O pacifismo é a resposta bíblica à violência e ao terrorismo?

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Introdução

O dia 13 de Novembro de 2015 vai ficar marcado no calendário e na memória não só da  França mas também de uma Europa que se vai percebendo cada vez menos segura. Num atentado realizado pelo Estado Islâmico em Paris e Saint-Denis, fruto de fuzilamentos em massa e de três explosões, morreram 130 pessoas.

Do outro lado do hemisfério é quinta-feira, 25 de Agosto de 2016, e é chegado o fim de mais um dia de aulas e pouco falta para o tão desejado fim de semana de qualquer criança que vá à escola. No entanto, para um menino de 10 anos esse fim de semana afigurava-se como o mais negro de sua vida até então, pois nesse mesmo dia a sua mãe, que ia buscá-lo no colégio, nem chegou a sair do carro. Cristine Fagundes, de 44 anos, foi brutalmente assassinada dentro do carro em frente ao colégio do filho em Porto Alegre, Rio Grande do Sul (Brasil).

Histórias reais como essas, carregadas de violência e que espalham o terror e a insegurança, são imensas e encontram-se espalhadas pelo mundo. Ondas de violência estão presentes pelo mundo, desde os ataques terroristas a que a Europa tem sido sujeita no último ano, às elevadas taxas de homicídios na América Latina (25 em 100.000 pessoas são assassinadas por ano).1

Diante de tanta violência, o medo cresce e a insegurança também. Paz, proteção, segurança, justiça são desejos profundos de qualquer ser humano, mais ainda do cristão. Por isso, certos temas começam a ser desenterrados por parte de quem deseja que atitudes concretas sejam tomadas para que haja mais proteção e paz, para que nações sejam protegidas de ataques exteriores e para que maior segurança seja encontrada nos lares, ruas e estabelecimentos públicos. Pretende-se, neste artigo, abordar assuntos que na sociedade em geral, e nas igrejas evangélicas, têm estado enterrados e que se tornaram tabu. É imperativo, no entanto, que o cristão tenha uma perspetiva bíblica desses mesmos assuntos.

Neste sentido procurar-se-á perceber como o cristão, que se vê confrontado com todo este terror e que valoriza conceitos como amor, justiça e dignidade humana, deve pensar, à luz da Bíblia, sobre o papel do governo civil, a guerra, a pena de morte, as orações imprecatórias e a auto-defesa. O cristão pode fazer uso de orações imprecatórias? Porte de arma não faz aumentar a criminalidade? Pena de morte não estava só em vigor no Antigo Testamento? O cristão pode envolver-se numa guerra do seu país? Estas e outras questões, que geralmente são levantadas, serão tratadas, de forma introdutória, no presente artigo.

1. O dever dos governos

Uma das passagens mais longas nas Escrituras sobre a autoridade dos governos humanos encontra-se em Romanos 13.1-7:

“Todos devem sujeitar-se às autoridades do governo, pois não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram ordenadas por ele. Por isso, quem recusa sujeitar-se à autoridade opõe-se à ordem de Deus, e os que fazem isso trarão condenação sobre si mesmos. Porque os governantes não são motivo de temor para os que fazem o bem, mas sim para os que fazem o mal. Não queres temer a autoridade? Faz o bem e receberás o louvor dela. Porque ela é serva de Deus para o teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, pois não é sem razão que ela traz a espada, pois é serva de Deus e agente de punição de ira contra quem pratica o mal. Por isso é necessário sujeitar-se a ela, não somente por causa da ira, mas também por causa da consciência. Por essa razão também pagais imposto; porque eles são servos de Deus, para atenderem a isso. Dai a cada um o que lhe é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem temor, temor; a quem honra, honra.”

Wayne Grudem destaca seis ideias que podem ser retiradas da passagem.2

1)    A autoridade governamental foi ordenada por Deus.
2)    Os governos têm autoridade para punir o mal, sendo assim temidos por quem o pratica.
3)    Os que fazem o bem recebem a aprovação das autoridades.
4)    Os funcionários do governo são servos de Deus.
5)    O governo demonstra bom trabalho quando realiza o mesmo: punição do mal e louvor da prática do bem.
6)    O governo aplica a ira de Deus sobre o que pratica o mal quando o pune, assim o governo é um agente de Deus para a punição do mal.

