Resenha de “O mundo perdido de Adão e Eva”

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WALTON, John. O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis. Viçosa: Ultimato, 2016.

1. Resumo

John Walton, professor de Antigo Testamento no Wheaton College, oferece neste livro uma leitura bastante acessível para o leigo sem deixar de apresentar muitas informações interessantes para o teólogo. A edição brasileira é parte da série Ciência e Fé Cristã, elaborada pela Associação Brasileira Cristãos na Ciência (ABC2), que é uma iniciativa da Associação Kuyper para Estudos Transdisciplinares (AKET) apoiada pela Templeton World Charity Foundation (TWCF). Dividido em 21 capítulos (um dos quais em colaboração com N. T. Wright), o livro se distingue pela atenção dada à literatura extrabíblica do Antigo Oriente Próximo, especialidade do autor, e por usar os resultados de sua exegese para lidar com questões motivadas pela ciência moderna quanto ao significado do texto bíblico. Porém, embora dialogue com a ciência na formulação de perguntas ao texto, Walton não pretende permitir que ela determine as respostas. Ele se compromete com a inspiração das Escrituras, e o escopo do livro é teológico e exegético. Seu objetivo é o resgate da intenção do autor bíblico, situado no Oriente Próximo do segundo milênio a.C.

Nada disso impede, entretanto, que as conclusões de Walton divirjam com frequência da visão predominante na tradição teológica conservadora. Citando apenas alguns dos exemplos mais importantes, ele sustenta: que o relato de Gênesis não se refere a uma criação ex nihilo, e sim apenas à ordenação e atribuição de funções ao que já existia2  (pp. 23-42); que Adão não foi formado do pó, nem Eva de sua costela (pp. 65-75); que Adão e Eva não foram necessariamente os primeiros seres humanos ou ancestrais de todos os que vieram depois (pp. 106-7, 173-80); que eles nunca foram imortais (pp. 137, 142); que, embora tenham sido figuras históricas, só é importante sua função enquanto arquétipos da humanidade3 (pp. 191-4); que a serpente em Gênesis 3 é uma criatura amoral, e não positivamente má (pp. 121-31); que o pecado original decorre de uma “condição humana […] subdesenvolvida” (p. 137) antes que de uma rebelião moral; que o texto bíblico não faz objeção alguma à ideia de que a espécie humana passou centenas de milhares de anos mergulhada em miséria, violência e morte antes que Deus colocasse aqueles dois indivíduos no jardim (pp. 150-1, 168-9).

Walton defende, em suma, que a recuperação do “ambiente cognitivo” do Antigo Oriente Próximo, necessária a um entendimento apropriado do relato da criação e da queda, leva à revisão de uma série de pressupostos que têm sido majoritariamente adotados pela tradição hermenêutica ocidental pelo menos desde Agostinho. No centro do problema estaria uma compreensão equivocada da queda, que Walton não vê como a perda de alguma perfeição original, e sim como agravamento, mediante a rebelião consciente contra Deus, de uma desordem preexistente: onde havia apenas uma desordem amoral (que Walton chama de “não ordem”), passou a haver também uma desordem imoral. O Éden foi, na verdade, um projeto divino de eliminação da não ordem a ser iniciado pela mediação sacerdotal de Adão.

2. Problemas quanto à ciência moderna

É fácil perceber que uma das consequências do livro é a admissão de uma perspectiva evolucionária como interpretação biblicamente legítima. Walton reconhece e aceita isso com naturalidade na conclusão, atribuindo grande importância a esse resultado (p. 196):

O tema mais significativo que temos examinado é se a Bíblia e a ciência fazem afirmações mutuamente excludentes sobre as origens humanas. O consenso científico corrente é de que os humanos compartilham um ancestral comum com outras espécies baseado na evidência de continuidade material (filogenética). Nossa leitura atenta do texto bíblico e os estudos teológicos indicam que eles permitiriam tal continuidade material e ancestralidade comum.

Além disso, três das quatro aplicações pastorais finais (pp. 197-200) enfatizam a importância de não obrigar as pessoas a escolher entre a ciência (conforme o entendimento acima) e a fé cristã. A despeito do enfoque exegético, portanto, a questão da relação entre fé e ciência é central na obra, o que justifica que a discussão se inicie por esse ponto.

