Salmo 113 – Louvado seja Deus

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RESUMO: Compreender a natureza e o uso dos Salmos de Hallel é relevante para o estudo da importância do cântico bíblico nos lábios de Jesus. Situado no contexto do judaísmo do segundo templo, imagina-se que ele conhecia bem as tradições religiosas em efervescência, participando das tais quando convinha, o que inclui o entoar os chamados Salmos de Hallel. Dentre eles, o salmo 113 se destaca pelo seu conteúdo teológico e seu possível uso litúrgico.

ABSTRACT: Understanding the nature and use of the Hallel Psalms is relevant for studying the significance of biblical singing on Jesus’ lips. Situated in the context of Second Temple Judaism, it is assumed that He was well acquainted with the vibrant religious traditions, engaging in them when appropriate, which includes singing the so-called Hallel Psalms. Among them, the Psalm 113 stands out for its theological content and its possible liturgical use.

PALAVRAS-CHAVE: Hallel; Salmos; Páscoa; Jesus; Adoração.

  1. Introdução:

Em 2006, um artigo foi publicado pela Cambridge University Press com o nome “Perspectives on spirituality at the end of life”,[1] visando revisar a literatura disponível sobre o papel da espiritualidade nos últimos momentos de vida de uma pessoa. Foi constatado que tópicos como perdão, conexão e paz são importantíssimos nos cuidados paliativos. Apesar do foco da investigação ter sido majoritariamente em países de língua inglesa, certamente revela uma generalidade em anseios profundos de cada ser humano existente. Isso desperta a imaginação de quais seriam os desejos finais de um homem antes de morrer. Decerto alguns pensam em reconciliação e outros em quietude. Porém, há um outro elemento que pode ser considerado: o louvor. Que é louvor se não uma reação? Waltke (2020) está certo ao afirmar que “o louvor é o atributo essencial da adoração”.[2] Ele é expressado por meio de homenagem e submissão à revelação.[3] Logo, que melhor modo há para o crente passar de plano do que prestando tributo ao soberano e gracioso Senhor?

Muitos decidiram encerrar a vida assim, inclusive mártires. No entanto, há de se reconhecer que talvez um modelo sublime trouxe influência para os tais: Jesus Cristo. Na ocasião do banquete no cenáculo (Mc 14.17-26; Mt 26.20-30; Lc 22.14-38; Jo 13.18-30), o último momento do Nazareno com os seus amigos mais próximos, um hino de louvor foi cantado (Mc 14.26; Mt 26.30), provavelmente os salmos 115-118,[4] cujas palavras se configuram como a segunda parte dos chamados “Salmos do Hallel Egípcio”. O presente artigo visa explorar exegeticamente o salmo 113, com atenção especial ao seu uso litúrgico, à estrutura do seu texto e às aplicações práticas decorrentes dele.

  1. O hallel egípcio e seu uso festivo

A palavra Hallel vem do hebraico הלל, que significa exaltar ou colocar acima, sugerindo o seu uso para descrever o caráter de Deus, através de hinos e cânticos[5]. Sua raiz vem do nome que a tradição judaica preservou para a coletânea dos salmos, סֵפֶר תְּהִלִּים. É verdade que a expressão הַ֥לְלוּ יָ֨הּ está ausente nos livros I, II e III[6] e que alguns desses salmos tenham elementos de petição, de lamento ou de ações de graças, mas cada um deles tem movimento de louvor.[7] Explicações para tanto ganharam força após os esforços de Hermann Günkel, Claus Westermann e Sigmund Mowinckel, os quais enxergaram padrões poéticos — e litúrgicos — permeando a estrutura dos salmos. Evidentemente, não há razão para limitar o culto em Israel como a única fonte dos “louvores” (תְּהִלִּים). Por outro lado, há uma gama de provas que apontam para o uso litúrgico nas principais festas fixas, como na Festa das Semanas, na Festa dos Tabernáculos e, principalmente, na Festa da Páscoa.[8] Para além disso, existem registros na literatura de Qunram, como em 11QSalmos, sobre poemas usados para adoração.[9] Von Rad (2006) acrescenta: “Ao menos dois textos permitem verificar claramente que o cântico de hinos acompanhava a apresentação de oferendas: Eclesiástico 50.1-18 e 2 Crônicas 29.25”.[10]

Sabe-se que o povo de Deus usava o livro dos salmos para celebrar, especialmente em seus contextos de culto. No caso dos salmos 113-118, há uma relação na tradição judaica com os acontecimentos do Êxodo, quando YHWH libertou o seu povo da tirania do Egito. Tais salmos seriam expressões de adoração que rememoravam os ocorridos que marcaram a história do povo da aliança. A Hagadá, livro sobre os rituais da celebração pascal, associa os salmos 113 e 114 a cânticos entoados após a segunda taça da Sêder, refeição que marcava o início da Páscoa numa reunião à noite nos lares.[11] Depois da jantarada, os salmos 115-118 eram recitados ou cantados.[12] Na Mishná, em Pesachim 5:7, temos a comprovação de que esses salmos eram utilizados durante o abate do cordeiro pascal no templo.[13] Sittema (2010) pinta o quadro: “Um coral de levitas […] cantava os salmos 113-118, enquanto a congregação respondia em antífona: ‘Hallelu-Yah’, ‘louvado seja o Senhor’”[14] No Talmude Bavli, em Pesachim 117a, lê-se questões relativas ao uso dos salmos de Hallel na Páscoa.[15]

