— Nossa, que lago lindo! Vem ver!
— Olha só, tá todo congelado! Que vista em?!
Ingênuas e ignorantes, as duas garotas observam a vista magnífica de um lago congelado em meio a árvores de um bosque muito antigo. Mal sabiam elas que aquelas águas tranquilas abrigavam cinzas de mulheres e homens que, como muitos nos dias de hoje, foram arrasados, humilhados e perseguidos pelos motivos mais banais e injustos e pelos meios mais cruéis que o ser humano poderia conceber.
Vista do lago com o vilarejo de Furstenberg ao fundo
O lugar fica a 90 km de uma das maiores e mais importantes capitais do mundo, Berlim. Também fica próximo de um pequeno vilarejo medieval chamado Fürstenberg, visível na foto. Quem está longe (do Brasil, por exemplo) nem imagina o que aquelas terras abrigam.
Olha só… é realmente lindo não é mesmo? E assim como o lago e sua tênue superfície congelada, também é bela e delicada a ignorância. Muitos pensam, no conforto de suas existências, que esta é uma dádiva; que a melhor coisa é nem ficar sabendo; que detalhes são para os sádicos.
Mas a história é egoísta. Ela quer atenção. Está sempre a pedir por ela, assim como seus agentes humanos. E não só isso, ela também é estridente. Grita, o tempo todo. Seus personagens, suas causas, suas consequências, todos estão inevitavelmente batendo às portas de quem quer que seja, sempre sem pedir licença. Porque a história é o presente.
O que aconteceu em Ravensbrück também aconteceu hoje em cidades na Índia, em um beco de Salvador, nas inocentes casas de classe média, durante reuniões familiares em alguma cidade grande. Diariamente Ravensbrück se repete. Encontra-se em um olhar, nas palavras ou em atitudes concretas. Ravensbrück não é um endereço, um pedaço da história, algo a ser lembrado para jamais se repetir. Ravensbrück jamais cessou. Existiu antes de receber esse nome e continua a atormentar depois, com disfarces diferentes.
Duas horas depois de deixar a estação de trem em Berlim, chegamos a cidade que abriga um dos campos de concentração mais próximos da capital. Na neve e no frio, caminhamos cerca de dois quilômetros até o campo. Eu usava mais de três camadas de roupas especiais para o frio negativo e botas de neve. Mesmo assim podia sentir o gelo subindo pelas pernas. “Mantenha isso em mente”, eu pensei, “aí você vai entender o que aquelas pessoas passaram usando apenas um pijama listrado”. Quanta ingenuidade.
Quando entramos pelos portões de Ravensbrück, meu primeiro pensamento foi: “isso aqui não é campo de concentração, está parecendo mais uma pousada”. O que eu via (e fui saber depois) eram as casas dos antigos oficiais da SS. Em estilo parecido com chaimel, elas eram enormes e ficavam um pouco acima dos outros edifícios, como no topo de um vale (a hierarquia deveria ser perceptível sempre).
O guia que nos conduz explica tudo em alemão. Peço a tradução em inglês e acabo recebendo o resumo do resumo daquilo que foi passado originalmente. “Ok, vou pesquisar mais depois”. Mas o que descubro a cada momento é que as palavras jamais seriam suficientes.
Casa de um dos oficiais de alto escalão da SS, responsáveis pelo campo.
“Aqui era onde começava a degradação daquelas mulheres”, disse o guia.
As palavras chegam aos meus ouvidos como flechas. Depois delas, não consigo mais me apegar ao mesmo sentido de realidade que era tão presente antes. O campo serviu na maior parte do tempo como área de detenção exclusiva para mulheres e crianças, a não ser por certos períodos em que também alojou homens.
“Em uma época em que se despir na frente das filhas era incomum e vergonhoso, essas mulheres foram obrigadas a tirar toda a roupa publicamente para médicos, enfermeiras e soldados. Elas eram inspecionadas sem nenhum pudor e, ao menor vestígio de piolhos ou outro tipo de doença, seus cabelos eram completamente raspados. A seguir, eram destituídas de seus nomes e recebiam apenas um número, resumindo sua insignificante existência para o Estado nazista”.