O texto editorial da contracapa felicita o autor por criar “espaço para uma leitura fiel das Escrituras aliada a um compromisso com a ciência”. À primeira vista, a sugestão desse compromisso pode parecer estranha, pois Walton com frequência enfatiza a importância de formular juízos exegéticos independentes das descobertas da ciência (e.g. pp. 13-4), e quase sempre se abstém de opinar sobre temas alheios à sua especialidade.

Um exame mais atento, porém, revela um quadro diferente. Em primeiro lugar, Walton não é sempre consistente nessa abstenção quanto ao mérito de hipóteses científicas. Ele afirma, por exemplo, que a evidência das similaridades genômicas em favor da ancestralidade comum “é convincente, e seria prontamente aceita, não fora pela crença de alguns de que, se tal história realmente ocorrera, isso contradiria afirmações bíblicas” (p. 174). Além de conter uma opinião do autor sobre um tema bem distante de sua especialidade acadêmica,4 esse trecho levanta dois problemas: primeiro, se o posicionamento teológico pode influenciar tão profundamente os juízos científicos de alguém, nada permite descartar a priori o risco de serem os evolucionistas (cristãos ou não) os maus intérpretes da evidência. E segundo, nesse caso a ciência deixa de ser um empreendimento independente e autônomo dentro do qual os fatos da natureza falam por si.5

Walton não lida com essas questões em parte alguma do livro, nem chega a perceber sua existência. Ele constantemente volta a se referir a um “consenso” representativo da ciência moderna, o qual não só exclui qualquer crítico da evolução biológica, mas também exclui qualquer possibilidade de a ciência estar equivocada. É justo dizer que, na prática, o autor não se isenta de tomar partido em tais questões. Embora afirme várias vezes que devemos nos opor “à ciência” se a Bíblia assim o exigir, essa possibilidade jamais se concretiza, e ele, de modo explícito e repetido, aponta esse fato como uma grande vantagem de sua proposta exegética. A razão disso é dada na conclusão: “Tínhamos a expectativa de que Gênesis, lido de forma apropriada, fosse compatível com as verdades sobre nosso mundo que os cientistas descobrem, porque tanto nosso mundo quanto a Palavra emanam de Deus” (p. 189). Essa formulação deixa pouco ou nenhum espaço para uma visão da ciência como construção interpretativa humana e, em especial, para o risco de essa interpretação conter erros graves. Mas é nessa minimização falaciosa da distância entre o consenso científico (real ou imaginário) e a verdade sobre a natureza que está a raiz do problema da exegese de Walton.

Não é, pois, despropositado dar razão ao texto da contracapa quanto à presença de um forte “compromisso com a ciência” a orientar o livro. Tal fato traz problemas na medida em que o autor demonstra compreender pouco sobre o que é de fato a atividade científica e o grande espaço para interpretações equivocadas que ela comporta. A ciência moderna é uma pluralidade de métodos e um conjunto de conhecimentos adquiridos através (ou apesar) deles, mas é também uma grande quantidade tanto de interpretações arriscadas (muitas das quais equivocadas em alguma medida), que podem permanecer por muito tempo, quanto de divergências internas, sempre maiores do que supõe o leigo. É ainda uma instituição, com cultura, valores, subjetividades e relações políticas e sociais que estão longe de ser as melhores possíveis. Da mesma forma, para não poucos de seus praticantes, é parte importante de um projeto idólatra de redenção da humanidade, submisso em linhas gerais aos ideais do iluminismo. Walton ignora tudo isso, e o quadro que se pode discernir em suas constantes referências à ciência revela uma concepção simplista e ingênua desse grande empreendimento.6 O panorama que se descortina é o de um teólogo indevidamente impressionado com a autoridade da ciência e predisposto a não contrariá-la de forma alguma; suas repetidas alegações de indiferença coexistem com asseverações também frequentes de que é sempre melhor não se opor a ela, o que produz um resultado deveras ambíguo. Esse compromisso lamentável e seus resultados afetam profundamente a estrutura da obra.

É importante não criticar o autor pelos motivos errados: Walton não pode ser considerado um teólogo liberal, e é sincero (embora equivocado) na pretensão de que os resultados de sua exegese representam tão somente a intenção do autor bíblico. Ele também dá mostras de se incomodar de fato com o cientificismo, como se vê em seu constante esforço de resguardar a autonomia da teologia enquanto disciplina. Mas não considera os efeitos noéticos do pecado e não leva a sério a possibilidade de a ciência moderna estar errada em alguma coisa importante. Resulta daí sua falta de ânimo para confrontar de fato a autoridade da ciência.

