[Sem] contribuições heréticas à ortodoxia: a reflexão de Alister McGrath sobre o conceito de heresia

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Há muitas narrativas nesse mundo plural. No entanto, quando uma narrativa de contribuição entra em rota de colisão com outra narrativa a ponto de causar prejuízos para comunidade de fé, como proceder? Responder essa pergunta é um desafio. Em 2009, Alister McGrath publicou Heresy: a history of defending the truth pela Harper Collins Publishers. Depois de cinco anos, a obra foi traduzida para o português com o título “Heresia: Uma história em defesa da verdade” (São Paulo: Hagnos, 2014). Sendo assim, utilizou-se aqui como referencial teórico a obra em português do teólogo irlandês Alister McGrath. Apresenta-se, então, a proposta do livro nas palavras de McGrath:

Este livro é um trabalho de síntese que procura reunir importantes estudos na área e explorar a relevância deles na contemporaneidade para a nossa compreensão da ideia de heresia. Não se pretende encontrar novos caminhos em nosso entendimento do conceito de heresia de uma forma geral, ou de qualquer heresia específica em particular. Não se trata de uma narrativa detalhada, abrangente, das muitas heresias que têm surgido dentro do cristianismo. (p. 19)

O evangelical Alister Edgar McGrath (1953-) é um polymath irlandês. Ele é formado em química e tem doutorado em biofísica molecular ambos pela Universidade de Oxford. O Rev. Prof. Alister McGrath migrou para a carreira teológica. Para isso, ele conseguiu finalizar os estudos teológicos na Universidade de Oxford em dois anos. Com isso, ele obteve o título de bacharel em teologia em 1978 com menção honrosa e ganhou o prêmio Denyer and Johnson em teologia pelo melhor desempenho nas avaliações daquele ano. Além disso, o seu curriculum conta com mais dois doutorados por meio de publicações relevantes e três doutorados honoris causa na área de humanidades. O autor tem dezenas de artigos e livros, entre eles, alguns publicados por editoras brasileiras protestantes e católica romana: Fundamento do Diálogo entre Ciência e Religião (Loyola, 2005), Paixão pela Verdade (Shedd Publicações, 2007), Apologética Cristã no Século XXI (Vida, 2008), Teologia Pura e Simples (Ultimato, 2012), A Gênese da Doutrina (Vida Nova, 2015), Deus não vai embora (Cultura Cristã, 2018), Uma Teoria de Tudo (Mundo Cristão, 2021) e Ciência & Religião (Thomas Nelson Brasil, 2020). Para mais informações biográficas, deve-se consultar o texto “Ciência, fé e compreensão do sentido das coisas”, de McGrath escrito no livro: “Verdadeiros cientistas, fé verdadeira”, publicado pela editora Ultimato em 2016.

A relevância da obra “Heresia”, de McGrath está inserida em um contexto da modernidade tardia, denominado a atração da contemporaneidade pela heresia. Por exemplo, em “Why is contemporary scholarship so enamored of ancient heresies?” de Patrick Henry, este afirmou: “as heresias são vistas como declarações corajosas e ousadas de liberdade espiritual a serem valorizadas, em vez de evitadas”[1]. Já o historiador da cultura Peter Gay afirma: “[…] ‘a atração da heresia’ — uma intrigante frase de efeito que indica um desejo devastador e sedutor de subverter, ou no mínimo desafiar, as expectativas culturais convencionais”[1]. De acordo com o escritor judeu Will Herberg (1901-1977), “a heresia é radical e inovadora, enquanto a ortodoxia é prosaica e reacionária”[2]. E continua Herberg, em plena “teologia da morte de Deus” em 1960 — “Hoje, as pessoas se vangloriam avidamente de serem hereges, esperando com isso se mostrarem interessantes; pois o que significa ser um herege, senão ter mente original, ser um homem que pensa por si mesmo e rejeita credos e dogmas?”[2][3].

A obra resenhada foi organizada com uma introdução, quatro partes e uma conclusão sobre “O futuro da heresia”. As quatro partes são: “o que é heresia?” (p. 25-54), “as raízes da heresia” (p. 57-125), “as heresias clássicas do cristianismo” (p. 130-213) e “o impacto duradouro da heresia” (p. 217-282).

