O vazio da Alma e o púlpito saudável

0
6027

Embora tenhamos a perspectiva doutrinária de que Deus elege os Seus e que, por isso mesmo, a razão da escolha recai soberanamente sobre Ele, podemos afirmar que o papel não cumprido da Igreja corresponde a um hiato lacunar, tornando-se preliminarmente a razão de termos uma sociedade esvaziada em suas pressuposições acerca de Deus e da razão da existência. Refiro-me a uma Igreja que deixa de lado sua missão mais importante, que é propagar a verdade salvadora de Cristo e se lança em outras empreitadas, secularizando e tornando palpável o que somente reside na esfera metafísica. Partindo dessa premissa, é necessário pensar um pouco em termos de púlpito não saudável para conseguirmos pensar em alma vazia.
 
Em sua obra Dez acusações contra a Igreja moderna, Paul Washer faz uma interessante intervenção explicativa a respeito desse esvaziamento e relaciona o estado moral e espiritual deplorável de sua nação (Estados Unidos da América) ao púlpito esvaziado de princípios bíblicos. Diz ele ter ouvido “algumas (…) coisas horrorosas que acontecem em meu país (não sei mais como o chamam: república, democracia, país, estado socialista?)”.1 A forma com que ele expõe sua estupefação é claramente uma referência ao estado geral em que se encontra sua nação e as pessoas que ali vivem: perderam os referenciais e encontram-se esvaziadas de certezas. Mais à frente, Washer mostra o caminho dessa contradição generalizada, dizendo que, ao invés de sermos alimentados constantemente pela boa palavra da fé, nós nos movemos de maneira inconsequente desejando fazer alguma coisa. Mas, desprovidos dos bons alimentos da palavra da fé e da boa doutrina que temos seguido, em clara alusão a 1Timóteo 4.16. 2

Em contraposição às orientações expostas por Paulo, entendemos que a outra face da moeda é a causadora dos males percebidos na sociedade. Mais uma vez, no entanto, somente a Igreja percebe essa verdade, o que a deixa como antagonista das estruturas da sociedade, exatamente aquelas que estão esvaziadas em si mesmas. A orientação de Washer é o retorno imediato à meditação da palavra de Deus e à obediência devida às exortações de pureza e denodo no púlpito. Sua defesa é que isso satisfará aos anseios da alma vazia que, por sua vez, terá como influenciar diretamente a sociedade à volta da Igreja.

A alma vazia é resultante de uma conjunção entre sociedade totalmente secularizada que se deita sobre reflexões completamente relativizadoras a respeito da vida e das questões existências em somatório a uma Igreja que não tem exercido plenamente seu papel de, a partir do púlpito, apregoar os tempos de mudança que Deus propõe enquanto houver tempo.

O apóstolo Paulo nos adverte a esse respeito usando uma interessante imagem, na qual diz que em tempos além do seu, muitos agiriam em relação à sã palavra como quem tem coceira nos ouvidos, tamanho incômodo que a mesma lhes traria. O texto de 2Timóteo 4.1-5 inicia pela exortação de Paulo a que o púlpito jamais abandone sua primazia na condução das almas, com correções, repreensões e exortações. Mas ele adverte Timóteo – e nós, por inferência – que isso incomodaria muitos que não suportariam a sã pregação da Palavra de Deus, que ele chama de sã doutrina. 3

Em seu livro Com vergonha do Evangelho, ao comentar esse trecho das Escrituras, John MacArthur faz uma ressalva que nos remete à necessidade de termos em nossos dias púlpitos saudáveis pelas mesmas razões que eles eram necessários nos tempos de Paulo, qual seja eliminar o vazio das almas. Diz ele que “na filosofia ministerial de Paulo não havia lugar para a teoria do ofereça-às-pessoas-o-que-elas-desejam”.4  E prossegue dizendo que Timóteo, sob orientação de Paulo, não elaborou pesquisa para saber o que as pessoas queriam, mas apenas obedeceu e pregou o Evangelho que era preciso: o da sã doutrina. É pela persistência e paciência, na pregação, que o púlpito saudável haverá de atingir os seus resultados esperados na transformação de vidas secas e desprovidas de espiritualidade centrada na Palavra de Deus.