Além de Paulo, o apóstolo Pedro também afirma que é dever das autoridades punir quem faz o mal e honrar quem faz o bem: “Sujeitai-vos a toda autoridade humana por causa do Senhor, seja ao rei, como soberano, seja aos governadores, como por ele enviados para punir os praticantes do mal e honrar os que fazem o bem.” (1 Pedro 2.13-14).

Estes princípios de justiça e de proteção dos mais fracos também podem ser encontrados no Antigo Testamento, como em Gênesis 9.5-6, Salmos 82.2-4, Daniel 4.27 e Eclesiastes 8.11.

Vemos assim que o governo de um país deve procurar manter a segurança e a paz dos seus cidadãos, procurando refrear toda a criminalidade, conforme afirma Calvino:

“Vemos, pois, que os magistrados são constituídos como tutores e mantenedores da tranquilidade, da ordem, da moralidade e da paz pública (Romanos 13.3), e que devem ocupar-se do bem-estar e da paz comum. (…) Por isso, estão revestidos de autoridade para reprimir e punir rigorosamente aos malfeitores cuja maldade perturba a paz pública.”3

2. Guerra

Uma vez que o governo tem a responsabilidade de proteger os seus cidadãos de criminosos dentro do seu próprio território, também tem o dever de proteger as vidas dos seus cidadãos de ameaças exteriores. Nesse sentido, afirma Grudem, o governo tem a responsabilidade moral de se defender de ataques estrangeiros que pretendam conquistar e subjugar a nação.4

John MacArthur também afirma que Deus deu aos governos humanos o direito de entrarem em guerras em casos de auto-proteção e como meios de justiça. Nas Escrituras, a guerra não é retratada como inerentemente má ou imoral. Mas existem momentos em que Deus autoriza ou tolera a guerra para fins de justiça.5

A guerra não é algo desejável, mas por vezes é necessária e inevitável. Muitas vezes, quando negociações e acordos diplomáticos não são suficientes, com o fim de se evitarem danos graves, não resta outra opção a não ser tentar travar, através de uma guerra, quem quer causar o mal.

Há quem argumente que a guerra é sempre moralmente errada e que é igualmente imoral que um cristão use de força militar para participar num combate militar. Opiniões como estas são defendidas pelos pacifistas. Grudem alista quatro argumentos principais usados pelos pacifistas cristãos,6 e acrescentaremos aqui mais um, os quais procuraremos refutar:7

1) Jesus ordenou que déssemos a outra face (Mateus 5.39). No entanto a passagem não se refere ao governo civil. A ideia da passagem está relacionada com a vingança pessoal. O cristão não deve retaliar, deve deixar a vingança nas mãos de Deus. Neste sentido, Deus instituiu, como já vimos, o governo para punição de quem pratica o mal. Cabe então ao governo punir a pessoa e o cristão pode recorrer aos meios legais para que tal aconteça, mas sem dar espaço para vingança pessoal.

2) Jesus ordenou que amássemos o nosso próximo como a nós mesmos (Mateus 22.39). Na verdade Jesus está a citar Levítico 19.18, do Antigo Testamento, mandamento esse que se encontra a par de orientações para a guerra no conjunto de livros do Pentateuco. Grudem conclui então que uma orientação não anula a outra e dá o exemplo de Davi que enviou o seu exército para vencer Absalão em 2 Samuel 18.1-33, mesmo amando-o tinha de proteger o reinado que Deus lhe tinha confiado. Na verdade, afirma também Grudem, se amamos de fato o nosso próximo iremos para a guerra a fim de protegermos as pessoas que amamos.8

3) Participar de uma guerra significa falta de confiança na soberania de Deus. Confiar em Deus é confiar na autoridade que Deus deu aos governos humanos, como o uso da força letal para travar o mal (Romanos 13.1-4). Além disso, seguir a linha desse argumento deveria levar-nos a deixar de trabalhar para comermos, pois deveríamos confiar na provisão de Deus.9 No entanto, o apóstolo Paulo diz em 2 Tessalonicenses 3.10-12:

“Quando ainda estávamos convosco, vos ordenamos que se alguém não quer trabalhar, também não coma. Porque ouvimos dizer que alguns entre vós vivem desocupados, não querem trabalhar e se intrometem na vida alheia. A esses, porém, ordenamos e exortamos por nosso Senhor Jesus Cristo que, trabalhando em paz, consigam o próprio pão.”