A primeira parte perpassa pela questão “o que é heresia?”. Para isso, McGrath dividiu em dois capítulos. O primeiro capítulo desenvolve o argumento da dimensão “[d]a natureza da fé” (p. 30-33), passando “pela consolidação da fé” (p. 33-37) até chegar “[n]a preservação da fé” (p. 37-43). É interessante perceber “a entrega de bastão” de uma seção para outra seção de maneira a evidenciar o status quaestionis da fé cristã nos primeiros dois séculos da nossa era de acordo com as pesquisas de McGrath. Para entender a leitura de McGrath, faz-se um resumo recortado do argumento dessas três seções elaborado pelo teólogo britânico.

Crer em Deus é confiar em Deus […] confiar em alguém leva ao comprometimento […] [a] fé — geralmente comprometida de modo relacional — e [a] crença — geralmente comprometida de modo cognitivo ou conceitual […] As crenças representam uma tentativa de colocar em palavras a substância dessa fé, reconhecendo que as palavras nem sempre são capazes de representar o que elas descrevem, mas também reconhecendo a necessidade de tentar confiar às palavras o que elas, no final das contas, não podem conter […] [Sendo assim,] um dos desafios com o qual a igreja primitiva deparou foi a consolidação de suas crenças. A evidência histórica sugere que, inicialmente, isso não era considerado uma prioridade. Mesmo por volta da metade do século II, a maioria dos cristãos parecia contente em viver com certo grau de confusão. A imprecisão teológica não era vista como ameaça à consistência ou existência da igreja cristã […] No entanto, o aparecimento da controvérsia levou à crescente necessidade de definição e formulação […] Visões que antes eram consideradas aceitáveis começaram a cair por terra quando um exame mais rigoroso das controvérsias da época começou a expor as suas vulnerabilidades e deficiências. Os modos de expressar certas doutrinas que as gerações anteriores consideravam sólidos começaram a parecer inadequados sob um exame rigoroso. Não é que necessariamente estivessem errados, não eram bons o bastante […] Esse processo realmente não deveria ser pensado em termos de vencedores e perdedores; ele é mais bem compreendido como uma busca de autenticidade — um “conflito produtivo sobre objetivos e prioridades entre os cristãos” no qual todas as opções foram examinadas e avaliadas […] A cristalização final desse processo de exploração pode ser vista na formação dos credos — declarações de fé autorizadas, que representam o consensus fidelium, “o consenso dos crentes”, em vez da expressão de fé privada, individual […] A doutrina é alguma coisa construída, pelo menos em parte, em resposta à revelação para salvaguardar o que foi revelado […] A doutrina, então, preserva os principais mistérios no cerne da fé e da vida cristã (p. 30-33, 38-39, 41).

A citação supramencionada, ainda que longa, resume o tom da leitura da fé e da crença em Deus até as declarações doutrinárias segundo McGrath. No entanto, dois pontos devem ser considerados a fim de alinhar o papel da ortodoxia e o advento da ideia de heresia. A primeira se refere à seguinte reflexão; “os conceitos morrem quando deixam de corresponder às necessidades sentidas ou a uma realidade vivida” (p. 44). Já a segunda consideração aponta para a reflexão: “outros [conceitos] continuam a existir porque expressam ideias que permanecem como significativas, ressoando a experiência de indivíduos e comunidades” (p. 44). Esse é o tema do segundo capítulo intitulado “as origens da heresia”. E esse assunto se torna relevante, porque a heresia pertence a segunda consideração segundo McGrath. Ou seja, a heresia é uma contribuição conceitual (não empírica), que é entendida pelo(s) proponente(s) como relevante para uma comunidade, todavia o resultado é a perda de foco e a ultrapassagem dos limites da diversidade (p. 45). Com isso, a heresia é considerada subversiva ou destrutiva e leva indiretamente ao estado de incredulidade (p. 46). Esse é ponto de destaque de McGrath, ou seja,

A heresia pode ser vista, de um modo mais direto, sob a forma de crenças cristãs que, mais por acaso do que por desígnio, acaba por subverter, desestabilizar ou até mesmo destruir o núcleo da fé cristã. Tanto o processo de desestabilização quanto a identificação de sua ameaça podem se estender por um longo período de tempo. Um modo de racionalizar um aspecto da fé cristã, como a identidade de Jesus de Nazaré — um aspecto que pode, de início, ser bem-vindo e aceito de um modo geral — talvez precise, posteriormente, ser encerrado devido ao dano potencial que ele pode ser capaz de causar no futuro (p. 20).

