Introdução
Certa vez, C. Hassel Bullock[1] ressaltou que a qualidade musical intrínseca da língua hebraica suportava naturalmente a expressão poética: “é basicamente uma língua de verbos e substantivos, e estes são os blocos de construção da poesia hebraica”. Ele também comentou que a imensa força de seu sotaque lhe dá um movimento rítmico que perdemos em línguas que têm um estresse menor. “A escassez de adjetivos aumenta a dignidade e a impressividade do estilo, e a ausência de um grande estoque de termos abstratos leva o poeta a usar imagens e metáforas em seu lugar”.[2] Os escritores bíblicos souberam explorar muito bem essa singularidade, pois uma parte considerável do que escreveram estão em forma poética.[3] Se esse material fosse impresso em sequência, teríamos um volume cuja extensão total excederia o Novo Testamento.[4] Mas quais são as características formais da poesia hebraica bíblica? Como podemos abordá-la? Essas e outras perguntas serão respondidas por este artigo.[5]
1. Poesia
1.1 Terminologia
James L. Kugel[6] observou que não existe no hebraico bíblico uma palavra para “poesia”:
Há um grande número de classificações de gêneros na Bíblia —palavras para diferentes tipos de salmos, hinos, músicas e arranjos corais; provérbios, jogos de palavras; maldições, bênçãos, orações; histórias, contos, genealogias; leis, procedimentos cultuais; discursos, exortações de intenção moral; oráculos, predições, consolação ou repreensão — mas em nenhum lugar qualquer palavra é usada para agrupar gêneros individuais em correspondências de blocos maiores como a “poesia” ou “prosa”.
Embora Kugel, em certo sentido possa estar correto, outros autores sugerem que algumas palavras hebraicas como, por exemplo, “מִִזְמֹר” — “mizmor” e “מָשָׁל” — “mashal” são apropriadas como sinônimas de poesia. Um “poema” e mesmo o próprio “estilo poético” podem ser descritos por essas duas palavras hebraicas[7].
Pode-se definir poesia como qualquer tipo de linguagem verbal ou escrita que é estruturada ritmicamente e se destina a contar uma história, ou expressar qualquer tipo de emoção, ideia ou estado de ser, é a “arte de criar imagens, de expressar emoções em que se combinam sons, ritmos e significados”.[8] Seu propósito “é instruir enquanto dá prazer”.[9] É um gênero literário frequente em vários livros da bíblia, não apenas na chamada literatura sapiencial, Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes e Cantares, mas também nos escritos dos profetas e em outros lugares da Escritura[10].
1.2 Prosa e poesia
A poesia é bem delimitada por suas diferenças em relação à prosa. Embora haja uma área de sobreposição, as diferenças são perceptíveis: “(…) apesar de algumas combinações de tipos e indefinição das linhas de demarcação, a prosa e a poesia são basicamente duas formas diferentes de usar a linguagem”.[11] Além disso, certos elementos gramaticais são mais comuns na prosa do que na poesia. Esse é o caso das partículas hebraicas “‘את” – (et) – que indica o objeto direto definido, do pronome relativo “אשר” — (asher), e do artigo definido “ה” — (ha).[12] Por outro lado, segundo Charles Biggs[13] a forma mais simples e antiga do verso hebraico era medida por três acentos rítmicos, os trímetros (também havia a medida de cinco acentos “pentâmetros” e de seis acentos “hexâmetros”).[1] Esse autor, discordava de Bickell quando este dizia que a métrica deveria ser medida por sílabas, sem considerar a quantidade como na poesia siríaca, de modo que há uma sucessão constante de sílabas acentuadas e não acentuadas e, portanto, iâmbicas ou trocáficas.[14] Biggs acreditava que a poesia hebraica estava em um estágio mais avançado de desenvolvimento do que a poesia siríaca. Ele lembrou inclusive que o maqqef (־) foi usado no sistema massorético como um guia para a cantilação.[2] No entanto, reconheceu que o uso do referido sinal gráfico para a cantilação dependia de um uso mais antigo para o ritmo.[15]
