Lutero, a morte e o Post Mortem: Ars moriendi protestante-uma breve introdução

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Ao receber o convite para escrever sobre o tema desta edição da revista1, senti uma mórbida felicidade para a pesquisa. Sendo eu de uma tradição calvinista, quando tive mais contato com a teologia de Lutero, levantei algumas suspeitas da diferente concepção do reformador sobre a morte e do que viria após o traspasse desta vida.2 Aliado a isso, meu objetivo foi também tentar traçar os pontos de divergência e convergência entre Lutero e Calvino. No entanto, a ênfase recairá, neste breve artigo, sobre o pensamento de Lutero. Logo, este trabalho descreve, de forma sucinta, questões históricas, teológicas e práticas da reflexão do reformador sobre a morte.  Portanto, o que vem a seguir, mais do que um artigo solicitado, é um tema de curiosidade pessoal e descoberta. Espero que seja uma boa e consoladora introdução na “Ars Moriendi” (a arte de morrer) à luz do recém-nascido protestantismo.

A morte e o destino póstumo sempre agitaram a mente e a fantasia humana. Ora, negando-os, ora aceitando-os resignadamente ou até desejando-os. Tantas são as pessoas, assim também as cosmovisões, os medos e as esperanças.  Desde as épocas mais remotas até o nosso mundo contemporâneo, a morte e sua irmã gêmea – a vida post mortem – estão presentes. A banda de rock inglesa surgida na segunda metade da década de 1990, Coldplay, tem lançado “hits” em seus álbuns que remetem à morte: “Viva la Vida or Death and All His Friends” (Viva a Vida ou a Morte e Todos Seus Amigos), “Cemeteries of London” (Cemitérios de Londres) e assim também o mais recente sucesso “Paradise” (Paraíso). As ideias de dor e esperança, desilusão e sonho, reencontrar depois de perder, vida e morte são facilmente identificadas.  

A morte na Idade Média e a Reforma Protestante
O “Sitz im Leben” de Lutero se dá sob a forte visão medieval da morte. O quadro de Master E. S. (1420–1468) “Versuchung im Glauben” (tentações na fé) capta bem essa imagem. Segundo Ricardo W. Rieth,

A educação cristã e o aconselhamento pastoral no final da Idade Média – e mesmo antes – eram pautados em boa medida pela alternância entre ameaça e consolo. A arte sacra corroborava essa perspectiva, como pode ser visto em inúmeras obras retratando a morte, o purgatório, o juízo final, o céu e o inferno como estados da alma, descritos através das mais variadas expressões faciais.3 

Ao lado das epidemias, da curta expectativa de vida, o medo da morte era ampliado, e como uma fera faminta, só podia ser domada pelo papado – mas, no além. Na época existiam, inclusive, mapas topográficos dos vários locais intermediários para onde as almas iam após a morte.4 A doutrina do “Zwischenzustand” (estado intermediário) é radicalmente afetada pela Teologia Protestante.

Lutero e o “slogan” da Sola Scriptura

É interessante observar que o reformador alemão, com a sua vigorosa volta às Escrituras, provocou reações de esperança tanto entre os cristãos quanto no povo judeu5, alguns dos quais chegaram ao excesso apocalíptico:

Lutero seria um cripto-israelita que ira reconduzir outros à lei mosaica. Os fenômenos de iconoclastia, os estudos hebraicos de Lutero e de seus adeptos, assim como os golpes lançados à instituição romana, seriam igualmente sinais messiânicos. Outros judeus não iam tão longe assim, contentando-se em realçar tudo aquilo que aproximava o cristianismo reformado por Lutero do judaísmo.6 

Em que se pese essa aproximação, Lutero no seu “Comentário sobre profetas menores (1524-26)” combatia as tradições judaicas lançando “o Talmude no mesmo saco que as decretais papais e o Alcorão.”7 O emblema da “Sola Scriptura”, se por um lado aproximava judeus e cristãos, por outro, novamente dividia. A Escritura, sozinha, deve permanecer apenas! Essa firme posição de não especular além da Bíblia influenciará a exegese de Lutero, inclusive aproximando-o de pontos de vista mais hebraicos. É interessante notar que Lutero, em seu comentário sobre Hebreus tratando do famoso capítulo 11, afirma não se poder saber onde e qual o estado de Enoque (Gn 5.24) e acrescenta o mesmo sobre Elias (2Rs 2.11). A Escritura, segundo Lutero, não apresenta a condição deles agora.8  