Eu estou ali. Meus pés tocam o chão que aquelas mulheres um dia buscaram desesperadamente com os olhos para tentar esconder sua vergonha e aflição. Meus pés com botas de neve tocam o chão que os pés descalços daquelas meninas pisaram há apenas alguns anos atrás.
Caminhamos mais um pouco e, lentamente, vamos desvendando os edifícios remanescentes dessa terrível época.
Um dos edifícios remanescentes; servia como alojamento.
Celas, equipamentos de punição, utensílios diários, roupas. E o crematório.
Já no fim de sua aula, o guia nos informa que poderemos visitar aquele local, mas que ele não irá entrar ali. Se despede após responder algumas perguntas e vai embora caminhando.
Nesse momento minha mente sai um pouco da tristeza e do passado, pois o frio é tão intenso que me preocupo com meus pés (ficamos lá fora parados durante 20 minutos enquanto o guia dava as últimas palavras). Enquanto saio correndo em busca de um lugar mais quente, a lembrança da minha “ideia” vem à mente. Como fui tonta ao achar que poderia ter a mínima noção do frio ou qualquer outra circunstância e sensação que aqueles seres humanos passaram.
Nem o frio extremo que sinto agora me aproxima do que elas enfrentaram. Nem de longe.
Na falta de uniformes, as prisioneiras recebiam roubas civis marcadas com um grande X.
Estamos na prisão especial. O edifício era usado para deter as prisioneiras mais “importantes” do campo, como Olga Prestes, por exemplo. Lá também aconteciam os castigos corporais e isolamentos. As mulheres que foram levadas para lá eram as que recebiam a maior atenção.
Hoje, cada uma das celas remanescentes serve como espaço de homenagem e memória para diferentes países e grupos (ciganos, judeus, polonesas, francesas, etc.) que foram mantidos no local. No total, Ravensbrück chegou a reunir pessoas de mais de 40 nacionalidades diferentes.
Voltamos para o lado de fora e procuramos o crematório. Foi nesse momento que a sensação de irrealidade foi arrebatadora. Lá estavam três fornos de cremação que não foram destruídos. Havia flores e outras homenagens. Eu tentava imaginar o que aquelas paredes já teriam visto e ouvido. Impossível, inconcebível.
Além disso tudo, o campo também serviu como local para experimentos “médicos”, esterilizações involuntárias (muitas vezes em meninas de apenas seis anos de idade, com a aplicação de Raio-X diretamente em suas genitálias), trabalho escravo para diversas empresas (hoje multinacionais bilionárias, como Siemens, Allianz e Volkswagen) e os projetos de eutanásia coletiva em câmeras de gás.
Em seus tempos mais sórdidos, chegou a abrigar quase cinco vezes a capacidade total. Os cálculos de quantas pessoas passaram por ali e quantas morreram jamais serão precisos, pois o exército nazista tentou eliminar o máximo de registros possível. Estima-se, porém, que mais de 140 mil mulheres foram concentradas ali e cerca de 40 mil tenham morrido, seja por execução, doenças, exaustão ou desnutrição.
Gravura do crematório feita por uma ex-prisioneira. Em exposição em uma das celas especiais.
Hoje em dia, o local é utilizado como museu e também como um ponto de encontro anual para sobreviventes da guerra que foram mantidas cativas em Ravensbrück.
Volto para Berlim e não consigo parar de pensar no que vi. Faço mais pesquisas e descubro coisas que preferia não saber sobre o local que visitei (a dádiva da delicada ignorância). O oficial da SS que beijava seus filhos antes de dormir, a apenas alguns metros de distância das prisioneiras, era o mesmo que mandava os filhos delas para o crematório, câmaras de gás e alas de experimentos. O poder de ter a vida de outra pessoa em suas mãos é como um veneno.
As ruínas de Ravensbrück (e tantos outros locais como esse) são como cicatrizes persistentes. Quando visitei esse campo, no primeiro semestre de 2013, ainda não havia passado por certas experiências que, três anos mais tarde, me fariam ver a história com olhar totalmente diferente.