4) Violência gera mais violência. Nessa afirmação estão contidos dois tipos diferentes de violência, uma imoral e outra moral, sendo que esta tenta travar aquela. Polícias usam de violência para se poder travar violência nas ruas, de igual forma faz-se necessário o uso da guerra para travar o mal.10

5) Toda a vez que se tira a vida de alguém está a cometer-se uma violação do mandamento “Não Matarás” (Êxodo 20.13). No entanto, esse é um erro de interpretação do texto. A ideia do mandamento é “Não assassinarás”. Geisler coloca muito bem quando afirma: “Todo ato de matar envolve tirar uma vida, mas nem todo ato de tirar uma vida é assassinato. De fato, a pena de morte é ordenada por Deus no próximo capítulo do livro de Êxodo (21.12).”11

Grudem afirma brilhantemente que “A lógica do pacifismo leva, em última análise, a uma rendição total diante do mais perverso dos governos, o qual não parará por nada de modo a usar o seu poder para oprimir outros.”12

Neste sentido, o cristão não deve seguir pela via do pacifismo. Ele é chamado a ser um pacificador (Mateus 5.9), ou seja, um promotor da paz, o que é muito diferente do pacifismo, porque infelizmente o preço da paz por vezes é a guerra.

Para que o indivíduo tenha paz com Deus Jesus teve de perder a sua vida, além de que também não há salvação sem que primeiro haja uma confrontação com os pecados do pecador e uma necessidade de arrependimento. O cristão, para viver, tem de primeiro morrer para si mesmo. Em tudo isto há tensão. O caminho da paz não é o pacifismo, é a luta pelo bem, o que muitas vezes implica o uso da força para se travar o mal.

Assim sendo, guerras que visem a auto-proteção de uma nação e a busca da justiça são legítimas e o cristão pode participar nelas.

3. Pena de morte

Como vimos, é dever do governo proteger os seus cidadãos da violência e criminalidade dentro das suas fronteiras e também de ataques exteriores. Uma das formas de reduzir a criminalidade, nomeadamente os homicídios, é dando valor à vida humana. Por mais paradoxal que pareça, a forma de atribuir mais valor à vida humana é punindo o homicídio com a pena capital.

Gênesis 9.5-6 é um texto-chave na compreensão dessa ideia:

“Certamente cobrarei o vosso sangue, o sangue da vossa vida; eu o cobrarei de todo animal, como também do homem; sim, cobrarei da mão de cada um a vida do seu próximo. Quem derramar sangue de homem, terá o seu sangue derramado pelo homem, porque Deus fez o homem à sua imagem.”

Uma das indicações que Noé e a sua descendência recebem após saírem da arca foi essa. A consequência para quem tirasse a vida ao seu semelhante era pagar com a própria vida. O motivo? Deus fez o homem à sua imagem. O valor da vida humana tem valor tal que a punição de se tirá-la é a pena de morte: “O próprio fato de Deus atribuir um valor tão elevado ao ato de tirar outra vida humana nos mostra o grande valor que ele atribui às nossas vidas. A pena de morte é o maior elogio que pode ser feito à dignidade humana;”13

Tal orientação tem origem em Deus e é dada antes da Lei Mosaica, por isso não é uma lei só para Israel, mas é um princípio para qualquer governo, coadunando-se com a autoridade que Deus atribuiu aos governantes, os quais devem trazer consigo a espada, conforme refere Paulo em Romanos 13.1-7. Pelas Escrituras, fica assim “evidente que todo o governo, mesmo aqueles que não têm nada a ver com o governo teocrático especial de Israel, recebeu a autoridade divina para tirar a vida de um de seus cidadãos, quando este for culpado de uma ofensa capital”, conforme afirma Norman Geisler.14

No texto de Romanos, a palavra grega para “espada” é μάχαιρα, a qual é usada em outras passagens que falam da espada como instrumento para tirar a vida (e.g. Atos 12.2; Atos 16.27; Hebreus 11.37; Apocalipse 13.10). Vários versículos do Antigo Testamento, na tradução da Septuaginta, também usam a mesma palavra (e.g. Deuteronômio 13.15; 20.13).15

Grudem afirma o seguinte:

“Quando Paulo diz que o governo civil em geral está autorizado a ‘carregar a espada,’ ele quer dizer que lhe foi dada a autoridade por parte de Deus para usar a espada para se alcançar o propósito que as pessoas do primeiro século tinham, o de matar pessoas.”16

A aplicação da pena capital cabe ao governo. Não se trata de um ato de vingança pessoal por parte de um membro da família lesada, pois isso é condenável pelas Escrituras, mas trata-se de um ato de punição aplicado pelas autoridades competentes, a quem se deve recorrer para que justiça seja feita.