Inaugurado o Reino com a morte e a ressurreição de Jesus, o cumprimento da Páscoa em Cristo continuou a ser celebrado. Agostinho e Crisóstomo testemunharam do uso dos salmos de Hallel, em especial o 118 nas adorações semanais ou na celebração da festa anual.[16] Até os dias atuais existem testemunhos dessa ligação dos salmos supracitados com a festividade. Nas igrejas reformadas da Escócia, o salmo 116 é elemento praticamente fixo na celebração do sacramento da eucaristia; nas igrejas anglicanas, os salmos 113-118 permanecem um constituinte regular de liturgia para a Páscoa;[17] a Igreja Católica ainda usa esses cânticos como base das missas de véspera de domingo.[18]

  1. O salmo 113 analisado

No caso do salmo 113, ele era usado, como já adiantado, em conjunto com o salmo 114 no início da refeição. Ele convida à celebração do modo com que Deus se envolve com a vida das famílias.[19] No momento em que ocorria a Sêder, é de se esperar que Jesus, educado em lar judaico,[20] tivesse participado de sua tradição. Assim, podemos inferir que ele vocalizou o hino contido no texto sagrado. O seu Gattung[21] é descrito como um salmo de louvor descritivo, consistindo, segundo Waltke (2016), “num chamado ao louvor, um motivo para o louvor e um chamado renovado ao louvor”.[22] Tal estrutura pode ser observada pela inclusio entre a primeira e a última expressão (הַֽלְלוּ־יָֽהּ) sendo o chamado (e o chamado renovado) ao louvor, e o restante do salmo apresentando as razões para o chamado: YHWH é o Senhor do tempo e do espaço (v. 1-3); YHWH somente é transcendente e imanente (v. 4-6); e YHWH é Deus de reviravoltas (v. 7-9).

  • YHWH é Senhor do tempo e do espaço (v. 1-3)

Aleluia” (הַ֥לְלוּ יָ֨הּ), “louvado seja Deus!”. Essa é a essência do texto do começo ao fim. Há muito em jogo para o povo israelita quando ele celebra a libertação que ocorreu no Egito. Por isso, dentro do סֵפֶר תְּהִלִּים, “o livro dos louvores”, consta a convocação para adorar. Louvar é exatamente o que se espera daquele que se aproxima dos Salmos. Seu título original e a abertura do Sl 113 têm a mesma raiz, הלל. Na porção em análise, a orientação é claríssima: “Louvem, ó servos do SENHOR” (הַ֭לְלוּ עַבְדֵ֣י יְהוָ֑ה). Quem são esses servos? Investigando o uso da palavra em questão, עֹ֬בְדֵי, nos salmos, três opções são possíveis: (1) O povo de Israel; (2) os líderes de Israel; e (3) os levitas. Em defesa da primeira alternativa, cita-se Dt 10.12-13: “E agora, ó Israel, que é que o Senhor seu Deus pede de você, senão que tema o Senhor, o seu Deus, que ande em todos os seus caminhos, que o ame e que sirva (עָבַד) ao Senhor, ao seu Deus, de todo o seu coração e de toda a sua alma, e que obedeça aos mandamentos e aos decretos do Senhor, que hoje lhe dou para o seu próprio bem?” e Sl 97.7: “Ficam decepcionados todos os que adoram (עֹ֬בְדֵי) imagens e se vangloriam de ídolos”, embora o segundo se refira a um serviço idólatra. A premissa básica é que todos são chamados para serem servos. O segundo grupo pode ser considerado pelo uso de עֹ֬בְדֵי no Sl 89, tanto no verso 3 quanto no verso 20, no qual o termo é associado a Davi (לְדָוִ֥ד עַבְדִּֽי e דָּוִ֣ד עַבְדִּ֑י respectivamente). Parece apontar para a mesma realidade de liderança religiosa com Moisés (Nm 12.7, Dt 34.5), Josué (Js 24.29), Isaías (Is 20.3) etc. Por fim, a terceira e última possibilidade é pautada no Sl 134.1: “Venham! Bendigam o SENHOR, todos vocês, servos (עַבְדֵ֣י) do SENHOR, vocês que servem de noite na casa do SENHOR” e no Sl 135:1-2: “Aleluia! Louvem o nome do SENHOR; louvem-no, servos (עַבְדֵ֣י) do SENHOR, vocês que servem na casa do SENHOR, nos pátios da casa de nosso Deus”.

Definir a interpretação não é tarefa simples, pelo baixo número de utilização de עַבְדֵ֣י nos salmos. O trabalho se torna ainda mais complicado pela diversidade de alternativas plausíveis em poucos textos. Não obstante, pode-se questionar se os עַבְדֵ֣י são uma referência à liderança religiosa do povo, uma vez que tal abordagem individualizada representa uma remada fora da maré do texto, não se encaixando bem com o restante do segmento. Seguindo na mesma linha, será que um teor generalizado poderia ser aprovado? Como explicar então a utilização nos salmos 134 e 135? Soa mais razoável e moderado refletir sobre essas duas realidades tentando fundi-las. A questão é descobrir se há respaldo bíblico para a aventura. O texto de 1 Cr 23:30-31 sugere que os levitas deveriam louvar (הָלַל) a YHWH nas festas fixas, incluindo a celebração da Páscoa (Lv 23.4-5). Se o Sitz im Leben do Sl 113 é o contexto litúrgico, como sugerido por Günkel e desenvolvido por Mowinckel, a discussão se encerra. No entanto, atesta Carlos Osvaldo Pinto (2006): “[É] necessário fazer uma distinção entre o Sitz im Leben da composição e o Sitz im Leben da utilização”.[23] O salmo 113 é considerado um salmo órfão, sem autoria determinada. Embora o uso litúrgico dos salmos seja indiscutível,[24] é necessário ter zelo e cuidado para não construir toda uma teologia com base em teorias duvidosas.