Antropologia e morte em Lutero
Pode-se perceber que o pensamento do reformador alemão foi modificando-se à medida que se aprofundava nos estudos das Sagradas Escrituras. Inclusive, o método de estudo modificou-se, deixando a tradição da Igreja quando a Bíblia não a autorizava. Nas suas 95 Teses, percebe-se o protestantismo rudimentar que aceita o papado e o purgatório, mesmo que atingindo ambos com ironias vez ou outra. A aproximação de Lutero do mundo bíblico trouxe-lhe um apego forte às Escrituras de tal forma que a sua antropologia inclinava-se cada vez mais a uma visão integral do ser humano – uma visão hebraica, para muitos. A dicotomia entre o corpo e a alma, em Lutero, tornou-se cada vez menos acentuada. Por outro lado, a tensão “corpo x alma” continua, sem que o reformador tente sistematizar os casos, equilibrando-se numa suave dicotomia em que não se especula a respeito. Vários estudos têm sido feitos sobre a  dificuldade da posição de Lutero e a sua compreensão do que ocorre ao ser humano na morte.9 Isso, pelo menos, evidenciaria a não sistematização de Lutero quanto a esse respeito e serve também de alerta para os que desejam aprofundar-se nessa matéria.  

Lutero, no ano de 1521, ao comentar o Magnificat (o “cântico de Maria” – Lc 1.46-55)10 traz uma abordagem mais semelhante à tricotomia  baseando-se em 1Ts 5.23. Já no seu comentário ao capítulo 15 da Primeira Epístola aos Coríntios o seu enfoque antropológico parece ser mais integral. Ele relaciona o termo hebraico “nefesh” e “Seele” (alma, em alemão) dizendo que este termo está “significando não apenas uma parte […] mas significa o ser humano inteiro.”11 E, finalmente em suas famosas “Tischreden” (conversas à mesa) em 1542/154312 essa tensão antropológica fica demonstrada na melhor e mais vigorosa aplicação do “já e ainda não”.

Lutero e a presença da morte
Lutero, desde muito cedo, se preocupou com a morte. Segundo a versão mais conhecida, a sua decisão de tornar-se monge foi tomada quando ele temia por sua vida durante uma forte tempestade.  Em 19 de março de 1518, em um dos seus primeiros sermões, Lutero tratou da ressurreição de Lázaro (Jo 11.1-45) citando os três tipos de mortes classificadas por Agostinho (a morte da alma; a pessoa sobrecarregada pelo peso dos pecados e, finalmente, o sepulcro).13 Lutero, na Dieta de Worms (1521), após defender sua posição, pediu um dia a mais para sua defesa, já temendo por sua morte. Depois de reafirmar seus escritos na Dieta de Worms, viveu por algum tempo fugitivo e refugiado pelo príncipe-eleitor da Saxônia, Frederico III. O hino Castelo Forte, a “marselhesa da Reforma”, baseado no Salmo 46, foi escrito durante momentos angustiantes diante da morte.  Lutero muitas vezes recebeu e acolheu moribundos na sua casa. A morte sempre esteve presente na vida e pregação de Lutero:

Todos nós, sem exceção, somos intimados a comparecer diante da morte, e ninguém poderá morrer em lugar de outro, mas cada um por si mesmo agonizará. Até podemos fazer nosso lamento chegar aos ouvidos dos outros, mas cada um terá que enfrentar o momento da morte sozinho.14  

Lutero e o preparo para a morte
Lutero escreveu um famoso sermão em 1519 sobre a preparação para a morte15. É um dos primeiros sermões do que se pode chamar de literatura protestante. Segundo Joachim Fischer, “até 1525 houve, ao todo, 21 reedições, além de duas traduções latinas – um sinal inequívoco de sua enorme popularidade.”16 Tal popularidade provavelmente se deu pelos diversos medos da morte que existiam na época.  Neste sermão, Lutero preocupa-se, em primeiro lugar, com a ordem dos bens que alguém deve deixar antes de se despedir em sua morte, evitando assim “rixas, discórdias, ou algum outro mal-entendido entre seus parentes.”17 E, em segundo, essa despedida inclui a dimensão espiritual, em que se deve perdoar a todos, mesmo os que nos tenham ofendido. Além disso, deve-se desejar o perdão de todos os que ofendemos também, inclusive com a omissão de nossas boas obras e maus exemplos que demos.

Lutero e o ensino sobre como enfrentar o medo da morte
Para Lutero, o medo da morte, do juízo e do fogo eterno, da consciência contra si mesmo, da acusação do diabo e condenação da Palavra de Deus é um “vale de desolação.”18

A morte, para Lutero, é uma jornada de encontro para Deus, mas que em Cristo, deve ser trilhada sem medo. “Aí se inicia a porta estreita, o caminho apertado para a vida, por onde cada um deve se aventurar com bom ânimo, pois o caminho é, por certo, estreito, mas não é longo.”19 Lutero faz uma analogia ao nascimento de uma criança, à dor do parto (Mc 9.23): “o mesmo vale para a morte: devemos livrar-nos do medo e saber que, depois, haverá muito espaço e alegria.”20