Decorre de tudo isso uma tensão que condiciona fortemente as conclusões do livro, que tendem sempre a evitar o conflito com a autoridade científica, embora sem admiti-lo. Sua solução, declarada em muitos momentos, consiste em dizer que o texto bíblico não faz afirmações sobre origem material que tenham alguma intersecção com temas acessíveis à investigação científica. Trata-se de uma separação de tendência claramente neo-ortodoxa que seu esforço exegético se dedica a manter, elaborar e justificar sempre que necessário.

3. Problemas filosóficos e metodológicos

Uma parte central e constantemente proclamada da tese de Walton consiste na afirmação de que o relato de Gênesis precisa ser lido segundo o ambiente cognitivo do Antigo Oriente Próximo e que, lido dessa forma, o texto trata de questões relativas a “ordem e função”, e não a origens materiais. O autor se vale dessa percepção não só para introduzir várias percepções diferentes da tradicional quanto ao significado do relato bíblico, mas também para manter bem separados os domínios da teologia e das ciências naturais — que revelariam a verdade nas esferas funcional e material, respectivamente, sem interferência mútua. Essa estrutura também fundamenta a crítica e rejeição de exegeses cujas conclusões “invadem” a esfera da ciência ao tratar de enunciados de origem material (se Adão veio do pó, se Eva veio de sua costela, há quanto tempo há seres humanos no mundo etc.); tais leituras são denunciadas como de inspiração modernista, alheias ao ambiente cognitivo antigo e à intenção autoral.

No entanto, essa ideia possui três problemas básicos. O primeiro é a inconsistência conceitual e lógica: o ato de ordenar o mundo e atribuir funções às criaturas não é inteligível à parte de modificações materiais correspondentes. O autor tenta explicar como isso se dá através da seguinte ilustração (p. 31):

Os antigos donos de nossa casa utilizavam um cômodo como sala de jantar. Porém, minha família decidiu que não o queria como sala de jantar, então demos a ele o nome de “recanto”, colocamos nele a mobília de um recanto e começamos a utilizá-lo dessa maneira. Por seu nome e função ele foi diferenciado dos outros cômodos da casa, e então um recanto foi criado.

Walton afirma que há nisso uma boa analogia com o conceito de criação em Gênesis: ordenar, atribuir função e dar nome a algo que já existia materialmente. No entanto, a comparação prova o oposto: embora paredes, chão e teto já existissem, o cômodo só pôde receber a nova função em virtude da nova mobília; e isso constitui, sem dúvida, uma modificação material. Toda mudança na esfera das funções precisa acarretar uma adequação material. A tentativa de fazer com que o relato bíblico mantenha intocada a esfera acessível à ciência padece, pois, de um problema filosófico básico, com o qual o autor jamais lida e que sequer chega a identificar. Sua disjunção soa como mero artifício verbal.

O segundo problema é mais sutil, e diz respeito ao uso equívoco dos termos “matéria” e “material”. Walton erroneamente pressupõe que a “matéria” desconsiderada no Antigo Oriente Próximo é a mesma de que trata a ciência moderna. No entanto, embora a mesma palavra seja usada, os dois conceitos são bastante distintos e, na verdade, incompatíveis.7 O filósofo neocalvinista holandês Herman Dooyeweerd descreveu a cultura grecorromana como uma tensão entre dois “motivos” básicos, entendidos respectivamente como a “forma, medida e harmonia” e a “corrente vital cíclica e sem forma” — simplificando, “forma” e “matéria”.8 Embora Walton ignore essa discussão, o leitor informado sobre ela pode ler seu livro e concluir que essas categorias descrevem bem a estrutura de pensamento de egípcios, sumérios, babilônios e outros povos do Antigo Oriente Próximo. Nos termos de Dooyeweerd, pode-se dizer que Walton descreve o relato bíblico da criação (e, na verdade, toda a história da salvação revelada na Bíblia) como um triunfo do motivo “forma” sobre o motivo “matéria”. Essa matéria, porém, não é a da ciência moderna, e isso torna falacioso o uso que Walton faz do conceito.9 Portanto, provar que Gênesis não trata da matéria (no sentido antigo) não ajudaria a saber se ele diz algo sobre a matéria (no sentido moderno). Assim, deixa de fazer sentido a ideia de estabelecer em tais bases exegéticas a existência de uma esfera de competência exclusiva da ciência.