Por um lado, o cristão é chamado a demonstrar amor e orar pela salvação eterna de quem lhe fez mal, mas por outro é chamado a buscar a justiça junto dos tribunais civis de modo a que haja uma retribuição justa do mal cometido contra ele.17 Desejar que Deus faça justiça (e uma forma de Ele o fazer é através das autoridades que ele ordenou) não implica em não perdoar, não amar o próximo nem em demonstração de vingança pessoal. A vivência de todas essas realidades simultaneamente não é incoerente.

Assim, o cristão que valoriza a dignidade da vida humana como Deus o faz, é favorável à aplicação da pena de morte em casos em que vidas são tiradas premeditadamente, como um meio de   homicídios serem refreados: “todo o povo temerá e nunca mais se comportará com arrogância.” (Deuteronômio 17.13).18

4. Orações imprecatórias

Temos visto o dever do governo à luz das Escrituras e por implicação, aquilo que o cristão deve crer e fazer. O cristão, como vimos, deve desejar que justiça seja aplicada por Deus (Romanos 12.19), e por conseguinte pelas autoridades civis (Romanos 13.1-7); ao mesmo tempo é chamado a não ceder à tentação de incorrer em vinganças pessoais (Romanos 12.19; Mateus 5.38-39); é chamado a amar o próximo (Levítico 19.18; Mateus 22.39), incluindo o seu inimigo, orando por ele (Mateus 5.44) e dando-lhe de comer quando este tiver fome e dando-lhe de beber quando tiver sede (Romano 12.20).

Ao mesmo tempo que o cristão ora e está disponível a ajudar um inimigo em necessidade, ele deseja que todo o mal seja erradicado. Nesse sentido podemos encontrar os salmos imprecatórios, os quais são orações dirigidas a Deus que pedem que justiça seja feita e aplicada sobre os inimigos do salmista, que são os do Senhor também.

Será que os cristãos podem orar os salmos imprecatórios? Não são eles vingativos, violentos e apenas para o Antigo Testamento? Será que se encaixam na ética do Novo Testamento?

Ao olhar para atos hediondos cometidos por homens, para homicídios que tanta dor trazem a quem perdeu um ente querido, ou para o Estado Islâmico que quer impor o terror na civilização ocidental o cristão pergunta “Até quando Senhor?”. O cristão sabe que Deus é santo e justo e, pela sua nova natureza, almeja santidade e justiça, e assim repudia todo o mal. O cristão deseja que o Senhor aplique a sua justiça nestas situações e naqueles que as praticam. É nesse sentido que encontramos os salmos imprecatórios (Salmos 7; 12; 35; 58; 59; 69; 70; 83; 109; 137; 140).

Nesses salmos podemos encontrar expressões fortes como “Ó Deus, quebra-lhes os dentes da boca” (Salmos 58.6) ou “Filha da Babilônia, que serás destruída; feliz aquele que te retribuir o mal que fizeste a nós; feliz aquele que pegar teus filhos e esmagá-los contra a pedra.” (Salmos 137.8-9). Devido a frases como essas, Héber Campos Jr. refere que alguns afirmam que são expressões pecaminosas dos salmistas, ou então correspondem a uma ética que era apenas do Antigo Testamento e não do Novo. No entanto Jesus usa esse tipo de linguagem também, referindo-se aos fariseus em Mateus 23.14, 29-36.19

Os salmos imprecatórias são orações, não são planos ou intenções de vingança, até porque a vingança pessoal é condenada no Antigo Testamento (Levítico 19.18), e a pessoa devia deixar a vingança nas mãos do Senhor (Deuteronômio 32.35). A oração imprecatória é o derramar do coração do salmista diante de Deus face a pessoas que praticam atrocidades, é a expressão do desejo que Deus faça justiça. Encontramos nessas orações uma linguagem fortemente emocional que se deve à angústia fruto daquilo que o salmista contempla e vive.