Para Biggs, embora existissem linhas de dímetro, não havia nenhuma parte da poesia bíblia que fosse construída de dímetros: “eles eram usados apenas para dar variação aos trímetros, especialmente no começo e no fim de uma estrofe, ou onde fosse importante que houvesse uma pausa no movimento do pensamento ou emoção.”[16] Ele dá como exemplo Números 23.7-10:[17]
וישׂא משׁלו ויאמר מן־ארם ינחני בלק מלך־מואב מהררי־קדם לכה ארה־לי יעקב ולכה זעמה ישׂראל׃
מה אקב לא קבה אל ומה אזעם לא זעם יהוה׃
כי־מראשׁ צרים אראנו ומגבעות אשׁורנו הן־עם לבדד ישׁכן ובגוים לא יתחשׁב׃
מי מנה עפר יעקב ומספר את־רבע ישׂראל תמת נפשׁי מות ישׁרים ותהי אחריתי כמהו׃
1.3 Utilidade
Robert Lowth[3] ensinou que a utilidade é o objetivo final da poesia, o prazer, o meio pelo qual esse fim pode ser efetivamente cumprido.[18] Nesse espírito ele declarou: “eu, portanto, estabeleço como uma máxima fundamental que a poesia é útil principalmente porque é agradável (…) os escritos do poeta são mais úteis do que os do filósofo, na medida em que são mais agradáveis”. Não é difícil concordar com o autor aqui em relação à utilidade da poesia. Realmente esse gênero é muito importante na medida em que revela o esforço que os seres humanos fazem para explorar e compreender palavras e sentimentos. Além disso, por meio da poesia o ser humano consegue dá forma e significado as suas experiências, pois ela permite que ele se mova com confiança no mundo conhecido, mas também que o ultrapasse.[19] Não bastasse isso, a poesia permite expressar sentimentos e emoções por meio de imagens compreensíveis. Ao lermos Cantares, por exemplo, só conseguimos capturar a beleza do amor apaixonado descrito ali, porque o autor resolveu descrevê-lo em linguagem poética.[20] Foi nessa perspectiva que Joseph Angus[21] comentou que “a excelência particular da poesia hebraica está em ter servido a mais nobre das causas, a da religião, apresentando as mais elevadas e preciosas verdades, expressas na linguagem mais apropriada”. Portanto, o estudo desse material não deve ser um mero exercício técnico, mas conduzido com toda a seriedade, pois o que se busca são tesouros espirituais maravilhosos.[22]
1.4 Paralelos
Desde a descoberta dos textos ugaríticos em 1929 houve uma intensa discussão da poesia de Ugarit e do Antigo Testamento.[23] Esses achados foram datados pelos arqueólogos como próximos dos anos 1600 e 1200 a.C. (a segunda data é determinada pela invasão dos povos do mar que saquearam a cidade).[24] Mas, acredita-se que esses textos foram escritos próximos dos anos 1400-1350 a.C.[25] Seu principal material poético compreendia: (1) o Ciclo de Baal (uma série de episódios contando as aventuras de Baal); (2) as lendas de Keret e Aqhat (ambos, heróis humanos); (3) a história de Dawn, “Dusk” e as núpcias de Nikkal. Essas estórias foram escritas em cerca de 4.000 linhas de versos (mas havia muitas repetições literais das mesmas linhas).[26] Embora datando em forma escrita por volta do século XIV a.C., as próprias composições são provavelmente muito anteriores.[27] Elas teriam circulado pela primeira vez em forma oral, e, portanto, em várias versões diferentes, logo depois tomaram a forma estática e final que conhecemos hoje.[28] Os textos ugaríticos descobertos tratavam sobre mitos, contos e lenda, mas havia uma ou duas orações e pelo menos um encantamento, e talvez um hino.[29]
Esses textos descobertos acabaram servindo de referência para o estudo da poesia hebraica bíblica.[30] Isso porque o ugarítico é uma língua intimamente relacionada com o hebraico, muito mais próxima do que o acadiano.[31] Mais tarde com a comparação desses achados com textos da bíblia hebraica, pode-se anuir o uso da poesia como um recurso literário bem explorado pelos autores bíblicos.