O terceiro problema é ainda mais profundo, e também pode ser discernido com o auxílio de categorias dooyeweerdianas. Segundo o holandês, a raiz dos motivos básicos vai além da dimensão cognitiva: os motivos são religiosos, i.e., ligados de modo direto à nossa postura diante do Deus verdadeiro e dos ídolos. Dooyeweerd descreve os motivos pagãos “forma” e “matéria” como inerentemente idólatras e incompatíveis com os motivos bíblicos, pois resultam de distorções na interpretação do mundo criado que decorrem da rebeldia do coração. Ainda usando termos de Dooyeweerd, a formação de uma cosmovisão radicalmente cristã requer que mantenhamos a consciência dessa “antítese” entre motivos bíblicos e apóstatas, evitando “sínteses” entre eles.

Se Dooyeweerd estiver correto em sua descrição dos motivos bíblicos e apóstatas,10 o que Walton propõe é nada menos que uma síntese na qual o relato bíblico é interpretado segundo categorias pagãs. Não se trata de censurar Walton por (aparentemente) desconhecer a obra de Dooyeweerd, ou por não tomar sua teoria dos motivos religiosos básicos como pressuposto de sua exegese. Trata-se, porém, de reconhecer que o uso de textos pagãos antigos como auxílios na exegese bíblica traz o risco de uma importação inadvertida de categorias pagãs. Walton não demonstra consciência desse risco e sequer o menciona. Ele fala em diferenças entre a mensagem de Gênesis e a de textos extrabíblicos do mesmo período, mas isso não chega a produzir uma discussão metodológica. Com frequência o autor apenas pressupõe que o leitor hebreu original entenderia o texto exatamente da mesma maneira que o pagão de sua época, e nenhuma problematização ou defesa dessa hipótese é tentada. Não há no livro nenhuma consciência da antítese e, em consequência disso, não há nenhuma cautela contra o risco das sínteses (com ou sem o uso desses termos). Walton utiliza conceitos pagãos na exegese de Gênesis com a mesma ingenuidade e inconsciência com que cede sem perceber à autoridade da ciência moderna.

4. Problemas exegéticos

Nesta seção, mediante a breve discussão de quatro casos específicos, serão apontadas as consequências dos problemas discutidos nas seções anteriores sobre a exegese bíblica do livro.

A discussão sobre o sentido dos verbos bara e asa11  (pp. 27-31) conclui que eles não “refletem intrinsecamente uma produção material”, com base em dois argumentos. Primeiro, “os objetos diretos não são materiais”. Porém, ao inventariar o uso desses verbos no restante da Bíblia, Walton considera imateriais objetos como as estações do ano e o vento. O argumento se baseia em um critério de classificação que, além de ser criticável de um ponto de vista filosófico, não foi inferido com base em exegese. A conceituação do que é ou não “material” é obscura e ambígua, e esse é um problema recorrente no livro. O argumento talvez prove que o campo semântico desses verbos é amplo e pode se aplicar a objetos imateriais; mas nada no livro prova que esse é o caso em Gênesis 1-2. O segundo argumento diz que “os verbos não apresentam qualquer tipo de entendimento que adotamos como cientificamente viável”, indicando que, apesar de suas frequentes afirmações em contrário, Walton usa seu entendimento da viabilidade científica como critério exegético para determinar o que o texto diz.

Walton defende que o relato da formação do homem a partir do pó da terra é arquetípico, e não material (pp. 66-7), mas sua argumentação baseada nos usos do verbo ysr12 apresenta problemas semelhantes aos citados acima quanto aos verbos bara e asa. Ele também sustenta que Adão foi criado mortal, e que o texto alude a isso quando relaciona sua origem com o pó da terra. O autor defende isso citando, por exemplo, o Salmo 103.1413 e comentando: “É possível que um ser humano seja nascido de mulher e ainda assim seja formado do pó; todos nós somos” (pp. 70-1). Porém, todos somos pó apenas porque herdamos nossa natureza de Adão; se ele não foi formado do pó literalmente, não há sentido algum em que se possa dizer que todos o fomos. De fato é possível associar a ideia de mortalidade ao pó sem falar em uma origem material, já que viramos pó após a morte; mas jamais se seguiria daí o “tornar” ao pó (Gn 3.19), pois não poderíamos voltar a algo de que não viemos. De fato, “Adão é um arquétipo, não apenas um protótipo” (p. 70), mas é também um protótipo; embora possamos distinguir abstratamente as duas coisas, a Bíblia não legitima a ideia de uma independência entre elas. Buscando sustentar o contrário, Walton compara o relato de Gênesis 2 ao da vocação de Jeremias14 e diz: “Essas afirmações têm relação com o destino e a identidade de alguém, não com sua origem material” (p. 71). Segundo esse princípio, seria falacioso concluir de Jeremias 1.5 que o profeta veio do ventre de sua mãe. Mas o texto fala tanto da função de Jeremias quanto de sua origem material, assim como Gênesis 2 fala tanto do que Adão faria no jardim quanto da formação de seu corpo a partir de um material preexistente. Vem de Walton, mas não do texto bíblico, a sugestão de que devemos escolher entre as duas coisas.