Em suma, Alister McGrath entende que “uma heresia é uma doutrina que no final acaba destruindo, desestabilizando ou distorcendo um mistério, em vez preservá-lo” (p. 42). Nesse sentido, McGrath, a meu ver, compara de forma acertada a heresia a um vírus, “[…] que se fixa dentro do hospedeiro e, por fim, usa o sistema de replicação de seu hospedeiro para conseguir a dominação” (p. 47). E alhures, continua: “Entretanto, independentemente do que esteja na origem da heresia, a ameaça vem de dentro da comunidade de fé” (p. 47). Aqui reside uma reflexão: a heresia seria uma espécie de aggiornamento (atualização) ou ressignificação como contribuição para o núcleo duro do cristianismo? Ou seja, a proposição atribuída ao teólogo holandês Voetius: “ecclesia reformata et semper reformanda est” [a igreja reformada está sempre se reformando], quando permutada para “fides reformata et semper reformanda est” [fé reformada está sempre se reformando], não seria uma contribuição herética nos termos defendidos por McGrath? Deve-se pensar nisto!

Na Parte 2, trata das raízes da heresia (p. 57-77). McGrath utilizou a publicação The Pattern of Christian Truth: A Study in the Relations between Orthodoxy and Heresy do teólogo anglicano Rev. Henry Ernest William Turner (1904-1995) para exprimir os fatores “[d]a diversidade — o pano de fundo da heresia primitiva” (p. 57-77) e a “visão aceita” sobre a origem da heresia em meados do século III (p. 83). Todavia, o ponto alto da Parte 2, a meu ver, é a tese de Bauer (p. 94-103). Em 1934, o teólogo alemão Walter Bauer (1877-1960) publicou [com pouquíssima divulgação!] a obra alemã Rechtgläubigkeit und Ketzerei im ältesten Christentum [Ortodoxia e Heresia no Cristianismo Primitivo]. Neste livro, apresenta a denominada tese de Bauer, ou seja, “A ‘ortodoxia’ nada mais seria do que uma heresia que por acaso venceu — e prontamente tentou suprimir seus rivais e silenciar suas vozes […] para quem a mais primitiva e autêntica forma da fé cristã era provavelmente a herética, não a ortodoxa” (p. 9). Em 1971, a obra de Bauer foi traduzida para o inglês e, nesta época, encontrou um solo fértil e uma atmosfera cultural, devido aos acontecimentos do final da década de 1960. Segundo McGrath, “o livro [de Bauer] logo se tornou um talismã para os críticos pós-moderno da ortodoxia” (p. 10).

Na Parte 3, há dois capítulos. O sexto capítulo tem o foco em três heresias clássicas: ebionismo, docetismo e valentianismo (p. 129-170). Existem cinco pontos que merecem ser destacados na visão de McGrath. A primeira é as três heresias envolvem o relacionamento entre o cristianismo e outros grupos religiosos (i.e. judaísmo e gnosticismo) (p. 169). A segunda é as três heresias foram condenadas como heréticas antes do desenvolvimento de qualquer estrutura de autoridade permanente (p. 169). A terceira é a dificuldade de aceitar a conclusão de estudiosos que Marcião e Valentino foram declarados hereges pela igreja (p. 169). A quarta é a fluidez organizacional da igreja primitiva, que aponta para uma dificuldade de fazer uma campanha contra as alegadas heresias (p. 169). A quinta é a tese de Bauer sobre o triunfo da ortodoxia como um incidente essencialmente ideológico não se sustenta a evidência histórica (p. 170). É interessante notar que McGrath traz para o debate a dificuldade de avaliar a heresia no contexto da igreja da primeira metade do século II. Aqui reside um ponto interessante para pesquisas acadêmicas. Já o sétimo capítulo, que está inserido na Parte 3, descreve as heresias clássicas tardias: arianismo, donatismo e pelagianismo (p. 171-213). McGrath defende que os três proponentes tentaram contribuir para a ortodoxia sem má intenção, egoísmo ou algum tipo de depravação teológica pessoal (p. 212). É interessante perceber que Ário, Donato e Pelágio se fundamentaram na Bíblia para fazer a suas contribuições para a comunidade de fé, no entanto, essas explorações teológicas resultaram em um “beco sem saída”. Nesse sentido, deve-se refletir que, o simples fato de usar citações bíblicas não necessariamente credencia esta contribuição como um ensino cristão. Ou seja, é possível ter uma visão empobrecida e distorcida da fé cristã sustentada por inúmeros versículos bíblicos. Desse modo, McGrath constata:

[…] esse tipo de exploração teológica não se limitou a era patrística, ela continuou ao longo da história cristã, chegando até os dias de hoje, à medida que os teólogos e líderes da igreja prosseguem buscando o meio mais autêntico de expressar o evangelho, especialmente à luz das mudanças culturais locais e globais. Algumas das novas abordagens se mostrarão frutíferas e persuasivas, e serão de valor para as igrejas no longo prazo; outras se mostrarão becos sem saída […] tudo isso significa que precisamos refletir com muito cuidado sobre as motivações intelectuais e culturais da heresia (p. 213).