1.5 Características formais
Nesse tópico discorremos sobre as características principais da poesia hebraica bíblica.
1.5.1 Ritmo e paralelismo
O ritmo (métrica) e o paralelismo são para muitos autores, as características principais da poesia bíblica.[32] Essa é a opinião, por exemplo, de George Buchanan Gray.[33]
Robert Lowth em suas preleções acadêmicas sobre a poesia sagrada hebraica falou sobre três tipos de paralelismo: sinônimo, antitético e sintético.[34] No entanto, nos últimos anos, baseado em parte em estudos de textos ugaríticos parece haver um consenso acadêmico de que esse esquema era simplista demais. Hoje os estudiosos falam em paralelismo sintático (ordem das palavras) e semântico (significado das palavras).[35] O paralelismo sintático é mais difícil de representar em algumas línguas, porque a ordem das palavras é muitas vezes difícil de ser traduzida de uma maneira inteligível. O paralelismo semântico é mais fácil de ilustrar.[4]
1.5.2 Métrica
A métrica tem sido apresentada como uma forma de ritmo. Assim, para se saber o que é métrica, deve-se primeiro saber o que é ritmo.[36] Então vamos lá. O ritmo pode ser descrito como um padrão recorrente de sons.[37] Ele pode ser marcado por um forte acento em uma palavra, pela sonoridade, pela afinação (uma sílaba pronunciada em tom mais alto ou mais baixo que a norma) e pelo comprimento (extraindo uma sílaba) etc.[38]
Watson[39] observou que a métrica não pode ser medida cientificamente pelo uso do osciloscópio ou espectrografia sonora. Para o autor, ela só podia ser determinada linguisticamente.[40] Ela pertence à estrutura superficial da linguagem e não a sua estrutura profunda.[41] Além disso, a métrica é um padrão sequencial de entidades abstratas, em outras palavras, é uma espécie de moldagem de uma linha (de verso) para se ajustar a uma forma preconcebida composta de conjuntos recorrente.[42]
1.5.3 Estresse
Um elemento importante da métrica é o que Watson chama de “estresse”. Essa é uma característica suprassegmental do enunciado.[43] Por exemplo, uma sílaba tônica é pronunciada mais energicamente, muitas vezes com um aumento no tom ou no volume:[44] “O estresse funciona para enfatizar ou contrastar uma palavra ou para indicar relações sintáticas”. O padrão do estresse na métrica hebraica pode ser percebido no texto de Salmo 142.2a.:[45]
אֶזְעָק יְהוָה אֶל קוֹלִי
Ezëaq YHVH El Qoly.[46]
“Derramo perante Yavé a minha queixa”
1.5.4 Paralelismo sinônimo
O primeiro tipo de paralelismo é o sinônimo. Ocorre quando o mesmo sentimento se repete em termos diferentes, mas com equivalência.[47] Exemplo, Salmo 24.1[48]
לַיהוָה הֶאָרֶץ וּמְלוֹאֶהּ
Umëloah Haarets LaYHVH
תֵּבֵֹל וְיֹשְּׁבֵי בָהּ
Vah Veyoshevey Tevel
“Ao SENHOR pertence a terra e tudo o que nela se contém, o mundo e os que nele habitam”.
1.5.5 Paralelismo antitético
O paralelismo antitético é quando uma coisa é ilustrada pelo seu contrário: sentimentos se opõem a sentimentos, palavras a palavras, etc.[49] Vejam isso mais claramente em Provérbios 10.1:[50]
אָב־יְשַׂמַּח חָכָם בֵּן
Yësamach av Chakham Ben
אִמּוֹ תּוּגַת כְּסִיל וּבְן
Ymo Tagat Kesyl Uven
“O filho sábio alegra o seu pai, mas o filho insensato é a tristeza de sua mãe”.