Até no céu, os redimidos, em quem já não há pecado, conforme nos relata o Apocalipse, oram a Deus por justiça:

“Quando ele abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as almas dos que haviam sido mortos por causa da palavra de Deus e do testemunho que deram. Eles clamaram em alta voz, dizendo: Ó Soberano, santo e verdadeiro, até quando aguardarás para julgar os que habitam sobre a terra e vingar o nosso sangue? Cada um deles recebeu túnicas brancas e lhes foi falado que repousassem ainda por um pouco mais de tempo, até que se completasse o número de seus conservos e seus irmãos que haveriam de ser mortos, assim como eles também haviam sido.” (Apocalipse 6.9-11).

O pecado é uma afronta à santidade, à glória de Deus e a todo o bem que procede da boa mão de Deus, por isso é natural que o cristão, ao ver o pecado se alastrar, fique indignado e clame pela intervenção divina.

O cristão pode e deve orar para que o Senhor faça justiça, para que o Senhor trave o mal e quem o pratica, ao mesmo tempo que ora para que o Senhor conceda a graça do arrependimento a essas pessoas, da mesma forma que o salmista orou pela conversão dos seus inimigos (Salmos 83.16-18). Aí se casam o desejo e oração por justiça e punição de quem pratica a maldade, e o amor pelos inimigos que Jesus pede dos seus discípulos:

“as imprecações não são contrárias ao ensinamento de Jesus. Gordon Fee e Douglas Stuart fazem uma distinção entre a prática do amor e sentir amor. É o que você faz por alguém, não o que você sente por alguém que determina o seu amor. Cristo nos exortou a praticar o amor, não sentir amor. É lícito expressarmos nossa ira diante de Deus e ainda continuar a praticar amor para com os nossos inimigos.”20

Há algo de errado quando o cristão não se sente transtornado com a injustiça e não vai ao Senhor em oração pedindo a sua intervenção: “Devemos lamentar a violência e as injustiças recorrentes em nosso país. E tal lamento deve ser acompanhado de um anseio por correção e por castigo. Na verdade, a ausência do anseio próprio de imprecações é sinal de indiferença para com o pecado e para com a justiça divina.”21

Na verdade, quando o cristão, usando a oração que o Senhor Jesus ensinou, ora “Venha o Teu Reino, seja feita a Tua Vontade” (Mateus 6.10) está a pedir que o Reino de Deus avance e que, por conseguinte, o mal seja destruído, conforme afirma o Catecismo de Heidelberg (1563) na resposta à pergunta 123:

“’Venha o teu reino’. Quer dizer: Governa-nos por tua palavra e por teu Espírito, de tal maneira que, cada vez mais, nos submetamos a Ti; conserva e aumenta tua igreja; destrói as obras do diabo, e todo poder que se levanta contra Ti, e todos os maus planos que são inventados contra tua santa Palavra; até que venha a plenitude de teu reino, em que Tu serás tudo em todos.”

O mesmo acontece quando o cristão ora pedindo que o Senhor Jesus volte (Apocalipse 22.20), ele está a pedir que o bem seja finalmente consumado e o mal plenamente erradicado, o que implica que o julgamento final aconteça e que os ímpios sejam condenados.

As orações imprecatórias moldam a ira do cristão. O cristão é educado a levar a sua indignação, diante da maldade que vê e sofre, ao Senhor. Ele está a ser moldado pela verdade de que a vingança pertence ao Senhor, e a ele cabe amar e proclamar o Evangelho. Desejo e clamor por justiça, assim como demonstração de amor e misericórdia podem andar de mãos dadas na vida do cristão desde que cada uma esteja no seu devido lugar.

5. Auto-defesa e porte de arma

Um dos direitos universais do homem é o direito à vida, à liberdade e à propriedade. Pelas Escrituras fica claro que a responsabilidade do governo deve tentar lutar por esses direitos dos seus cidadãos, garantindo-lhes proteção e punindo o mal, de forma que atos criminosos sejam refreados e punidos. No entanto, os oficiais de segurança pública não conseguem estar em todo o lado a toda a hora e assaltos, homicídios e ataques terroristas continuam a acontecer.

