebra este evento importantíssimo para a história do Ocidente é o dia 31 de outubro, quando Martino Lutero afixou na porta da Igreja do Castelo da cidade de Wittenberg, na Alemanha, o Debate para o esclarecimento do valor das indulgências, que tem sido chamado popularmente de as “95 teses”.

O que torna esse ato de contestação de Lutero tão significativo é que sua atitude de afixar na porta da igreja suas teses era parte de um movimento internacional – e praticamente simultâneo – de retorno aos antigos marcos da fé cristã, como estabelecidos na Escritura. Por toda a Europa homens e mulheres se destacaram na luta para reformar a fé, redescobrindo seu caráter evangélico. O amigo e cooperador de Lutero, Felipe Melanchthon; Ulrico Zuínglio, em Zurique; João Calvino, em Genebra; Martin Bucer, em Estrasburgo; William Tyndale e Thomas Cranmer, na Inglaterra; João Knox, na Escócia; Menno Simons, na Holanda, são os nomes que mais se destacam nessa época. Entre as mulheres podem ser mencionadas Katherine von Bora, esposa de Lutero; Katharina Schutz Zell, de Estrasburgo; Marguerite de Navarre, irmã do rei francês Francisco I e protetora dos reformadores franceses; Jeanne d’Albret, rainha de Navarre; Jane Grey, rainha da Inglaterra por poucos dias; Marie Dentière, de Genebra, que escreveu o prefácio a uma publicação de Calvino; e a italiana Olimpia Fulvia Morata, uma erudita em latim e grego.

Mas o que é “Reforma”, afinal? A palavra é uma tradução do latim, reformatio, e, de acordo com Patrick Collinson, traz a noção de “rejeição de novidades, que se definiam pelas graves distorções da verdade cristã que passaram por verdades em séculos mais recentes, e que conhecemos como catolicismo medieval”. Já no século 15 os cristãos ocidentais falavam de reforma, “termo frequentemente encontrado na fórmula ‘reforma da Igreja, de sua cabeça e seus membros’ e nesse nível acreditava-se que o objetivo da reforma deveria ser todo o corpo da Igreja, porém mais especialmente as camadas mais elevadas”.1 

Mas a Reforma do século 16 foi diferente das tentativas anteriores. Carl Trueman oferece a seguinte definição: “A Reforma é a tentativa de colocar Deus, como ele se revelou em Cristo, no centro da vida e do pensamento da igreja”.2  Podemos perceber isso nas três áreas que foram reafirmadas pela Reforma do século 16: a centralidade da Escritura, a justificação pela fé e o sacerdócio de todos os crentes.

A igreja medieval teve sua autoridade minada por causa do papado desacreditado e do clero corrupto. Foi nesse contexto que os reformadores reafirmaram a autoridade da Escritura como um guia certo e suficiente para a salvação e o conhecimento de Deus. O fundamento da autoridade não era a Escritura interpretada pela igreja e pelo clero. Era a crença na clareza da Escritura, a noção de que qualquer pessoa, por meio da iluminação do Espírito Santo, poderia entender a mensagem central da Palavra de Deus, que é o caminho da salvação por Cristo somente. Por isso, os reformadores pregaram, ensinaram e traduziram a Escritura na língua do povo e creram que foi a Escritura que produziu a Reforma.

A segunda e mais importante doutrina redescoberta pelos reformadores foi a doutrina de justificação pela graça, baseada somente na livre graça de Deus, e recebida pela fé somente. Num contexto dominado por ideias da graça divina mediada pelos sacramentos eclesiásticos e recebida pela cooperação do fiel, além das noções de que a salvação poderia ser conseguida mediante a compra de indulgências, o ensino bíblico da justificação redescoberto pelos reformadores foi como bálsamo para corações feridos. Não é surpresa que aqueles que entenderam este ensino, e receberam alívio, segurança e esperança por meio dele, preferiam morrer antes de negá-lo. Portanto, a ideia da imputação da justiça de Cristo ao que crê somente foi o coração da mensagem da Reforma do século 16.

A terceira área reafirmada na Reforma foi a redescoberta de uma nova compreensão da vida cristã. A igreja medieval era dividida em duas classes, o clero e o laicato. Nos anos anteriores à Reforma, houve, entre muitas pessoas, fome de comunhão mais íntima com Deus, e surgiram movimentos para suprir estes anseios. Mas algumas destas pessoas não podiam se tornar membros do clero, por causa das responsabilidades com suas famílias, e outras não queriam se tornar membros do clero por causa de sua corrupção.

Os reformadores, então, afirmaram e ensinaram que nem todos são chamados para ser pastores, mestres ou conselheiros. Há um só “estado” – todos os cristãos são sacerdotes –, mas uma variedade de funções, isto é, cada cristão tem um chamado específico da parte de Deus, para glorificá-lo no mundo. Assim, todo cristão é sacerdote de alguém, e somos todos sacerdotes uns dos outros. Portanto, não se pode ser cristão sozinho, é necessária a “comunhão dos santos”, a igreja, que deve ser uma comunidade de intercessores, um sacerdócio de amigos que se ajudam, uma família na qual as cargas são compartilhadas e suportadas mutuamente.

É importante ressaltar que essa noção de sacerdócio universal de todos os crentes contribuiu em muito para um cristianismo menos hierarquizado e foi parte essencial da construção da democracia em toda a civilização ocidental. Essa ideia é fundamental para que cada cristão lembre de sua responsabilidade perante Deus, sem depender de pretensas instâncias religiosas que controlem sua vida.

Assim, ainda que sejam consideradas questões políticas, sociais, culturais e econômicas na Reforma Protestante, a marca significativa deste movimento é a sua clara preocupação com a doutrina e a prática da fé como afirmada na Escritura Sagrada. Essa postura nunca deixará de ser atual, pois a igreja deve ser semper Reformanda, isto é, sempre voltar ao fundamento, à Escritura, que deve ser permanentemente visitada para que a igreja seja iluminada e conduzida pela Palavra de Deus, que nos foi revelada como única regra de fé e prática.

Soli Deo Gloria
!

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1Patrick Collinson, A Reforma (Rio de Janeiro: Objetiva, 2006), p. 32, 37.
2Carl R. Trueman, Reforma ontem, hoje e amanhã (Recife: Os Puritanos/CLIRE, 2013), p. 19.

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