1.5.6 Paralelismo sintético
Nesse tipo de paralelismo as sentenças respondem umas às outras, não pela interação da mesma imagem ou sentimento, ou pela oposição de seus contrários, mas simplesmente pela forma de construção.[51] Exemplo, Salmo 2.6:[52]
מַלְכִּי נָסַתִּי וַַאַנִי
Malëky Nasakhëty Vaany
קָדְשּׁי׃ חַר צִיּוֹן ־ עַל
Qadëshy Har Tsyon Al
“Eu, porém, constituí o meu Rei sobre o meu santo monte Sião”.
1.5.7 Merisma
Quando uma totalidade é expressa de forma abreviada, estamos lidando com o merisma. A expressão “corpo e alma” em Isaías 10.18, por exemplo, significa “a pessoa inteira”.[53] O ponto significativo é que no merisma de qualquer forma não são os elementos individuais que importam, mas o que eles representam juntos, como uma unidade.[54] Veja, por exemplo, Isaías 1.6:[55]
מכף־רגל ועד־ראשׁ
Rosh Vead Regel Mikaf
אין־בו מתם
Metom Bo Eyn
“Desde a planta do pé até a cabeça
não há nele coisa sã…”
1.5.8 Ironia
Deve-se ter em mente que em uma declaração irônica, o significado literal é precisamente o oposto do que deve ser entendido. O principal problema da detecção da ironia na poesia escrita é a falta de marcadores extralinguísticos, como gestos corporais e a ausência de entonação que poderiam fornecer uma pista para a interação irônica.[56]
Isso é verdade, sobretudo, no hebraico antigo, ugarítico e acadiano. Em todo caso, o contexto pode ser o melhor guia para apontar a presença da ironia. Esse é o caso de Amós 4.4-5:[57]
באו בית־אל ופשׁעו הגלגל הרבו לפשׁע והביאו לבקר זבחיכם לשׁלשׁת ימים מעשׂרתיכם׃
וקטר מחמץ תודה וקראו נדבות השׁמיעו כי כן אהבתם בני ישׂראל נאם אדני יהוה׃
Harebu Hagilegal Ufisheu El Veyt Bou
Zivecheykhem Loboqer Vehavyu Lifeshoa
Maeseroteykhem Yamym Lisheloshet
Nedavot Veqireu Todah Mechamets Veqater
Yserael Beney Ahavetem Khen ky Hashemyu
Yehvih Adonay Neum
“Vinde a Betel e transgredi, a Gilgal, e multiplicai as transgressões; e, cada manhã, trazei os vossos sacrifícios e, de três em três dias, os vossos dízimos; e oferecei sacrifício de louvores do que é levedado, e apregoai ofertas voluntárias, e publicai-as, porque disso gostais, ó filhos de Israel, disse o SENHOR Deus”.
Compare o insulto direto em Amós 4.1: “Ouvi esta palavra, vacas de Basã”.[58]
2. Dispositivos sonoros
Nesse tópico serão destacados os efeitos sonoros comuns no verso poético.
2.1 Assonância
É uma forma de repetição de vogais. Ocorre quando há uma série de palavras contendo um som de vogal distinto ou certos sons vocálicos em uma sequência específica.[5] Exemplo, Salmo 48.7 (em alguns versões, será verso 8):
ברוח קדים תשׁבר אניות תרשׁיש
Beruach Qadyn Teshaber Onyot Tareshysh
“Com vento oriental destruíste as naus de Társis”
2.2 Aliteração
Trata-se do efeito produzido quando a mesma consoante se repete dentro de uma unidade de verso.[59] Exemplo, Salmo 147. 13:[60]
בריחי ברך בניך בקרבך׃
Beqirebekh Banaykh Berakh Berychey
“Pois ele reforçou as trancas das tuas portas e abençoou os teus filhos, dentro de ti”
2.3 Rima
Quando duas palavras soam iguais temos uma rima. Essa identidade sonora pode ser de vários graus, de quase perfeita a meramente aproximada.[61] Geralmente alcançada pelo uso do mesmo sufixo ou terminando em cola sucessiva. Exemplo, Isaías 33.22:[62]
שׂפטנוּ יהוה
Shofetenu YHVH
מחקקנו יהוה
Mechoqeqenu YHVH
מלכנו יהוה
Malekenu YHVH
“Porque o SENHOR é o nosso juiz, o SENHOR é o nosso legislador, o SENHOR é o nosso Rei; ele nos salvará”.