Neste sentido, uma das formas de um governo permitir que a pessoa veja a possibilidade dos seus direitos salvaguardados é dando-lhe a possibilidade de se defender a si mesmo, à sua família e às suas propriedades, através de porte de arma.

Mas não será que Jesus proibiu a auto-defesa ao afirmar que devemos “dar a outra face” (Mateus 5.38-39)? Como vimos, Jesus está a ensinar sobre a vingança pessoal, não sobre auto-defesa.

No Antigo Testamento podemos encontrar ensino sobre auto-defesa:

“’Se um ladrão for pego arrombando uma casa, e for ferido mortalmente, aquele que o feriu não será culpado de derramar sangue; mas, se o sol já tiver nascido, aquele que o feriu será culpado de derramar sangue. O ladrão dará plena indenização. Se não possuir nada, será vendido por seu roubo.” (Êxodo 22.2-3)

O texto mostra que “uma ameaça à nossa vida deve ser reprimida com força letal.”22 O que acontece em muitos países é que a possibilidade de defesa é completamente desproporcional, e por isso injusta. No Novo Testamento encontramos Jesus a encorajar os discípulos a arranjarem os meios para poderem se proteger:

“Disse-lhes então: Mas agora, quem tiver sacola, pegue-a, como também a bolsa de viagem; e quem não tiver espada, venda o seu manto e compre uma. Pois vos digo que se deve cumprir em mim o que está escrito: E foi contado com os transgressores. Pois o que me diz respeito já está para se cumprir. Eles disseram: Senhor, temos aqui duas espadas. Ele lhes respondeu: É o bastante.” (Lucas 22.36-38).

Os discípulos que não tivessem uma espada deveriam vender o manto e comprar uma. Alguns interpretam as espadas de forma figurada, representando as armas espirituais, no entanto a sacola, a bolsa de viagem, as sandálias (v. 35) e as duas espadas que eles lhe trazem são literais. No final, quando Jesus diz que “É o bastante”, está a dizer que duas espadas são suficientes para eles se defenderem.

Jesus tinha advertido os discípulos a não propagarem o evangelho através do uso da espada (Mateus 26.52), mas por outro lado, como afirma Norman Geisler:

“Se, por motivos religiosos, Jesus rejeitou as espadas, pode-se assumir que, por motivos civis, Jesus as incluiu. Em outras palavras, espadas não são armas válidas para travar batalhas espirituais, mas são instrumentos legítimos para a defesa civil de um indivíduo. Ao mesmo tempo que Jesus condenou o uso agressivo da espada, ele recomendou o uso defensivo. Enquanto Jesus se opunha ao uso da força, por motivos religiosos, ele aprovava o uso da força, por questões sociais, quando se tratava de proteger a vida.”23

O cristão, à luz das Escrituras, tem o direito de se proteger. Um governo que zele pela liberdade individual deveria autorizar o porte de arma, pois ela elimina diferenças desproporcionais que possam existir entre a vítima e o agressor. Muitas vezes o agressor é mais forte e ágil que a vítima, a diferença seria reduzida se o civil carregasse com ele uma arma. Se os civis pudessem usar armas o assaltante ou o terrorista pensaria duas vezes antes de procurar cometer o mal, pois não sabe quem está em condições de se defender.

Alguém pode argumentar que a legalização do porte de armas aumentaria o índice de criminalidade, no entanto, as estatísticas, dos estados nos Estados Unidos da América, que permitem o porte de arma, demonstram o contrário.24 Já nos países que têm leis restritas quanto ao porte de arma a situação é inversa:

“Em países onde os cidadãos enfrentam um perigo ou um ataque violento, as leis deveriam permitir que os cidadãos individuais pudessem possuir armas de fogo para auto-defesa. Leis restritas de controle de armas não previnem a violência criminal em tais países mas provavelmente resultam num aumento da violência. (O Brasil e a Jamaica são dois desses exemplos.)”25

Também existe outro tipo de desproporcionalidade nos países onde o porte de arma é restringido: o criminoso consegue ter sempre acesso a uma arma, já o civil não. Tal situação é injusta e não protege o inocente.