Na Parte 4, há três capítulos que abordam o impacto duradouro da heresia (p. 215-282). Temas como as pesquisas sobre a origem da heresia por meio da ciência cognitiva da religião são abordados a fim de evitar enfoques reducionistas (p. 219). Essa linha de pesquisa tem a ver com aquilo que se denomina de “naturalização da fé cristã”, ou seja, a assimilação da ortodoxia pelos modos mais “naturais” de pensar (p. 220). Nesse sentido, observa que McGrath tenta apresentar a teologia em diálogo com as demais ciências. Ou seja, McGrath propõe uma abordagem de diálogo segundo a proposta quadrupla de Ian Barbour[4], que são: conflito, independência, diálogo e síntese. Em relação aos desafios da modernidade tardia, McGrath pontuou cinco pressões implicadas na gênese da heresia: as normas sociais contemporâneas (p. 224-227), a acomodação à razão secular (p. 228-231), a formação da identidade social (p. 231-234), a contextualização ou acomodação religiosa (p. 234-236) e as preocupações éticas (p. 236-241).

Por fim, “o futuro da heresia” (p. 283-287) é a conclusão desta obra. McGrath relembra a sugestão equivocada que heresia é uma ideia fora de moda e sem relevância para a vida da igreja (p. 284). No final desta obra, fica claro que o teólogo irlandês quer ressaltar quatro pontos: “a busca da ortodoxia é essencialmente a busca de autenticidade” (p. 284); “as heresias, como a história, têm o hábito de se repetir” (p. 284); “o novo interesse na heresia, tão característico no final do século XX e início do século XXI, vai muito além da renovação de interesse intelectual num fenômeno negligenciado ou mal-entendido do passado” (p. 285) e “a sedução do que é proibido na religião pode ser explicada, pelo menos até certo ponto, em bases psicológicas sociais” (p. 286).

Nesta resenha, observou-se de forma resumida que há incrustado na modernidade tardia aquilo que Peter Gay denominou de “atração pela heresia”. Nesse sentido, a perspectiva cultural é sempre privilegiada para conceituar a heresia. Alister McGrath já oferece outra abordagem. O teólogo britânico mostra a contribuição de certos ensinos que, no final, distorceram, desestabilizaram ou destruíram o mistério. McGrath tentou mostrar que a questão em voga não era a motivação do proponente, todavia o resultado da proposta para a comunidade de fé, que empobrecia e distorcia o mistério. Vale o registro também que, um ponto fraco da obra de McGrath é não articular de forma hegemônica com as fontes primárias dos séculos II ao V.

Espera-se que essa resenha desperte a curiosidade e gere novas pesquisas ad fontes com finalidade de entender que, no cristianismo, aquilo que se ora (ortopraxia viva) é aquilo que se crê (ortodoxia viva). Em suma, esses elementos da vida cristã sempre devem caminhar juntos – lex orandi lex credendi!

Referências bibliográficas

BARBOUR, Ian G. – Quando a Ciência encontra a Religião: Inimigas, Estranhas ou Parceiras? Trad. Paulo Salles. São Paulo: Cultrix, 2004.

GAY, Peter. – Modernism: The lure of heresy from Baudelaire to Beckett and beyond. New York: W. W. Norton, 2008.

HENRY, Patrick. – “Why is contemporary scholarship so enamored of ancient heresies?” In: LIVINGSTONE, Elizabeth A. (org.). Proceedings of the 8th International Conference on Patristic Studies. Oxford: Pergamon Press, 1980, p. 123-126.

HERBERT, Will. – Faith enacted as history: Essays in Biblical Theology. Philadelphia; Westminster Press, 1976.

____________________
[1] HENRY, P., Why is contemporary scholarship so enamored of ancient heresies?, 1980, p. 123.

[2] GAY, P. Modernism, 2008, p. x.

[3] HERBERT, W., Faith enacted as History, 1976, p. 170

[4] HERBERT, W., Faith enacted as History, 1976, p. 170-171.

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