2.4 Onomatopeia
Pode ser definida como a imitação de um som dentro das regras da linguagem em questão. Ao contrário do mimetismo, a onomatopeia depende da linguagem.[63] Assim ela esta sujeita às variações causadas pela gramática, como Isaías 17.12 deixa evidente:
הוי המון עמים רבים-
Rabym Amym Hamon Holy
כהמות ימים יהמיון
Yehemayun Yamym Kahamotושׁאון לאמים
Leumym Usheon
כשׁאון מים כבירים ישׁאון
Yshaun Kabyrym Maym Kisheon“Ai da multidão dos grandes povos que bramam como bramam os mares e do rugido das nações que rugem como rugem as impetuosas águas”
3. Dispositivo analógico
Neste tópico veremos um recurso muito usado em linguagem poética, qual seja: a imagem.
3.1 Imagem
Esse é um recuso muito utilizado na poesia. Certo autor expressou sua importância com as seguintes palavras:[64]
“no nível técnico, a poesia está no seu melhor quando composta com economia, isto é, quando o poeta exprime o máximo possível em poucas palavras. Para usar uma analogia, isso corresponderia a um artista desenhando um esboço com um mínimo de traços de lápis”.
Uma imagem é uma figura de linguagem que expressa alguma semelhança ou analogia “a maioria das imagens são metafóricas”, mas nem todas as metáforas ou comparações são imagens.[65] Existem algumas características que devem acompanhar uma imagem em poesia: “devem ser concretas e relacionadas com o sentido, e não baseadas em conceitos abstratos”. Exemplo: Miqueias 3.2-3:[66]
שׂנאי טוב ואהבי רעה גזלי עורם מעליהם ושׁארם מעל עצמותם׃
Atsemotam Meal Usheeram Mealeuhem Oram Gozeley Raah Veohavey Tov Soneey
ואשׁר אכלו שׁאר עמי ועורם מעליהם הפשׁיטו ואת־עצמתיהם פצחו ופרשׂו כאשׁר בסיר וכבשׂר בתוך קלחת
Qalachat Betokh ukhevasar Basyr Kaasher Ufaresu Pitsech Atsemoteyhem Veet Hifeshytu Mealeyhem Veoram Amy Sheer Akhelu Vaasher
“Os que aborreceis o bem e amais o mal; e deles arrancais a pele e a carne de cima dos seus ossos;
que comeis a carne do meu povo, e lhes arrancais a pele, e lhes esmiuçais os ossos, e os repartis como para a panela e como carne no meio do caldeirão”
3.2 Símile
Símile e metáfora se sobrepõem, até certo ponto expressam a mesma coisa, mas de maneiras diferentes. De um modo geral, a símile é mais óbvia que a metáfora: isso porque é mais explícita, ou porque a base de comparação é realmente declarada.[67] Em contraste, a metáfora é mais concisa e, ao mesmo tempo, mais vaga, podemos ver isso em Jó 24.24:[68]
רומו מעט ואיננו והמכו ככל יקפצון וכראשׁ שׁבלת ימלו׃
Ymalu Shibolet Ukherosh Yqafetsun Karol Vehumekhu Veeynenu Meat Romu
“São exaltados por breve tempo; depois, passam colhidos como todos os mais; são cortados como as pontas das espigas”.
3.3 Metáfora
Compreender a poesia envolve enfrentar as expressões da metáfora.[69] Dois tipos de metáfora podem ser distinguidas: a referencial e a conceitual (semântico).