Percebemos assim, à luz das Escrituras, que os governos deveriam permitir aos seus cidadãos a auto-defesa e o porte de arma de forma a poderem proteger as suas vidas. Esse princípio, pelos mesmos motivos alegados acima, não fere os mandamentos de amar o próximo e o inimigo.

Considerações finais

Todas estas medidas de proteção da vida não apelam à violência imoral, pelo contrário, visam  a justiça e o travar da criminalidade, valorizam a vida humana, a liberdade individual, as propriedades adquiridas de forma justa e demonstram desaprovação a quem pratica o mal. Assim, ser cristão não é ser pacifista, é desejar a paz e então defender e usar os meios legais e bíblicos que permitam que tal paz seja alcançada. O ideal é que não fossem necessárias guerras, pena de morte, orações a clamar por justiça divina e meios de auto-defesa, mas a verdade é que enquanto o pecado não for completamente subjugado, a aplicação da justiça e a prevenção da mesma tornam necessárias essas ações. Ao mesmo tempo, o cristão é chamado a proclamar de forma incansável o Evangelho, o qual é o poder de Deus para a salvação do homem. O Evangelho irá certamente transformar aqueles que abraçarem Cristo, mas é uma utopia pensar que todos os pecadores irão abraçar o Evangelho, por isso, enquanto Jesus não voltar, sempre haverá quem pratique o mal e intente contra a vida e a segurança das pessoas, o que implica a aplicação das práticas mencionadas no presente artigo.

_________________________
1.https://www.unodc.org/documents/gsh/pdfs/2014_GLOBAL_HOMICIDE_BOOK_web.pdf Acesso em 07.09.2016.
2. GRUDEM, Wayne. Política Segundo a Bíblia: Princípio que todo cristão deve conhecer. São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 112-114
3. CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. Vol. 2. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 883-884
4. GRUDEM, Wayne. Politics According to the Bible: A Comprehensive Resource for Understanding Modern Political Issues is Light of Scripture. [Versão Kindle]. Grand Rapids: 2010, Cap 11: A  
5. https://www.gty.org/resources/questions/A324/Does-the-Bible-allow-human-governments-to-wage-war Acesso em 09.09.2016
6. Id. Politics According to the Bible: A Comprehensive Resource for Understanding Modern Political Issues is Light of Scripture. [Versão Kindle]. Grand Rapids: 2010, Cap 11: C
7.  Não procuraremos abordar e refutar todas as argumentações pacifistas, apenas algumas, que também servem de base para os outros assuntos presentes neste artigo de cariz introdutório.
8.  Id. Politics According to the Bible: A Comprehensive Resource for Understanding Modern Political Issues is Light of Scripture. [Versão Kindle]. Grand Rapids: 2010, Cap 11: C
9.  Ibid. Cap 11:C
10.  Ibid. Cap 11:C
11. GEISLER, Norman. Ética Cristã: Opções e Questões Contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 278
12.  Ibid. Cap 11:C Tradução nossa.
13. Id. Ética Cristã: Opções e Questões Contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 243
14.  Ibid. p. 274-275
15. Id. Politics According to the Bible: A Comprehensive Resource for Understanding Modern Political Issues is Light of Scripture. [Versão Kindle]. Grand Rapids: 2010, Cap 6: C: 2
16. Ibid. Cap 6: C: 2  Tradução nossa.
17.  Ibid. Cap 6: C: 2
18.  Grudem afirma que alguns estudos revelam que, nos Estados Unidos, para cada execução de pena de morte, de quatorze a dezoito homicídios são reprimidos. Ibid. Cap 6: C: 4
19. JÚNIOR, Héber. Triunfo da Fé: Lidando com o problema do mal. São José dos Campos: 2012, p. 44
20. Id. Triunfo da Fé: Lidando com o problema do mal. São José dos Campos: 2012, p. 46
21. Ibid. p. 47
22. http://bereianos.blogspot.pt/2015/10/o-que-biblia-diz-sobre-o-controle-de.html Acesso em 10.09.2016
23. Id. Ética Cristã: Opções e Questões Contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 275
24. Id. Politics According to the Bible: A Comprehensive Resource for Understanding Modern Political Issues is Light of Scripture. [Versão Kindle]. Grand Rapids: 2010, Cap 6: D: 3
25.  Ibid Cap. 6: D: 3

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