Fato é que há espaço na teologia bíblica para entender a adoração como iniciada e modelada por um liturgo, isto é, um levita. Em 2Crônicas 29.25-28, os levitas são aqueles que lideram o povo em adoração no meio de uma oferenda.[25] Já Ne 8.6, mostra Esdras, descendente de Arão (Ed 7.1-6), liderando os crentes no serviço divino. Portanto, os servos עַבְדֵ֣י do v.1 provavelmente se referem aos cantores levitas do templo.[26] Levando em conta essa interpretação e tendo basicamente o princípio do canto congregacional nos cultos públicos em mente, Calvino (2012) diz:

Se alguns preferem entender a expressão como uma referência aos levitas, aos quais se confiava a incumbência da celebração dos louvores de Deus, na vigência da lei, não me oponho muito a isso, contanto que não excluam o resto dos fiéis sobre os quais Deus havia designado os levitas como líderes e regentes de música, para que Ele fosse louvado por todo seu povo, sem exceção […]. Quando o Espírito Santo se dirige expressamente aos levitas, em relação ao assunto dos louvores a Deus, o Espírito tenciona que, por seu exemplo, os levitas mostrem o caminho aos demais e que toda a Igreja responda em coro santo”.[27]

Tendo a decisão sobre quem deve louvar, o próximo exame diz respeito a quem deve ser louvado. Segundo o salmista, é “o nome do Senhor” (הַֽ֝לְלוּ אֶת־שֵׁ֥ם יְהוָֽה). Longman (2014) está certo ao defender que “o nome do SENHOR significa a sua reputação, ganha por suas grandes obras e seu maravilhoso caráter”.[28] Quando se fala no שֵׁ֣ם יְהוָֽה, intende-se abranger a própria existência e as atividades de Deus. Não é à toa que a Catecismo Maior de Westminster ressalta que a “proibição feita no terceiro mandamento é de não profanar ou abusar do nome de Deus, de seus títulos, atributos, ordenanças, palavras e obras”,[29] além de “não profanar suas palavras, suas obras e os sinais de seus sacramentos”.[30] É de interesse especial notar que assim como por três vezes aparece הַ֥לְלוּ, também por três vezes se repete o nome do Senhor (יָ֨הּ uma vez e יְהוָֽה duas vezes). Spurgeon, conjecturando, registrou: “o nome do Senhor é usado três vezes neste versículo, e, por nós, que compreendemos a doutrina da Trindade na Unidade, pode ser considerado como uma alusão ligeiramente velada àquele santo mistério”.[31] Decerto há um exagero em suas considerações, uma vez que é muito evidente que a repetição dos termos comunica ênfase e centralidade.

Não há muito segredo na mensagem do verso: YHWH, o Senhor da aliança, deve ser louvado pelos seus servos (o povo de Deus), com a direção dos seus servos (os levitas), por tão grandes e temíveis obras que realizou, especialmente no resgate dos israelitas do ambiente e da situação hostis em que estavam. YHWH, O Senhor da aliança, é aquele que foi plenamente fiel do Éden ao Egito, e do Egito em direção à Terra Prometida. Tal louvor, no entanto, possivelmente não seria como qualquer coisa ordinária. O verbo הַ֭לְלוּ é um dos 415 no Antigo Testamento que estão no grau Piel. Embora alguma divergência quanto ao significado do tronco tenha sido discutida,[32] a opinião de que ele revela intensidade é preferível. Waltke (2020) é preciso: “O louvor envolve aclamação entusiástica e alegre a Deus”.[33] Logo, a convocação seria para um celebração com dedicação. Podemos equiparar o uso aqui de הַ֭לְלוּ como um chamado ao louvor fervoroso diante de YHWH.

Nos versos 2 e 3, pode-se observar a apresentação de um breve quiasma,[34] indicado pelo convite à adoração do שֵׁ֣ם יְהוָֽה, o “nome de do SENHOR”. Tal construção apareceu anteriormente apenas três vezes no Saltério,[35] mas no salmo 113 é usada três vezes nos três primeiros versos. No verso 2, o verbo usado tem a raiz ברך. Já no verso 3, volta-se a הלל. Essa combinação também aparece em outro salmo do Hallel Egípcio, o Sl 115. Críticos tentam formular diferenças entre eles como se o primeiro fosse de uso sacerdotal e o último de uso levítico,[36] mas isso não faz sentido à luz do contexto imediato do texto (adoração universal e ininterrupta), do evidente paralelismo hebraico e do próprio quiasma estruturado. Isso tudo sem mencionar que no Salmos 115.17-18, bem como no Salmos 100.4, existe um bom indicativo da correta relação entre os verbetes. Segundo a primeira porção do texto, a adoração deve ocorrer porque YHWH é Senhor do tempo e do espaço. Os merismas apresentados, עַתָּה e עוֹלָם (“desde agora e para sempre”), além de מִּזְרַח־שֶׁ֥מֶשׁ e מָבוֹא (“do nascente ao poente”), testemunham da sua grandeza.[37] Sabemos que Deus é eterno, inclusive assim sendo descrito no Pentateuco como o אֵ֥ל עֹולָֽם (Gn 21.33), e onipresente, conforme leitura do Salmos 139.5-10: “Tu me cercas, por trás e pela frente, e pões a tua mão sobre mim. Tal conhecimento é maravilhoso demais e está além do meu alcance; é tão elevado que não o posso atingir. Para onde poderia eu escapar do teu Espírito? Para onde poderia fugir da tua presença? Se eu subir aos céus, lá estás; se eu fizer a minha cama na sepultura, também lá estás. Se eu subir com as asas da alvorada e morar na extremidade do mar, mesmo ali a tua mão direita me guiará e me susterá”. Assim, nas próprias perfeições do ser de Deus há motivo para adoração. O povo de Deus é chamado para louvar o Senhor por aquilo que Ele é. A começar dos israelitas, todas as nações são chamadas a bendizer o nome do Senhor. Estes (2019) é preciso na sua colocação: “Em contraste com as deidades locais adoradas no mundo antigo, o reino do Senhor abrange o mundo inteiro. Então, seu louvor deve ser universal e exclusivo”.[38]