3.3.1 Referencial – metáforas baseadas no que o poeta realmente pode ter visualizado. Por exemplo, Jeremias 12.10:
רעים רבים שׁחתו כרמי בססו את־חלקתי נתנו את־חלקת חמדתי למדבר שׁממה
Bosesu Kharemy Shichatu Rabym Roym
Cheleqat Et Natenu Cheleqaty Et
Shemamah Lemidebar Chemedaty
“Muitos pastores destruíram a minha vinha e pisaram o meu quinhão; a porção que era o meu prazer, e a tornaram em deserto”.
Aqui a imagem evocada é concreta.[70]
3.3.2 Conceitual – metáforas dessa classe são baseadas em imagens abstratas em vez de concretas.[71]
3.4 Hipérbole
É uma maneira de expressar exagero de algum tipo em relação a tamanho, números, perigo, etc.[72] A hipérbole é muito frequente no hebraico bíblico, ver, por exemplo, Isaías 48.19; Zacarias 9.3; Jó 27.16; Salmo 78. 27, entre outros.[73]
Uma combinação de símile e metáfora pode formar uma expressão hiperbólica, como, por exemplo, em Salmo 141.7:[74]
כמו פלח ובקע בארץ
Baarets Uvoqea Foleach Kemo
נפזרו עצמינו לפי שׁאול
Sheol Lefy Atsameynu Nifezeru
“Ainda que sejam espalhados os meus ossos à boca da sepultura, quando se lavra e sulca a terra”.
4. Dispositivos gramaticais
Neste tópico conheceremos certos elementos gramaticais que ocorrem com alguma frequência no texto poético do Antigo Testamento.
4.1 Elipse
A forma mais significativa de uma elipse na símile hebraica é a omissão da partícula comparativa.[75] Não há problema real quando isso ocorre na primeira linha, mas sim na segunda, como, por exemplo, em Salmo 36.7:[76]
צדקתך כהררי־אל
El Keharerey Tsideqatekha
משׁפטך תהום רבה
Rabah Tehom Mishepatekha
“Como é preciosa, ó Deus, a tua benignidade! Por isso, os filhos dos homens se acolhem à sombra das tuas asas”.
4.2 Oximoro
É a junção de duas expressões que são semanticamente incompatíveis, de modo que em combinação não possam ter uma referência literal concebível à realidade. Por exemplo, “água-seca”.[77] Quando duas palavras contraditórias são combinadas — como em “água-seca” a intenção é negar o aspecto molhado da água.[78] Em geral o seu efeito é de um choque intelectual como em Provérbios 28.19:[79]
עבד אדמתו ישבע לחם
Lachem Yseba Ademato Oved
ומרדף ריקים ישבע ריש
Rysh Yseba Reqym Umeradef
“O que lavra a sua terra virá a fartar-se de pão, mas o que se ajunta a vadios se fartará
de pobreza”.
Conclusão
No transcurso desta pesquisa procuramos de modo descritivo apresentar a estrutura formal da poesia hebraica bíblica. Em razão da natureza deste trabalho não fomos exaustivos, no entanto, cada explicação foi seguida por um exemplo extraído de um texto bíblico. Buscava-se com isso facilitar a assimilação do conteúdo teorizado. Entretanto, estamos cientes que o assunto abarcado é realmente intrincado. Assim, na conclusão deste artigo, deixaremos algumas dicas para a abordagem do material poético na bíblia. Vamos lá. Centre-se em uma unidade literária independente.[80] Em seguida busque determinar características formais do texto poético. Por exemplo, se a forma é um paralelismo, é preciso saber de que tipo é, e em que medida afeta o significado do texto.[81] O passo seguinte é procurar por temas principais, como sacrifício; motivos teológicos, como a aliança, ou eventos importantes, como o êxodo. Uma vez identificado esses elementos, deve-se tentar entendê-los a partir de uma perspectiva diacrônica e sincrônica, isto é, sob o ponto de vista do desenvolvimento histórico e literário.[82] É importante saber qual teria sido o propósito do autor ao usar certas imagens, metáforas, símiles, ironia, personificação e etc.[83] Deve-se também pergunta sobre o impacto que a linguagem cultural específica tem na interpretação.[84] Tomados esses passos, acreditamos que o intérprete estará minimamente capacitado a lidar com esse material difícil.