Quando escrevi o relato acima, não poderia imaginar que as imagens, cheiros e sons me seguiriam para sempre. É impossível esquecer ou ignorar. São lembretes assustadores da perversidade do ser humano e sua habilidade para o mal.
Cada pedaço de Ravensbrück é um chamado à reflexão. Com o novo ano que se inicia, volto com especial dedicação ao lago silencioso e belo, que esconde em suas águas a morte de milhares de vítimas. Quanto silêncio é necessário para que se perpetue a injustiça? A terra da Reforma Protestante, berço de homens e mulheres brilhantes e piedosos, também foi palco para o maior horror que a modernidade conhece. Outro Lutero, não o alemão, mas sim o pastor norte-americano Martin Luther King, disse “o que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”. Para mim, essa frase sempre soou um pouco estranha, paradoxal. Como os bons podem se calar?
Dois dos três fornos utilizados para cremação das prisioneiras
Ao olhar para os pecados do passado, para as ruínas das injustiças e barbaridades cometidas pelos nazistas, me pergunto onde estavam os cristãos. Onde estavam os filhos de Deus? Estariam calados, escondidos por seu silêncio e obediência? Seriam eles realmente ignorantes das atrocidades cometidas a alguns metros de suas casas? É possível ler sobre a libertação de diversos campos de concentração e extermínio, quando os soldados aliados obrigavam as populações alemãs dos vilarejos vizinhos a visitarem os campos e presenciarem as violências até então cometidas, inclusive cavando covas coletivas para os corpos insepultos abandonados às pressas pelo exército alemão.
Podemos, sim, nos revoltar com essas pessoas. Acusá-las de seus pecados e nos sentirmos até mesmo satisfeitos com nós mesmos, pois sabemos que jamais seríamos capazes de tamanha desfeita. Será que podemos?
“Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês edificam os túmulos dos profetas e adornam os monumentos dos justos.
E dizem: ‘Se tivéssemos vivido no tempo dos nossos antepassados, não teríamos tomado parte com eles no derramamento do sangue dos profetas’.
Assim, vocês testemunham contra si mesmos que são descendentes dos que assassinaram os profetas.” (Mateus 23:29-31)
Ao tomar tal atitude, a da condenação das gerações passadas e autoafirmação de nossa boa índole, nos juntamos ao coro de fariseus e mestres da lei. Confiamos em nossos próprios corações de que jamais, jamais, cometeríamos tais atos abomináveis. Não tenha tanta certeza. Ao ser humano, basta a oportunidade. Nossa disposição ao mal é tal, que bastaria a desculpa certa para cometermos pecados ainda maiores contra Deus e sua criação.
Ravensbruck e o vilarejo de Furstenberg nunca mais se livrarão do lago e de suas cinzas. Quais são as cinzas e os lagos (ou até mesmo pequenas poças d’água) que temos deixado acumular em nosso presente? Em sua soberania, Deus escolheu o século 21, com suas próprias mazelas e tragédias, para que vivêssemos nele. Ninguém mais pode apelar para a bendita ignorância. Se em menos de cinco minutos recebemos na palma da mão as notícias de cidades do outro lado do mundo, sem a necessidade de interlocutores como a imprensa formal ou o Estado para nos informarem, como poderemos dizer para as gerações futuras que “não sabíamos”?
– Em 2014, mais de 58,5 mil pessoas foram assassinadas no Brasil. 160 por dia. 1,4 Carandirus por dia. (Anuário Brasileiro de Segurança Pública).
– De acordo com a Organização Mundial da Saúde, somos a nação com maior número absoluto de homicídios no mundo; a cada 100 assassinatos, 13 ocorrem em solo brasileiro.
– As capitais brasileiras registram um assassinato a cada meia hora.
– Em 10 anos, o número de suicídios no Brasil cresceu 33,6%. Em comparação, o aumento da população cresceu apenas 11,1%.