As almas vazias, mas que carregam pontos de religiosidade formal, diferentemente das não religiosas, chegarão um dia a buscar seus próprios mestres e sacerdotes a fim de satisfazerem suas formalidades religiosas, mesmo que isso não represente mudança de vida e de princípios interiores. Há dois exemplos na Bíblia que ilustram bem esse princípio. Um deles está nesta mesma advertência de Paulo, quando ele diz a Timóteo no verso 3 do trecho citado: “Pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de mestres segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos;” Paulo diz expressamente que em tempos futuros muitas pessoas teriam comichão nos ouvidos ao ouvirem a verdadeira pregação da Palavra, o que os empurraria em direção a um gesto singular: conseguir um mestre que não lhes ensine, mas que lhes diga o que eles querem ouvir. Com isso, sua satisfação estaria garantida e sua consciência amortecida estaria livre de confrontos. Paulo chega a dizer que a cobiça dessas pessoas é a força motriz desse gesto e que por esse intermédio elas se entregariam a fábulas, ou seja, a narrativas e estruturas de conhecimento irreais e inexequíveis.

O outro exemplo, marcante para mim, está em Juízes 17,5  que narra a estranha aventura de uma família e de um jovem sacerdote levita. Tendo furtado a própria mãe, Mica resolve devolver-lhe os cerca de treze quilos de prata sumidos. Surpreendentemente, ao fazê-lo, a mãe não o exorta, mas lhe deseja bênçãos em nome de Deus e separou imediatamente quase 2,5 quilos da prata recuperada e mandou fazer um ídolo do lar. Na sequência a família veio a ter um santuário em casa, com vários ídolos se juntando, e um dos filhos de Mica foi “ordenado” ao ministério pelo próprio pai, que tinha lhe preparado uma estola sacerdotal. Um jovem levita que passou por ali foi abordado por Mica e aceitou ser um sacerdote particular para a família, contratado por cerca de 120 gramas anuais de prata, mais roupa e demais sustentos pessoais.

Duas coisas gritam no texto, quando tratamos da questão do púlpito sadio, ambas apontando para as advertências de Paulo a Timóteo de que não devemos nos entregar às opiniões, mas manter firmes as palavras da sã doutrina a partir do púlpito: o verso 6, que diz “Naqueles dias, não havia rei em Israel; cada qual fazia o que achava mais reto.” E o verso 13, no qual Mica diz “Sei, agora, que o SENHOR me fará bem, porquanto tenho um levita por sacerdote.” E essas são ainda hoje as reações comuns entre comunidades de pessoas que não quer saber da sã doutrina, mas apenas do formato de religiosidade.

Algumas observações que somente ocorrem entre almas vazias que não têm púlpito saudável que as advirta de seu mau caminho:

• A mãe não repreende o filho pelo furto, mas o abençoa usando o nome de Deus;
• O fruto imediato disso foi um ídolo físico. Talvez este fosse a expressão de outro ídolo, quem sabe o próprio filho;
• A ordenação de alguém para figurar como sacerdote, mesmo falso, o filho de Mica;
• A corrupção bem sucedida de alguém que realmente poderia ser um sacerdote;
• A “posse” do sacerdote levita, o que representa dizer que a família dominava a doutrina e a pregação daquele sacerdote.

Não há menção da razão da necessidade do sacerdote levita se já tinham conseguido outro antes. Mas podem ter sido motivados pela linhagem do levita. Em suma, o que temos aqui é uma mistura de fatos e ideias que culminam em alguns princípios reguladores (para um culto é preciso ter fieis, a divindade, o templo e o sacerdote) aliados a deformidades de caráter e de fé. A corrupção do culto começa na mistura de um povo idólatra e inconverso, embora sabedor de alguns princípios, em parceria estreita com um sacerdócio apóstata.