  • YHWH somente é transcendente e imanente (v. 4-6)

A segunda parte do Sl 113 se encaixa no corpo do texto, chamado por Günkel de Hauptstück, no qual apareceria o tehillot, isto é, os atributos e as obras de Deus que evocam o louvor.[39] No nosso texto, o destaque se dá na consideração da singularidade de YHWH como exaltado ao mesmo tempo que interativo com sua criação. Ele é distinto das suas criaturas, mas mantém contato com elas na sabedoria da sua providência. No verso 4, Ele é descrito como “exaltado acima de todas as nações” (רָ֖ם עַל־כָּל־גֹּויִ֥ם), incluindo o próprio Egito, que gozava de grande poder e reputação no Antigo Oriente Próximo. YHWH está “acima” (עַל) deles em soberania. A sua própria glória está “acima” (עַל) dos céus. Essa é a figura da divindade que é suprema e única no mundo. O Salmos 99.1-2 desenha a mesma pintura: “O SENHOR reina! As nações tremem! O seu trono está sobre os querubins! Abala-se a terra! Grande é o SENHOR em Sião; ele é exaltado acima (עַל) de todas as nações”. A sua “glória” é cantada nos céus (Sl 8.1) e a sua majestade está acima de todas as coisas (Sl 148.13). Na história do povo da aliança, até mesmo as nações que intimidavam Israel estavam completamente sob o controle do Senhor.[40] Não é precisamente isso que ensina Nm 13—14, Js 1.3-4, 2.2, Jz 6.16, 20.28, 1 Sm 17, 2Cr 20, Ne 4.14, Es 9, Jr 10, Hc 1, 2 e tantos outros textos?

É por essa razão que vem a pergunta retórica: “Quem é como o SENHOR, o nosso Deus”? (מִ֭י כַּיהוָ֣ה אֱלֹהֵ֑ינוּ). Evidentemente, não se espera uma resposta. Dado o contexto, um sonoro “não” é mais do que lógico. Por mais que existissem outras figuras consideradas “transcendentes” no Antigo Oriente Próximo, como Marduk, na Babilônia, Assur na Assíria e El na cultura cananéia, YHWH é descrito como supremo em relação a todos os falsos deuses (Sl 82.1; 95.3; 96.4-5; 135.5). O ponto surpreendente é o encontro da transcendência com a imanência entre os versos 5 e 6: “que reina em seu trono nas alturas” (הַֽמַּגְבִּיהִ֥י לָשָֽׁבֶת), mas se inclina para contemplar o que acontece nos céus e na terra” (הַֽמַּשְׁפִּילִ֥י לִרְאֹ֑ות בַּשָּׁמַ֥יִם וּבָאָֽרֶץ). A natureza de YHWH como transcendente e imanente é incomparável.[41] Ele é tão transcendente que precisa se inclinar (lit. humilhar שָׁפֵל) para “contemplar” (lit. ver רָאָה). Hossfeld & Zenger (2011) registram: “entronização no céu é [algo] frequentemente conectado nos salmos com olhar para baixo na terra”.[42] Parece mesmo ser o caso, especialmente pelos exemplos dos Salmos 11.4, 14.2, 33.13, 53.2 e 138.6. Talvez o leitor se pergunte qual o intuito divino em olhar para baixo. Ross (2017) escreve:

Certamente, ele não tem necessidade de aumentar o seu conhecimento. Ele não é como um rei em seu palácio, que precisa se vestir como um mendigo e passar a noite debaixo de uma ponte para entender o mundo real. O Senhor já sabe de todas as coisas. Esse também não é um jeito de dizer que ele olha de longe para baixo na terra a fim de perguntar: “o que está acontecendo aí?”. Ele não está analisando um lugar antes inalcançado a partir de um observatório celestial, como numa inversão divina de um astrônomo. Ele se ‘humilha’ a si mesmo. Ele se rebaixa […] não num sentido de dar uma olhada ou de ser curioso, mas no de prover. Isso soa como o Deus de Abraão. Se você o encontrar em algum lugar, você chamará o lugar de Jeová Jireh, ‘o Senhor verá’ ou ‘o Senhor proverá’”.[43]

Esse modo de Deus “ver” ou “contemplar” (רָאָה) foi precisamente o que aconteceu diante do seu povo no Egito, conforme Êxodo 2.23-25: “Os israelitas gemiam e clamavam debaixo da escravidão; e o seu clamor subiu até Deus. Ouviu Deus o lamento deles e lembrou-se da aliança que fizera com Abraão, Isaque e Jacó. Deus olhou para os israelitas e viu a situação deles”. A presença do próprio Deus havia descido (יָרַד) no Monte Sinai, depois pousou (שָׁכַן) lá. O que aconteceria no Tabernáculo seria a mesma coisa. Não por acaso “tabernáculo” (מִשְׁכָּן) tem a mesma raiz de “pousar” (שָׁכַן)[44].