Igualmente lamentável é a discussão sobre as causas do pecado e da morte (pp. 145-51). Walton sugere que, embora antes de Adão já existissem homens praticando violência entre si, Romanos 5.13 permite inferir que “onde não havia lei ou revelação, não existia pecado” (pp. 146-7). Tal aplicação não apenas retira a passagem do contexto,15 mas também nega a primeira parte do mesmo versículo: “Porque até ao regime da lei havia pecado no mundo”. Ele também sugere à igreja que reconsidere “como o pecado original é formulado e entendido”, pois “Quanto mais aprendemos sobre biologia e genética, menor se torna a probabilidade do modelo de Agostinho”16 (p. 148). Aqui o autor não apenas propõe que a ciência tenha um papel determinante em nossas formulações teológicas sobre o pecado, mas também admite implicitamente a visão cientificista de que só a biologia pode nos dizer o que pode ou não ser transmitido de modo hereditário. Ele também endossa um confinamento dos efeitos da queda à esfera sociológica que é, em última análise, pelagiano e romântico (p. 150).

Ao discutir a historicidade de Adão (pp. 191-4), embora a admita, Walton diz que é insuficiente o fato de os autores bíblicos crerem nisso e o declararem no texto; para ele, é necessário demonstrar também que “o ensinamento bíblico incorporou este entendimento em sua mensagem autoritativa”. Ele prossegue argumentando que não é o caso, pois “nenhuma teologia é construída” com base nisso. O argumento é estranho, pois, embora haja muitas afirmações bíblicas sobre as quais nunca se construiu uma teologia,17 espera-se claramente que creiamos nelas, junto com as outras. Ademais, não é congruente defender a irrelevância de certas proposições bíblicas, criar critérios para estabelecer um cânon dentro do cânon e declarar, ao mesmo tempo, que a rejeição dessas afirmações é de importância fundamental para uma correta elaboração teológica sobre as origens humanas.

O padrão que emerge, desses exemplos e de muitos outros casos, é que a pretensão de Walton de ser fiel apenas ao texto bíblico é ilusória. Quando o texto o contradiz, ele estabelece restrições artificiais sobre seu escopo com base em disjunções impostas de fora, ou na decisão arbitrária de que só importa o que constitui a mensagem central do texto, ou ainda na relevância da proposição para uma elaboração teológica; ou, em casos extremos, afirma sem rodeios que determinada ideia não está no texto — ou que, embora esteja, deve ser rejeitada — porque é contradita pela ciência moderna.

5. Valor da obra

A argumentação exegética de Walton é extensa e bastante sofisticada, o que torna impossível, neste espaço, fazer plena justiça às suas posições, tanto às boas quanto às más. Embora ele pareça não pensar assim, suas melhores percepções são perfeitamente compatíveis com a interpretação conservadora tradicional. Dessa forma, o livro pode contribuir para nossa compreensão da real mensagem de Gênesis, uma vez purificado de seus compromissos sintéticos.
   
A despeito de várias de suas conclusões e aplicações serem infelizes, o caminho até elas está repleto de considerações proveitosas. A obra apresenta grande quantidade de informações úteis ao exegeta, e os fundamentos em que se pretende basear cada conclusão são expostos com clareza; é graças a essa qualidade, aliás, que seus erros podem ser identificados com maior facilidade. Os méritos de Walton se destacam sobretudo em sua profunda familiaridade com os escritos extrabíblicos do Antigo Oriente Próximo e na sua refutação implícita a várias abordagens críticas que remontam às velhas tradições teológicas liberais.18 Também merecem menção suas discussões meticulosas sobre o campo semântico dos termos hebraicos utilizados no relato bíblico e sua atenção a detalhes e conexões pertinentes frequentemente ignorados. Em inúmeros pontos, Walton de fato nos auxilia a recuperar algo da cosmovisão do hebreu do segundo milênio a.C.; exemplos disso são sua exposição do mundo criado como um espaço sagrado, da função sacerdotal de Adão e do simbolismo do jardim.
 