Almas vazias somente deixarão de sê-lo se os púlpitos forem saudáveis. Estes diriam em tal caso que o ídolo era falso, que o primeiro sacerdote era um falso mestre e que o último era um apóstata. Diria também que a comunidade não pode determinar qual a prédica do ministro, e que a mesma deve estar atenta à palavra que sai do púlpito, consultando a Bíblia como os bereanos, mas agasalhando a sã doutrina em seus corações. Diria também a essa comunidade que ela não pode resolver dirigir a fé a quem quer que seja, mas somente o Deus da Bíblia pode receber nosso culto e nossa adoração. Por fim, lembraria a essa comunidade que o sacerdote não lhe pertence, mas é vaso nas mãos de Deus, que o enviou a pregar aos aflitos e a admoestar o Seu povo. E aqui me volto a mais uma advertência de MacArthur:

Tendo incorporado os valores do mundo, o cristianismo em nossa sociedade encontra-se moribundo (…). O escândalo da cruz tem sido sistematicamente removido, de modo que a mensagem se torne mais aceitável aos incrédulos. A igreja, de alguma forma, concebeu a ideia de que pode declarar a paz com os inimigos de Deus (…).
E, quando em cima disso, rockeiros punk, ventrílocos (sic), palhaços, atiradores de facas, lutadores profissionais, levantadores de peso, comediantes, dançarinos, malabaristas, animadores de circo, artistas de rap, atores e celebridades do ‘show business’ assumem o lugar do pregador, a mensagem do evangelho recebe um golpe catastrófico: ‘E como ouvirão, se não há quem pregue?’ (Rm10,14)”.

E eu acrescentaria à lista do autor a lamentável cena que vi há poucos dias na Internet,  em que um grupo de homens dança de cuecas no palco de uma igreja brasileira.

Partindo do exemplo negativo para o positivo, a pregação da sã doutrina é a única esperança para uma alma que esteja esvaziada de esperança, acima de tudo a da salvação. Para isso devemos considerar que o vazio da alma humana deverá ser preenchido pela presença de Deus quando nós, pregadores da Palavra, nos dedicarmos à expressão de um púlpito saudável, para o que deveremos considerar: devemos manter a mensagem bíblica expositiva não as trocando por aquelas que evitam confrontos, na superficialidade de seus interlocutores. Além disso, do púlpito devem sair as exortações e o conforto da Palavra de Deus, e não a intenção de anteder às necessidades percebidas no grupo, nos moldes das teorias analíticas coletivas.

Ainda sobre esse tema, cito Albert Mohler:

A pregação expositiva autêntica requer a apresentação da Palavra de Deus como o objetivo central. O propósito do pregador é ler, interpretar, explicar e aplicar o texto. Portanto, o texto conduz o sermão do começo ao fim. (…).

Exposição verdadeira toma tempo, preparação, dedicação e disciplina. O fundamento da pregação expositiva é a confiança de que o Espírito Santo irá aplicar a Palavra aos corações dos ouvintes. (…) Esse ministério – tão vital para o povo de Deus – está faltando ou foi minimizado em muitas congregações evangélicas.

O debate atual sobre a pregação pode abalar as congregações, as denominações e o movimento evangélico; mas saiba disto: a recuperação e a renovação da igreja nesta geração virão apenas quando, de púlpito a púlpito, o arauto pregar como se nunca fosse pregar novamente, e como um homem morrendo pregando a outros homens morrendo também. 8

 
Com base em tudo isso, só nos resta voltar ao princípio da graça de Deus reservada aos Seus escolhidos, uma vez que nenhum de nós teria, por si só, deixado o seu vazio para a plenitude da Palavra por seus próprios meios. Então, como reconhecer que é possível que Cristo tenha uma multidão reservada para a glória eterna? Uma vez mais: a graça do Senhor. É disso que nos fala de maneira muito lúcida Cornelius van Til em sua obra O pastor reformado e o pensamento moderno. No mesmo trecho ele exalta a graça acolhedora e escolhedora de Deus e condena as tentativas de integrar nossos processos aos planos de Deus, como se deu com Abraão.9

É disso que precisamos para curar o vazio das almas: comprometimento total e absoluto com a sã doutrina e o compromisso com Deus e com a Igreja do Senhor da manutenção de um púlpito saudável.