  • YHWH é Deus das reviravoltas (v. 7-9)

A última estrofe do texto descreve de que modo YHWH condescende. O verso 7 é construído por meio de paralelismo: “Ele levanta do pó o necessitado e ergue do lixo o pobre”. São três correspondências: (1) “levanta” com “ergue”; (2) “” com “lixo”; e (3) “pobre” com “necessitado”. Do início ao fim, o verbo “levantar” é tradução do termo קוּם, que aparece mais de 600 vezes no Antigo Testamento. Equivalentes no Antigo Oriente Próximo como o acadiano qamāmu, o árabe qāma, e o ugarítico qm são palavras bem documentadas.[45] No caso do uso no salmo 113, קוּם encontra-se no Hiphil, demostrando como Deus causa a ação, geralmente relacionada a “começar a fazer algo”.[46] “Erguer”, por sua vez, vem de רוּם, se aproximando de uma homofonia com קוּם. Encontram-se variados testemunhos de idiomas próximos que preservam a raiz no sentido de algo que é ou ficará alto. Também empregado no Hiphil, רוּם está presente em muitos textos, como Gênesis 7.7, quando a arca de Noé foi erguida pelas águas ou Josué 4.5, quando pedras foram erguidas do Jordão para se fazer um memorial.

Prosseguindo, “” traduz עָפָר na porção selecionada das Escrituras. Sendo usado como substantivo em 110 oportunidades no AT, tem seu sentido literal relacionado à poeira, como em Gn 2.7: “Então o SENHOR Deus formou o homem do pó (עָפָר) da terra”. Já “lixo” é a interpretação de אַשְׁפֹּת, que em Neemias se refere a uma entrada da cidade de Jerusalém (Ne 2.13, 3.13, 3.14 e 12.31), mas nos demais usos a um depósito de lixo. A palavra é associada com o local onde coisas inúteis são descartadas, não estando longe da semântica que envolve esterco, excremento humano e urina.[47] A expressão “pobre” (דַּל) tem ligação direta com a falta de recursos, como em Levítico 14.21: “Se, todavia, for alguém pobre (דַּל), sem recursos” ou em Provérbios 22.22: “Não explore os pobres (דַּל)”. אֶבְיוֹן, relativo à “necessitado”, fala de um estado de vergonha pela escassez. Estes (2019) diz que eles são os “virtualmente destituídos, os operários do dia do mundo antigo, completamente dependentes de outros para o seu sustento diário”.[48]

Ao sair do mundo lexical para o mundo contextual do texto, imaginando que há pano de fundo do Egito antigo, pode-se inferir resumidamente que YHWH tirou o seu povo de situação de grande opressão, seja no trabalho (Êx 1.11-14), nos relacionamentos (Êx 1.15-16) ou na adoração (Êx 5.1-2). O ostracismo e a humilhação nacional empurravam o povo para um verdadeiro lixeiro espiritual. No mundo antigo, o depósito de lixo era onde as pessoas mais desesperadas se encontravam[49]. Foi num lugar como esse que o sôfrego Jó esteve em 2.8: “Então Jó apanhou um caco de louça e com ele se raspava, sentado entre as cinzas (אַשְׁפֹּת)”. Em Êxodo, a conjuntura também era de desalento (Êx 2.23-25). O povo de Deus foi maltratado e humilhado até o pó.[50] Tudo isso torna a obra redentora mais sublime, porque YHWH sujou as suas mãos para libertar o seu povo, carente e necessitado, do pó e do lixo egípcio.

A reviravolta da atividade do verso 7 surge no verso 8: YHWH redime os humildes “para fazê-los sentar-se com príncipes, com os príncipes do seu povo”. Sai-se da pobreza para a riqueza, mas é fulcral ter cuidado para não interpretação isso apenas em termos de valores materiais. Riqueza, dentro da mentalidade hebraica, também é desfrutar da terra, ter filhos e gozar da shalom divina. O intuito é, então, demonstrar que Deus tira o povo da vergonha da pobreza para lhe conferir a honra da nobreza diante Dele. Ele eleva a posição do humilde para possibilitá-lo se assentar (יָשַׁב) com os líderes, um modo de dizer que haverá permanência da habitação dentro da nobreza, perpetuando o estado de honraria.