Por todos esses motivos, O mundo perdido de Adão e Eva pode promover um aumento do interesse pela mensagem de Gênesis e fomentar uma leitura bíblica que faça mais justiça à intenção autoral e seja mais livre dos condicionamentos da cultura moderna. Embora manifestamente imperfeita, a incursão de Walton pelo mundo antigo é mais rica que a de muitos que possuem uma cosmovisão mais bíblica nos pontos essenciais. Apesar de seus compromissos não assumidos, ele de fato fornece alguns bons subsídios para uma abordagem menos contaminada pelo positivismo científico.
   
Para muitos de nós, o texto de Gênesis faz pouco além de dar motivos para a rejeição de abordagens evolucionárias. Walton erra em não ver que o texto de fato traz essa implicação, mas acerta em mostrar que há muito mais a extrair dali. Em suma, o livro nos desafia de duas maneiras: nos incentiva a elaborar boas respostas aos pontos problemáticos de sua abordagem e a aprimorar uma leitura dos primeiros capítulos de Gênesis que faça justiça às suas percepções mais preciosas. Na medida em que isso ocorrer, o livro terá minimizado seu potencial de dano a uma cosmovisão cristã sadia e se tornará semente de bênçãos para a igreja.

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1Publicado originalmente em Fides Reformata, v. XXII (2017), n. 1, 119-128
2Mas Walton crê que a criação ex nihilo é ensinada em outras partes da Bíblia (p. 31, 154).
3Walton se refere a isso como a “proposta central deste livro” (p. 69).
4Walton demonstra seu despreparo científico quando atribui aos criacionistas a sugestão de que “a história que a genômica comparada testifica nunca ocorreu de fato” (p. 174). Essa formulação contém uma petição de princípio, pois pressupõe que há um processo histórico que pode ser objetivamente inferido dos dados genômicos, restando definir apenas se essa história é real ou fictícia; mas o que os criacionistas afirmam é que essa inferência de uma história pregressa já é fruto de um olhar enviesado por parte dos evolucionistas.
5Usando um conceito da sociologia do conhecimento, poderíamos dizer que as convicções teológicas influenciam profundamente a estrutura de plausibilidade com base na qual o cientista julga a evidência disponível em sua área de especialidade.
6Mesmo no âmbito secular há diversas tradições já consolidadas de estudos em filosofia, história e sociologia das ciências que apontam na direção que busquei delinear em pouquíssimas palavras neste parágrafo. Walton não dá sinais de conhecer tais discussões.
7Esse fato é bem estabelecido na literatura filosófica. Por exemplo, o filósofo inglês R. G. Collingwood dedicou todo o livro The Idea of Nature (New York: Oxford University Press, 1960) à discussão das concepções de matéria e natureza e suas mutações ao longo do tempo.
8Roots of Western Culture: Pagan, Secular, and Christian Options. Toronto: Wedge, 1979, pp. 15-21.
9Dooyeweerd explica sucintamente a diferença em ibid., pp. 150-1.
10Aqui não é necessário endossar ou mesmo discutir a totalidade de seu vasto sistema filosófico.
11Com frequência traduzidos em Gênesis 1 como “criar” e “fazer”, respectivamente.
12Traduzido como “formar” em Gênesis 2.
13“Pois ele conhece a nossa estrutura e sabe que somos pó” (ARA, aqui e nas citações seguintes).
14Jr 1.5: “Antes que eu te formasse no ventre materno, eu te conheci, e, antes que saísses da madre, te consagrei, e te constituí profeta às nações.”
15Está em discussão desde Romanos 1 a situação dos gentios que não receberam a revelação especial, em contraste com os judeus. Se o entendimento de Walton fosse correto, isso implicaria que os pagãos não são pecadores. Mas o contrário é afirmado repetidamente (Rm 1.20,28-31; 2.9,12,14; 3.9,30).
16Ele se refere à ideia de que “o pecado é passado de geração em geração na medida em que nascemos”.
17Exemplos citados a esmo: o fariseu que visitou Jesus se chamava Nicodemos; João estava em Patmos quando teve as visões do Apocalipse; Salomão teve setecentas esposas e trezentas concubinas.
18O livro apresenta, por exemplo, dados que contradizem a velha teoria liberal de uma origem tardia para o relato da criação.

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