Rute 1.15-17: O l‚xico veterotestament rio para a conversão

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INTRODUÇÃO
Este artigo possui duas motivações de ser. A primeira está em corrigir a constante aplicação do texto de Rute 1.15-17 no contexto romântico. É comum ver cristãos utilizando este texto erradamente para expressar seu amor pelo sexo oposto, quando, na verdade, retrata o amor entre uma nora por sua sogra, e, principalmente, a conversão de uma moabita à fé do povo de Israel. A segunda motivação para esta escrita está no aspecto soteriológico. É normal observar no meio dos crentes das igrejas, de modo geral e pelo senso comum, a dúvida que paira sobre a forma de salvação dos personagens do Antigo Testamento; isso devido à falta de compreensão da terminologia usada para a conversão na Velha Aliança. Tendo em consideração estas motivações, cumpre agora apresentar o objetivo deste texto.

O objetivo deste ensaio é, a partir do texto de Rute 1.15-17, investigar teológica e lexicalmente termos referente ao ato da conversão, no contexto do Antigo Testamento. Os cristãos estão mais familiarizados com os sintagmas neotestamentários descritivos da conversão. Percebe-se que o carcereiro de Filipos se converteu pela sua pergunta, pela resposta de Paulo e porque em seguida foi batizado (At 16.30b,31). Outro exemplo de conversão é o de Lídia (At 16.14[15]). Além do vocábulo “salvo”, outro termo muito usado no Novo Testamento que caracteriza aqueles que se convertem ao nome do Senhor Jesus Cristo é “justificado” (Rm 3.28).

Diferentemente do Novo Testamento, a terminologia do Antigo referente à conversão não é tão clara para uma cultura fundada nas bases do conhecimento greco-romano ocidental. Este fato é textualmente perceptível na leitura do ocorrido com a prostituta Raabe, pouco antes da queda de Jericó. Se um observador moderno analisasse este texto sem considerar sua citação no Novo Testamento (Hb 11.31; Tg 5.25) concluiria que esta mulher foi salva? É provável que não. Mas, vale ressaltar que, os leitores do Antigo Testamento entenderam claramente a conversão de Raabe (HUBBARD, Jr., 2008, p. 166), visto que o autor da Epístola aos Hebreus e Tiago, o autor da carta que leva seu nome, mencionaram a conversão desta mulher ao utilizar os vocábulos “Pele fé” e “justificada”, e que estes dois, em um certo sentido, ainda faziam parte da Velha Aliança.

Com estas considerações em mente, certos pressupostos devem ser elencados para esta análise, com a finalidade de evitar interpretações equivocadas: (1) concorda-se que o Antigo Testamento deve, e tem que ser, interpretado pelo Novo Testamento no contexto da igreja; (2) mas, também, cabe ressaltar que os textos do Antigo Testamento foram, em época remota, interpretados dentro do seu próprio contexto a partir de categorias linguísticas e literárias próprias de sua época; (3) e por isso, considera-se um erro hermenêutico cristianizar textos do Antigo Testamento.

No caso de Raabe, há uma interpretação clara no Novo Testamento de sua conversão, mas, no caso de Rute não ocorre o mesmo. O texto de Rute, então, foi escolhido com esta finalidade: observar no contexto veterotestamentário como compreender melhor o léxico referente à conversão de indivíduos do Antigo Testamento, com a finalidade de promover uma interpretação bíblica não cristianizada1.

A análise divide-se em três aspectos perceptíveis no texto de Rute: (1) povo; (2) terra e, obviamente, (3) Deus.      

O POVO DA ALIANÇA
O livro de Rute possui o gênero novela (PINTO, 2006, p. 242), e é uma das três narrativas curtas da “trilogia belemita” (MERRILL, 2002, p. 184), três histórias do período dos juízes que descrevem o contexto de perturbação espiritual, social e política da nação de Israel. Sua relevância canônica está na mensagem de salvação em meio ao cenário de extremo pecado do povo. O caráter soteriológico repousa na genealogia de Perez a Davi (Rt 4.17-22) (MERRILL, 2009, p. 413), onde Obede, filho de Rute e Boaz, é avô de Davi, o protótipo do rei messiânico e a reafirmação do descendente (CONSTABLE, 2009, p. 127). Este contexto mostra a relação do conceito de povo com a doutrina da salvação, na nação de Israel.

Rute, imersa neste ambiente, disse a sua sogra: “[…] o teu povo é o meu povo (grifo meu) […]” (Rt 1.16). Ela era moabita e se casara com um dos filhos de Noemi, uma israelita. O capítulo um desta novela narra o ocorrido, onde uma família israelita deixa sua terra e vai para Moabe por causa da fome que assolava a região (Rt 1.1). Elimeleque o esposo morre, e algum tempo depois seus dois filhos Malom e Quiliom (Rt 1.5). Noemi fica desamparada com suas duas noras Orfa e Rute (Rt 1.4). Apesar de seus filhos se terem casado com mulheres moabitas, o que não era de acordo com a Lei de Moisés (Dt 7.1-4), visto que Moabe era uma nação pagã (Êx 15.15; Nm 21.29), parece que Noemi mantinha-se fiel ao Senhor.

A estima das noras por Noemi era extrema (Rt 1.9), no entanto, ela julgou necessário enviá-las de volta a suas casas, visto que iria voltar a Israel para tentar se sustentar. Naquela época a vida de uma viúva sem filhos homens era muito difícil, enquadrando-se na mendicância. Como não mais possuía filhos para que as noras se casassem e continuassem fazendo parte de sua família, só restava a elas voltar à casa dos seus parentes moabitas para ter como sobreviver (Rt 1.11-14).