Como se já não fosse o bastante, mais graça é direcionada ao povo da aliança: “Dá um lar à estéril, e dela faz uma feliz mãe de filhos”. É importante salientar que na antiguidade, inclusive em Israel, uma mulher sem filhos se encaixava numa situação de grande vulnerabilidade.[51] Essa condição específica levava ao desespero frequentemente. As narrativas da Bíblia Hebraica testemunham de algumas histórias de Deus favorecendo mulheres em tais circunstâncias. É o caso de Sara (Gn 11.30), de Rebeca (Gn 25.21), de Raquel (Gn 30.22), da mãe de Sansão (Jz 13.2-3), da Sunamita (2Rs 4.16) e, principalmente, de Ana (1Sm 1.2). Esta é digna de realce no estudo, uma vez que existem consideráveis similaridades entre o conteúdo, as palavras e o cenário experimental do Sl 113.7-9 com a oração musical pessoal dela em 1Sm 2.8. Não por menos Delitzsch escreveu que “os pensamentos do Salmo 113 são transplantados do cântico de Ana[52]”. A primeira parte deste é מֵקִ֨ים מֵעָפָ֜ר דָּ֗ל מֵֽאַשְׁפֹּת֙ יָרִ֣ים אֶבְיֹ֔ון, enquanto o verso 7 daquele é מְקִֽימִ֣י מֵעָפָ֣ר דָּ֑ל מֵֽ֝אַשְׁפֹּ֗ת יָרִ֥ים אֶבְיֹֽון. A correspondência é de quase 100%, à exceção do acréscimo de um י ao primeiro verbo. O mesmo ocorre na primeira parte do verso 8: o verbo לְהֹושִׁיב֙ (conforme 1Sm 2.8) recebe o aditivo de um י. Porém, as demais palavras são as mesmas. O único acréscimo considerável vem do restante do Salmos 113.8, עִ֝֗ם נְדִיבֵ֥י עַמֹּֽו (“com os príncipes do seu povo”), algo que não invalida a conexão dos textos e nem retira o link de significados. Fortalecendo a íntima ligação dos textos, o versículo 9 reforça a própria conjuntura que Ana viveu. YHWH a deu um “lar” (הַבַּ֗יִת). Embora o termo בַּ֗יִת literalmente signifique “casa”, Calvino (2012) está certo ao relacioná-lo com “família”.[53] O “lar” recebido é constituído de “filhos” (הַבָּנִ֥ים), tornando essa mãe alguém “feliz” (שְׂמֵחָ֗ה). Curiosamente, essa felicidade é a mesma presente na celebração das festas fixas de Israel. Na Sucot, a Festa dos Tabernáculos, por exemplo, o termo está presente: “Durante sete dias celebrem a festa, dedicada ao SENHOR, o seu Deus, no local que o SENHOR escolher. Pois o SENHOR, o seu Deus, os abençoará em toda a sua colheita e em todo o trabalho de suas mãos, e a sua alegria (שָׂמֵֽחַ) será completa” (Dt 16.15). Admitindo que o salmo 113 era cantado nessa comemoração anual, pode-se pensar que Sião, a esposa de YHWH e mãe da sua população, foi privada dos seus filhos, os quais foram escravizados diante dos seus olhos ou levados em cativeiro.[54] Todavia, em uma reviravolta impressionante, alegrou-se com a obra redentora que aconteceu no Egito.

Terminando assim em alta o salmo de louvor (תְהִלָּה), é natural que se espere um grande regozijo da congregação. Embora a Septuaginta e a Biblia Vulgata tenham transferido o fecho para o salmo seguinte[55], ele é parte constituinte e primordial do salmo 113, delimitando a inclusio e repetindo a forma piel do chamado à adoração: “Aleluia” (הַֽלְלוּ־יָֽהּ), “louvado” — com fervor — “seja Deus!”.

  1. Considerações pastorais:

Não se sabe ao certo a data de composição do Salmo 113, mas, como demonstra, a sua utilidade e a sua valia estão amplamente registradas na história do povo da aliança. De modo a mostrar a extrema relevância do texto para o crente contemporâneo, agora no século 21, abaixo seguem algumas propostas de aplicações devocionais, horizontais e verticais, para a igreja:

Antes de tudo, que se destaque que Deus deve ser louvado. O convite à adoração do início e do fim do salmo são modelares para instruírem a comunidade de fé na adoração ao Senhor. O emprego distintivo do Piel não foi feito ao acaso. O ser de Deus e as suas magníficas obras se constituem fundamento sublime e suficiente para gerar respostas entusiasmadas de louvor no coração do cristão. Meditar nas perfeições de Deus, especialmente as relativas à sua transcendência e à sua imanência deixam boquiabertos os seus filhos, que podem, no poder e na assistência do Espírito, enxergar a singularidade de YHWH. Ademais, contemplar a riqueza da sua obra redentora motiva-nos a encher o coração de gratidão. Tal Deus merece louvor fervoroso, porque Ele não é – e nem fez – pouca coisa. Sabe-se muito bem que em algumas congregações o fervor é destituído de uma boa teologia; em outras, a boa teologia é destituída de fervor. À primeira vista, pode parecer que existe uma relação de antagonismo entre as partes. Contudo, ao contemplar o salmo 113, o leitor descobre que teologia e fervor não são adversários. Pelo contrário, devem ser amigos inseparáveis. Deus deve ser louvado com fervor pela compreensão certa do que Ele é ou fez. A falta disso historicamente é relacionada com o que Tomás de Aquino (segundo Gregório, o Grande) chamava de Acídia, um dos sete pecados capitais, relativo à apatia espiritual.[56] Deus espera adoração entusiasmada. Os imperativos para alegrar-se e cantar ocorrem umas 200 vezes no Saltério de acordo com Gunkel.[57]