Referências bibliográficas
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WENGER, Mark. Poetry in the Bible. An Introduction (Lecture Notes). Disponível em:<https://www.academia.edu/7110653/Poetry_and_the_Bible_-_An_Introduction_Lecture_Notes_>. Acesso em: 07/08/2019.
_______________________
[1] BULLOCK, C. Hassel. An Introduction to the Old Testament Poetic Books. Chicago: Moody Press, 1988, p. 31-32.
[2] BULLOCK, 1988, p. 31-32.
[3] Mark E. Wenger sugere que mais 8.600 versos da bíblia são poesia – quase 27% de todos os versículos da bíblia, ver: WENGER, Mark. Poetry in the Bible. An Introduction (Lecture Notes). Disponível em:<https://www.academia.edu/7110653/Poetry_and_the_Bible_-_An_Introduction_Lecture_Notes_>. Acesso em: 07/08/2019.
[4] KAISER, Walter C.; SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica Bíblica. 2. ed. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2009, p.83.
[5] Desde que Robert Lowth, um estudioso da Universidade de Oxford proferiu em 1753 suas memoráveis palestras sobre poesia hebraica, o interesse por esse tema só fez aumentar. Segundo George Buchanan Gray, a contribuição de Lowth para o estudo da poesia hebraica foi dupla: “(…) analisou e expôs sua estrutura paralela e chamou a atenção para a sua extensão no Antigo Testamento”, ver: GRAY, George Buchanan. The Forms of Hebrew Poetry: considered with special reference to the criticism and interpretation of the Old Testament. Londres: Hodder and Stoughton, 1915, p.4-7. No entanto, uma análise detalhada de todos os textos poéticos do Antigo Testamento ainda não pode ser realizada, ver: WATSON, Wilfred G. E. Classical Hebrew Poetry. In: Journal for the study of the Old Testament – Supplement Series 26, 1984, p.1.
[6] KUGEL, James L. The idea of Biblical Poetry: parallelism and Its History. New Haven and London: Yale University Press, 1981, p.69.
[7] LOWTH, 1829, p.38.
[8] MiniAurélio Século XXI. Editora Nova Fronteira, 2001, p.578.
[9] LOWTH, Robert. Lectures on the Sacred Poetry of the Hebrews. New York: Crocker & Brewster, e J. Leavitt, No. 182, 1829, p.9.
[10] FREEDMAN, David Noel. Pottery, poetry, and prophecy an essay on biblical poetry. In: Journal of Biblical Literature, Vol. 96, No.1, 1977, p.5.
[11] FREEDMAN, 1977, p.6.
[12] FREEDMAN, 1977, p.6.
[13] BRIGGS, Charles. Hebrew Poetry. In: Hebraica, Vol .2, nº3. Chicago: The University of Chicago Press, 1886, p.164.
[14]BRIGGS, 1886, p.164.
[15] BRIGGS, 1886, p.164.
[16] BRIGGS, 1886, p.164.
[17] BRIGGS, 1886, p.164.
[18] BRIGGS, 1886, p.164.
[19] BRIGGS, 1886, p.164-165.
[20] LOWTH, 1829, p.11.
[21] LOWTH, 1829, p.11.
[22] SIMECEK, Karen; RUMBOLD, Kate. The uses of Poetry. In: Changing English, 2016, p.309.
[23] Vejam também outro exemplo em Isaías 2.11-17, cf. GRENN, Jennifer. Reading poetic texts in Isaiah. Vol.13, Iss. 2, Article 3. In: Leven, 2005, p. 61.
[24] ANGUS, Joseph. História, Doutrina e Interpretação da Bíblia. São Paulo: Hagnos, 2003, p.539.