– O Brasil tem cerca de 50 mil estupros registrados por ano. Em 2014, uma mulher foi violentada a cada quatro minutos. Na maioria dos casos, as vítimas têm menos de 18 anos.
E esses são apenas alguns dos muitos números de violência e injustiça cometidos apenas no Brasil. Se enxergarmos um pouco mais longe, veremos dados ainda mais alarmantes, como esse:
– De acordo com o Instituto Guttmacher, desde 1973 mais de 53 milhões de abortos legais foram feitos nos EUA. 21% de todas as gravidezes acabam em abortos nos Estados Unidos.
E há quem considere essa como a “nação mais cristã do mundo”.
Pagamos muito caro por nosso silêncio. As vítimas diretas da violência e do aborto não são as únicas a sofrer pela injustiça. O preço cobrado pelo pecado é morrer aos poucos, todos os dias, presenciando a podridão da nossa vida enquanto nos enchemos de bens e acreditamos que está tudo bem, já que essa é a vida do vizinho e também do irmão da igreja. Para hipócritas e fariseus, Jesus não mediu palavra alguma:
“Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês são como sepulcros caiados: bonitos por fora, mas por dentro estão cheios de ossos e de todo tipo de imundície. Assim são vocês: por fora parecem justos ao povo, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e maldade.” (Mateus 23:27,28)
E ainda:
“Serpentes! Raça de víboras! Como vocês escaparão da condenação ao inferno? E, assim, sobre vocês recairá todo o sangue justo derramado na terra, desde o sangue do justo Abel, até o sangue de Zacarias, filho de Baraquias, a quem vocês assassinaram entre o santuário e o altar.” (Mateus 23:33 e 35)
É impossível conciliar o silêncio dos que se acham ou são considerados bons com as palavras de Jesus no capítulo cinco de Mateus.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão satisfeitos.
Bem-aventurados os misericordiosos, pois obterão misericórdia.
Bem-aventurados os puros de coração, pois verão a Deus.
Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus.
Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, pois deles é o Reino dos céus.
Bem-aventurados serão vocês quando, por minha causa os insultarem, perseguirem e levantarem todo tipo de calúnia contra vocês.
Alegrem-se e regozijem-se, porque grande é a recompensa de vocês nos céus, pois da mesma forma perseguiram os profetas que viveram antes de vocês.
Vocês são o sal da terra. Mas se o sal perder o seu sabor, como restaurá-lo? Não servirá para nada, exceto para ser jogado fora e pisado pelos homens. Vocês são a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade construída sobre um monte. E, também, ninguém acende uma candeia e a coloca debaixo de uma vasilha. Pelo contrário, coloca-a no lugar apropriado, e assim ilumina a todos os que estão na casa. Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que está nos céus”. (Mateus 5:6-16)
Se é caro o preço do silêncio, quão infinitamente maior foi o preço pago por Cristo para que pudéssemos ser chamados de bem-aventurados. Qual autoridade, consideração ou argumento poderíamos tentar sustentar para continuarmos em silêncio diante de todos esses fatos?
Memorial de Ravensbrück
Seja contra a violência e corrupção generalizada ou contra o falso evangelho, que o silêncio seja quebrado pelos cristãos em 2016. Pela graça e misericórdia de Deus, sejamos sal e luz, pois já somos bem-aventurados se estamos em Cristo.
“Mostra-nos, Senhor, a tua misericórdia, e concede-nos a tua salvação. Escutarei o que Deus, o Senhor, falar; porque falará de paz ao seu povo, e aos santos, para que não voltem à loucura. Certamente que a salvação está perto daqueles que o temem, para que a glória habite na nossa terra. A misericórdia e a verdade se encontraram; a justiça e a paz se beijaram. A verdade brotará da terra, e a justiça olhará desde os céus. Também o Senhor dará o que é bom, e a nossa terra dará o seu fruto. A justiça irá adiante dele, e nos porá no caminho das suas pisadas.” (Salmos 85:7-13)
parabéns pela bela mat‚ria.
Resta nos acordar para ver que o brasil precisa de nós
Belíssima reflexão.