Tal louvor é melhor expressado nas igrejas locais através do canto congregacional. Decerto há uma similaridade entre a direção do levita na adoração com a figura do ministro de música, no que tange ao ofício de liderar o corpo inteiro no serviço divino. O seu exemplo de teologia e fervor movem a comunidade de fé na instrução de como adorar o Senhor. É fato que todos os crentes são sacerdotes reais na administração da nova aliança, porém dentro da estrutura do culto público certas funções permanecem reservadas a algumas pessoas – não para haja um culto à performance, mas para que todo o povo de Deus seja facilitado no exercício de adoração. Logo, ter intencionalidade no canto congregacional a partir da liderança de um ministro é um privilégio que aproxima o crente da experiência tencionada por Deus na adoração pública. Nela, a igreja deve adorar a Deus pelo o que ele é. Não se pode apartar dela a compreensão das perfeições divinas, conforme revelação nas Escrituras Sagradas. Não há dúvida que Deus é incognoscível, mas o que ele decidiu revelar sobre si mesmo é suficiente para encantar o homem e produzir nele louvor ao seu Criador. Cantar sobre os seus atributos incomunicáveis, por exemplo, ressalta a singularidade do Senhor. Cantar sobre os seus atributos comunicáveis, por outro lado, demonstra a plenitude, a excelência e a superioridade de Deus. Ele é, de uma forma ou de outra, único. A distinção Criador-criatura não pode ser negligenciada.

A igreja também deve adorar a Deus pelas suas obras. O Deus que é transcendente e imanente está completamente envolvido com tudo o que acontece. No que tange à redenção do seu povo, o “obrigado” (i.e. a resposta positiva) é esperado. Deus deseja que seu povo nutra gratidão. Não é sem motivo que as festas de Levítico 23 foram instituídas como “fixas”, pois deveriam ocorrer regularmente todos os anos. É fácil se esquecer do que Deus fez. Por isso, festeja-lo frequentemente por suas obras deve ser algo inegociável. As festas antigas tinham esse papel didático. A festa nova, em Cristo, se dá no culto público, no qual se diz “obrigado” em todos os domingos (Hb 9). A páscoa era celebrada no 14 de Nisã, bem no início do ano, sendo ocasião excelente para começar o ano bendizendo aquele que realizou a libertação do seu povo[58]. Em comparação, o culto público é iniciado no início de cada semana, sendo mais que apropriado bendizer aquele que libertou seu povo definitivamente em Cristo Jesus. Através das orações, dos cânticos, das leituras, da pregação Vox Dei e dos sacramentos, o povo da aliança continua (de modo mais sublime) a expressar louvor a Deus pelas suas obras redentoras.

O melhor de tudo é que esse culto, formado por pessoas de todos os povos, línguas e nações (Ap 7.9-10), não se acaba: “Seja bendito o nome do SENHOR desde agora e para sempre!”. O apóstolo Paulo reforça tal assunto em Rm 15.11, quando convoca os gentios para louvarem (αἰνέω, cf. הלל) a YHWH.  Embora a adoração neotestamentária tenha pontos de descontinuidade, um conteúdo riquíssimo permanece com a administração na antiga aliança: o louvor a YHWH pela sua fidelidade pactual. Ele é o Senhor da Aliança, preservando e cumprindo a sua palavra para seus propósitos pré-estabelecidos. Deus foi fiel do Éden ao Egito, e do Egito à cruz do Calvário. Ele permanecerá fiel, porque isso faz parte de sua natureza. Não há motivos para desconfiança enquanto vivemos no “já e ainda não”. o Deus que iniciou a boa obra é aquele que a terminará no dia de Cristo Jesus (Fp 1.6). Por essa razão, o povo da aliança é convocado para bendizê-Lo. Essa atitude de “abençoar” o nome de Deus rompe os testamentos. εὐλογημένον (particípio perfeito no modo passivo do verbo ευλογεω) é como a LXX traduz מְבֹרָ֑ךְ em Sl 113.2 (“seja bendito”). Curiosamente, essa expressão está presente em textos como 2Co 1.3, Ef 1.3 e 1 Pe 1.3, os quais apresentam uma espécie de fórmula: Εὐλογητὸς ὁ θεὸς καὶ πατὴρ τοῦ κυρίου ἡμῶν Ἰησοῦ χριστοῦ (“Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”). É possível que houvesse uma tradição anterior, cuja estrutura foi exposta a autores bíblicos. A Amidah, oração litúrgica dos judeus, continha essa mesma forma, sendo utilizada como base, ao que tudo indica, para o uso cristianizado posterior. Cada uma das dezoito bençãos (berakah) se inicia com a mesma receita: בָּרוּךְ אַתָּה יְהוָה אֱלֹהֵינוּ וֵאלֹהֵי אֲבוֹתֵינוּ (“Bendito sejas Tu, Senhor nosso Deus e Deus de nossos pais). O uso adaptado com a inserção de Deus o Filho é mais do que apropriado, já que na entrada triunfal gritavam “Hosana ao Filho de Davi! Bendito (Εὐλογημένος) é o que vem em nome do Senhor! Hosana nas alturas” (Mt 21.9), um clara referência a outro salmo do Hallel Egípcio, o salmo 118. Além disso, o verbo está presente num cântico de natividade (Lc 1.68) e na ocasião da Última Ceia (Mt 26.26).