Então, Orfa se despede e permanece em Moabe, enquanto Rute decide ficar com Noemi e com o povo de Israel, com o dito: o teu povo é o meu povo! Esta expressão reflete conversão a conversão de Rute. A narrativa não apresenta todos os detalhes, mas o caráter soteriológico é perceptível pelo contexto genealógico da narrativa. A salvação na Velha Aliança era por meio do “descendente” (Gn 3.15). O proto-evangelho foi pregado na forma de promessa por toda a revelação antes de Cristo, de modo que crer no descendente implicava participar do seu povo. O descendente, no relato de Rute, está encapsulado na genealogia de Davi, que funcionava como verdadeira pregação para as nações antigas (PINTO, 2006, p. 244). Os crentes modernos não percebem, ao certo, esta mensagem das genealogias, porém, eram gritantes nos tempos antigos. Rute somente é citada no Novo Testamento na genealogia do Senhor Jesus Cristo, o que ratifica o caráter soteriológico deste texto (Mt 1.5). Por isso, quando ela diz para Noemi: o teu povo é o meu povo, está confirmando sua fé no descendente! (HUBBARD, Jr., 2008, p. 166).                        

TERRA DA PROMESSA
Dentro desta argumentação, não era somente participar do “povo” o que caracterizava um convertido no Antigo Testamento, mas também estar na “terra” da promessa. Rute continua sua declaração assim: “Onde quer que morreres, morrerei eu e aí serei sepultada; faça-me o SENHOR o que bem lhe aprouver, se outra coisa que não seja a morte me separar de ti (Rt 1.17). Além de declarar que faria parte do povo de Israel, Rute se mostra pronta para ser sepultada na terra de Israel.

José, no Egito, pediu algo semelhante quando, da sua morte, requereu que seus ossos fossem sepultados em Canaã (Gn 50.25; Êx 13.19). Naamã, quando de sua conversão, pediu a Eliseu uma carga de terra em dois mulos (2 Rs 5.17) para sacrificar e adorar ao Senhor sobre esta terra. Tal prática representava o conceito veterotestamentário de adorar a divindade da respectiva nação ou “terra” (HOUSE, 2005, p. 584-585). Foi nesta perspectiva, porém inversa, que o povo de Israel foi para o cativeiro; perdeu o direito a terra por causa de sua incredulidade, e a presença de Deus não mais estava entre eles (2 Rs 17.18,20,23). Quando Rute disse que morreria na terra de Noemi, ela estava aceitando a fé no descendente, a mesma de sua sogra.

O DEUS VIVO
Rute, então, expressou sua fé no Senhor ao entrar no povo de Israel, ao habitar na terra de Israel, e logicamente ao adorar o Deus do povo e da terra israelita: “Disse, porém, Rute: […] o teu Deus é o meu Deus (grifo meu)” (Rt 1.16). Ela escolheu Yahweh para ser seu Deus, e não Camos (CUNDALL; MORRIS, 2006, p. 245).

Entende-se que fazer parte do povo e estar na terra não salvava os indivíduos dos tempos do Antigo Testamento, mas advoga-se que este é um aspecto do estilo textual veterotestamentário usado para indicar a conversão de uma pessoa. Neste sentido, Rute refletiu a cultura de sua época, deixando a terra, o povo e consequentemente a adoração de Moabe, para seguir o culto a Yahweh.

CONCLUSÃO
Desde a aliança com Abraão (Gn 12.1-3), o Senhor enfatiza estes elementos para Israel: povo (descendência), terra (Canaã) e o próprio Deus (bênção, descendente). Quando Israel viveu séculos em pecado após a divisão do reino, o próprio Yahweh minimizou estes elementos do meio da nação para demonstrar sua justiça e ira: (1) o elemento povo – quando das mortes nas guerras; (2) a terra – quando o povo foi levado cativo; (3) a bênção – no sentido em que o Senhor estava distante do povo.

Rute creu no Senhor, o que ficou perceptível por fazer parte do povo da aliança, por estar na terra prometida e adorar ao Deus Vivo. Apesar do léxico desta narrativa sobre a conversão, outros termos do Antigo Testamento também caracterizam a conversão e os convertidos ao “descendente”, o Messias prometido, tais como: o “temor do Senhor” e o “justo”. No entanto, esta é outra discussão que requer mais empenho. 

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Referências
CONSTABLE, Thomas L. Uma teologia de Josué, Juízes e Rute. In: ZUCK, Roy B. Teologia do Antigo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2009.

CUNDALL, Artur E.; MORRIS, Leon. Juízes e Rute: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 2006.

HOUSE, Paul R. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2005.

HUBBARD, Robert L. Comentário do Antigo Testamento: Rute. São Paulo: Cultura Cristã Jr., 2008.

MERRILL, Eugene H. História de Israel no Antigo Testamento: o reino de sacerdotes que Deus colocou entre as nações. Rio de Janeiro: CPAD, 2002.

______. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Shedd Publicações, 2009.

PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006.

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1Por “cristianizar” entenda-se utilizar categorias linguísticas do NT na interpretação do AT. Isso não significa que o Novo não deve (pode) interpretar o AT, mas penso que se deve evitar um anacronismo linguístico.

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