[25] CARSON, D. A.; FRANCE, R. T.; MOYTER, J. A.; WENHAM, G. J. Comentário Bíblico Vida Nova. São Paulo: Editora Vida Nova, 2009, p.688.
[26] BULLOCK, 1988, p.32.
[27] WATSON, 1984, p.6.
[28] WATSON, 1984, p.6.
[29] WATSON, 1984, p.6.
[30] WATSON, 1984, p.6.
[31] WATSON, 1984, p.6.
[32] WATSON, 1984, p.6.
[33] WATSON, Wilfred G. E. Classical Hebrew Poetry. In: Journal for the study of the Old Testament – Supplemente Series 26, 1984, p.4.
[34] WATSON, 1984, p.5
[35] CARSON; FRANCE; MOTYER; WEMHAM, 2009, p.688.
[36] GRAY, 1915, p.3-4.
[37] LOWTH, 1829, p.154. Veja também: BULLOCK, 1988, p.32.
[38] BULLOCK, 1988, p. 32.
[39] BULLOCK, 1988, p. 32.
[40] WATSON, 1984, p. 87.
[41] WATSON, 1984, p. 87.
[42] WATSON, 1984, p. 87-88.
[43] WATSON, 1984, p. 87-88.
[44] WATSON, 1984, p. 88.
[45] WATSON, 1984, p. 88.
[46] WATSON, 1984, p. 90.
[47] WATSON, 1984, p. 90.
[48] WATSON, 1984, p. 97.
[49]A transliteração aqui não é rigorosa, isto é, não considera a forma (sobrescrito/subscrito na transliteração) das vogais longas e breves minuciosamente, mas está correta e pode funcionar com um auxílio para o leitor menos experiente no hebraico bíblico. Assim, o texto hebraico usado nesta pesquisa seguiu sempre transliterado, apenas em um caso isso não aconteceu.
[49] LOWTH, 1829, p. 157.
[50] O texto hebraico usado aqui é da Bíblia Hebraica Stuttgartensia (1997), SBB. A tradução livre é deste autor.
[51] LOWTH, 1829, p. 161.
[52] O texto hebraico usado aqui é da Bíblia Hebraica Stuttgartensia (1997), SBB. A tradução livre é deste autor.
[53] LOWTH, 1829, p. 162.
[54] O texto hebraico usado aqui é da Bíblia Hebraica Stuttgartensia (1997), SBB. A tradução livre é deste autor.
[55] WATSON, 1984, p. 321.
[56] WATSON, 1984, p. 321.
[57] O texto hebraico é o citado por Watson, ver: WATSON, 1984, p. 321.
[58] WATSON, 1984, p. 306-307.
[59] O texto hebraico é o citado pelo autor, ver: WATSON, 1984, p. 307.
[60] WATSON, 1984, p. 307.
[61] WATSON, 1984, p. 222-223.
[62] WATSON, 1984, p. 225.
[63] WATSON, 1984, p. 226.
[64] WATSON, 1984, p. 229.
[65] WATSON, 1984, p. 231.
[66] WATSON, 1984, p. 234.
[67] WATSON, 1984, p. 251.
[68] WATSON, 1984, p. 251.
[69] WATSON, 1984, p. 251-252.
[70] WATSON, 1984, p. 251-254-255.
[71] WATSON, 1984, p. 251-255.
[72] WATSON, 1984, p. 263.
[73] WATSON, 1984, p. 264.
[74] WATSON, 1984, p. 264.
[75] WATSON, 1984, p. 316-317.
[76] WATSON, 1984, p. 318.
[77] WATSON, 1984, p. 319.
[78] WATSON, 1984, p. 260.
[79] WATSON, 1984, p. 307.
[80] AUDIRSCH, Jeffrey. Interpreting Hebrew Poetry. In: Journal for Baptist Theology e Ministry. Vol. 13; Nº. 2, 2006, p. 47.
[81] AUDIRSCH, 2006, p. 48.
[82] AUDIRSCH, 2006, p.48.
[83] AUDIRSCH, 2006, p.48.
[84] AUDIRSCH, 2006, p.48.