A Escritura testifica, de Gênesis a Apocalipse, que o Deus transcendente-imanente é digno do nosso louvor fervoroso. Ele é aquele que se inclina e se humilha para salvar, porque Ele é יהוה יִרְאֶה, “o Deus que vê” a situação do seu povo para resgatá-lo. Ele fez isso no Egito, continuou fazendo pelos relatos das páginas do Antigo Testamento e teve sua obra atingindo o ápice na humilhação do Senhor Jesus, o seu Filho Unigênito (Fp 2.6-8). Em Cristo, vemos o clímax da sua “bondade condescendente.”[59] O Deus das reviravoltas, na pessoa do Filho, desceu dos céus e “tabernaculou” entre nós (Jo 1.14), provendo a melhor festa fixa — e permanente — de todas: ele mesmo, a alegria dos crentes (1Pe 1.8-9). O Deus que traz felicidade à estéril é o mesmo que concede imenso regozijo para todos os estéreis espirituais. Jesus extirpa o pecador do depósito de lixo para o colocar na bonança eterna, o transportando do império das trevas para o seu reinado (Cl 1.13). O evangelho é a boa notícia de que Deus, em Cristo, sujou as suas mãos no resgate do seu povo carente para torna-los verdadeiros herdeiros reais. Assim, os cristãos, limpos pelos méritos do Senhor, são convidados, com gratidão no coração e com o cântico de Hallel (הלל) nos lábios, junto com a casa (família) que ele provê, a adorá-lo em verdade e em espírito, perante a face de Deus todos os dias da vida.

  1. Conclusão:

 Assim se conclui com a célebre pergunta retórica do Salmos 113.5: “Quem é como o SENHOR, o nosso Deus?”. Essa pergunta nos encontra direta ou indiretamente em toda Escritura Sagrada.[60] Na Bíblia, temos o convite à consideração de que não há outro como o Senhor. Não há criatura alguma que seja equiparável em termos de poder, soberania e graça. YHWH é absoluto e singular. No entanto, na última celebração pascal, esteve Jesus reunido aos seus discípulos. Em algum momento, ao que tudo sugere, cantaram o Salmos 113, quem sabe com o coração queimando ao pronunciar: “Quem é como o SENHOR, o nosso Deus?”. Diante dos seus apóstolos, estava aquele que poderia responder à pergunta retórica de modo surpreendente. Quem é como o SENHOR, o nosso Deus? É o Deus-homem sentado à mesa. O Deus que se humilhou, comendo e bebendo com pecadores. Lá estava o Cordeiro Pascal (1Co 5.7), aquele que tira o pecado do mundo (Jo 1.29). Jesus é a imagem do Deus invisível (Co 1.15), a expressão exata do seu ser (Hb 1.3), em quem habita toda a plenitude da divindade (Cl 2.9). Ele e o Pai são um (Jo 10.30). Cristo é o Grande Eu Sou, antes mesmo de Abraão nascer (Jo 8.58). Ele é Logos Eterno (Jo 1.1), o agente da criação, porque o universo foi formado pela palavra de seu poder (Hb 11.3). Meditando nisso tudo, como não terminar com הַֽלְלוּ־יָֽהּ, “louvado seja Deus”?

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[1]Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/palliative-and-supportive-care/article/abs/perspectives-on-spirituality-at-the-end-of-life-a-metasummary/7606213407EF0C8FAC8F38E0E3EFB8A1#. Acesso em: 09/05/2024, às 9h.

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[2]Waltke, p. 19.

[3]Block, p. 23-4.

[4]Schnabel, p. 358.

[5]Pinto, p. 460.

[6]Robertson, p. 198.

[7]Pinto, p. 449.

[8]Harman, p. 386.

[9]Waltke, p. 34.

[10]Von Rad, p. 357.

[11]Ross, p. 7.

[12]Sittema, p. 36.

[13]Ibidem, p. 9.

[14]Sittema, p. 35.

[15]Disponível em: https://www.sefaria.org/Pesachim.117a.2?lang=bi. Acesso em: 09/05/2024, às 16h30m.

[16]Ross, p. 12.

[17]Ibidem.

[18]Briggs, p. 388.

[19]Goldingay, p. 175.

[20]Waltke, p. 11.

[21]Termo utilizado por Günkel para se referir aos gêneros de cada salmo.

[22]Waltke, p. 982.

[23]Pinto, p. 459.

[24]Ibidem.

[25]Von Rad, p. 357.

[26]Estes, p. 359

[27]Calvino, p. 100.

[28]Longman, p. 389.

[29]Catecismo de Westminster, p. 56.

[30]Ibidem, p. 57

[31]Spurgeon, p. 42

[32]Waltke, p. 399-400.

[33]Ibidem, p. 19.

[34]Hamilton, p. 1.

[35]Sl 7.17, 102.15 e 102.21.

[36]Hossfeld & Zenger, p. 182.

[37]Pinto, p. 474.

[38]Estes, p. 360.

[39]Disponível em: http://www.ericlevy.com/revel/Psalms/Gunkel%20H%20-%20The%20Psalms%20-%20A%20Form-Critical%20Introduction%20Abridged.PDF. Acesso em: 30/04/2024, às 13h20m. A referência é Gunkel, p. 11-2.

[40]Estes, p. 361.

[41]Longman, p. 389.

[42]Hossfeld & Zenger, p. 182.

[43]Ross, p. 45.

[44]Morales, p. 92.

[45]VanGemeren, p. 899.

[46]Ibidem.

[47]Ibidem, p. 551.

[48]Estes, p. 362.

[49]Ibidem.

[50]Briggs, p. 389.

[51]Longman, p. 390.

[52]Disponível em: https://biblehub.com/commentaries/kad/psalms/113.htm. Acesso em: 02/05/2024, às 11h30m.

[53]Calvino, p. 104.

[54]Briggs, p. 389.

[55]VanGemeren, p. 1139.

[56]Waltke, p. 38.

[57]Günkel, p. 23.

[58]Spurgeon, p. 43.

[59]Spurgeon, p. 41.

[60] Kidner, p. 436.

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