_______________

NOTAS

1 WASHER, P. (2011). 10 acusações contra a Igreja moderna. São José dos Campos, SP, Brasil: Fiel, p. 95.
2 “Expondo estas coisas aos irmãos, serás bom ministro de Cristo Jesus, alimentado com as palavras da fé e da boa doutrina que tens seguido.”
3  Timóteo 4.1-5: Conjuro-te, perante Deus e Cristo Jesus, que há de julgar vivos e mortos, pela sua manifestação e pelo seu reino: (2) prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina. (3) Pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de mestres segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos; (4) e se recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas. (5) Tu, porém, sê sóbrio em todas as coisas, suporta as aflições, faze o trabalho de um evangelista, cumpre cabalmente o teu ministério.
4  MACARTHUR JR, J. F. (2010). Com vergonha do evangelho: quando a igreja se torna como o mundo. São José dos Campos, SP, Brasil: FIEL, p. 25.
5  Juízes 17.1-13: Havia um homem da região montanhosa de Efraim cujo nome era Mica, (2) o qual disse a sua mãe: Os mil e cem siclos de prata que te foram tirados, por cuja causa deitavas maldições e de que também me falaste, eis que esse dinheiro está comigo; eu o tomei. Então, lhe disse a mãe: Bendito do SENHOR seja meu filho! (3) Assim, restituiu os mil e cem siclos de prata a sua mãe, que disse: De minha mão dedico este dinheiro ao SENHOR para meu filho, para fazer uma imagem de escultura e uma de fundição, de sorte que, agora, eu to devolvo. (4) Porém ele restituiu o dinheiro a sua mãe, que tomou duzentos siclos de prata e os deu ao ourives, o qual fez deles uma imagem de escultura e uma de fundição; e a imagem esteve em casa de Mica. (5) E, assim, este homem, Mica, veio a ter uma casa de deuses; fez uma estola sacerdotal e ídolos do lar e consagrou a um de seus filhos, para que lhe fosse por sacerdote. (6) Naqueles dias, não havia rei em Israel; cada qual fazia o que achava mais reto. (7) Havia um moço de Belém de Judá, da tribo de Judá, que era levita e se demorava ali. (8) Esse homem partiu da cidade de Belém de Judá para ficar onde melhor lhe parecesse. Seguindo, pois, o seu caminho, chegou à região montanhosa de Efraim, até à casa de Mica. (9) Perguntou-lhe Mica: Donde vens? Ele lhe respondeu: Sou levita de Belém de Judá e vou ficar onde melhor me parecer. (10) Então, lhe disse Mica: Fica comigo e sê-me por pai e sacerdote; e cada ano te darei dez siclos de prata, o vestuário e o sustento. O levita entrou (11) e consentiu em ficar com aquele homem; e o moço lhe foi como um de seus filhos. (12) Consagrou Mica ao moço levita, que lhe passou a ser sacerdote; e ficou em casa de Mica. (13) Então, disse Mica: Sei, agora, que o SENHOR me fará bem, porquanto tenho um levita por sacerdote.
6 MACARTHUR JR 2010, p. 94.
7 Disponível em http://is.gd/8cnBnY.
8 MOHLER JR, R. A. (2011). Deus não está em silêncio: pregando em um mundo pós-moderno. São José dos Campos, SP, Brasil: Fiel, p. 142.
9 VAN TIL, C. (2010). O pastor reformado e o pensamento moderno. São Paulo, SP, Brasil: Cultura Cristã, p. 202, 203.

DEIXE UM COMENTÁRIO

Please enter your comment!
Please enter your name here