Mas, como enfrentar a morte com alegria? Lutero, apontando somente para Cristo, esclarece que não se devem fixar os pensamentos na imagem da morte, nem nos que foram mortos pela ira de Deus, nem mesmo em nossos pecados. São essas três imagens – morte, pecado e inferno – que nos assustam. Não devemos nos preocupar com elas, mas antes

deves preocupar-te com a morte de Cristo tão-somente; então encontrarás vida. No entanto, se mirar a morte em outro lugar, ela te mata com grande inquietude e tormento. É por isso que Cristo diz: “No mundo (isto significa também em nós mesmos) vocês terão inquietação. Em mim, porém, terão a paz.” [Jo 16.33]21

Lutero inclui também a dúvida da predestinação (se somos ou não eleitos) ao lado do medo da morte, do inferno e da culpa de nossos pecados. “Não deves contemplar […] a predestinação em ti mesmo, nem nela mesma, nem naqueles que foram condenados.”22 Lutero sempre direciona o olhar da fé para Deus e não para nós mesmos. “Deves deixar que Deus seja Deus, que ele saiba mais sobre ti do que tu mesmo. Olha, por isso, a imagem celestial, Cristo.”23 Diante das imagens da morte, pecado e inferno, Lutero arremata que elas “fogem com todas as suas forças se exercitarmos em nós as imagens luminosas de Cristo […] à noite[…].”24 Por isso, diante do medo da morte, Lutero pode afirmar confiantemente que Deus

te dá, em Cristo, a imagem da vida, da graça, da salvação, para que não te horrorizes diante da imagem da morte, do pecado e do inferno. Além disso, coloca sobre o seu amado Filho a tua morte, o teu pecado, o teu inferno, vencendo-os e tornando-os inofensivos para ti.25

Lutero, em seu comentário de Isaías, confronta também a vida monástica e os diversos tratados que ensinavam como enfrentar a morte.

No entanto, a vitória e preparação para a morte precisam ser vistas em Cristo, não nos desertos ou nos mosteiros onde as barrigas são engordadas. Você precisa olhar para Cristo, no qual você vê a morte conquistada […] Nós não devemos olhar para os nossos pecados e atos dignos de vergonha, mas devemos olhar para fora de nós mesmos, longe de nossos pecados e da presunção, e ir só a Cristo mesmo […] Ninguém tem tratado corretamente da preparação para morte dessa maneira, embora haja incontáveis tratados escritos sobre a preparação para a morte. Quanto a você, não considere sua morte como se estivesse em você mesmo, mas veja-a em Cristo, o Vitorioso.26 

Lutero e a imortalidade
Segundo Paul Althaus27, Lutero via na palavra proferida por Deus, seja em graça ou em juízo, a eternidade do ser humano. Não seria uma alma, mas o ser integral, como um todo que está vivo para Deus, apesar de morto. No entanto, Lutero não explica como isso seria possível ao comentar sobre Jesus e a ressurreição (Mt 22) – “Deus não é o Deus de mortos, mas de vivos”. A imortalidade, para Lutero, não está na alma humana, mas na palavra dita por Deus. Lutero fazia o seguinte silogismo: “Se Deus se apresenta a você como seu Deus, então você está vivo para Deus, mesmo quando você está morto”28. Althaus continua

de acordo com Lutero, isso se aplica como verdade para todo o homem – mesmo que Deus não fale com ele em graça, mas “em ira”. Não há base alguma para um homem afastar-se, ou fugir da sua relação com Deus pela morte do seu corpo. O fato de que Deus falou com ele continua a ser o seu destino inevitável.29

E, na mesma direção, Oswald Bayer assegura que para Lutero a relação com Deus não é interrompida com a morte, antes “essa relação espera tão-somente a continuidade do agir e falar de Deus.”30 Logo, a imortalidade da alma não se daria como um ente à parte do corpo, mas guardada na palavra pronunciada de Deus.

Lutero e o sono da morte
O pensamento do reformador se aproxima de uma espécie de sono da alma:  

Deveríamos exercitar-nos na fé e acostumar-nos a desdenhar da morte e encará-la como um sono profundo […] ver o esquife como o colo ou o paraíso do Senhor Cristo, contemplar a sepultura como nada mais do que uma cama macia, pois assim verdadeiramente é tudo diante de Deus.31

Por outro lado, Lutero afirmou algo que dá a entender que há vida após a morte.  Mas o reformador não entra  em detalhes: “Como as almas descansam nós não sabemos; no entanto, é certo que elas vivem.”32  E, nas “Tischreden” (conversas à mesa), em resposta à sua esposa, ele diz:  

Sim, você, também já está no céu […] Abraão vive também. Deus é Deus dos vivos […] Agora, se alguém disser que alma de Abraão vive com Deus mas seu corpo está morto, este distinção é uma bobagem […] Esta é a maneira de vocês filósofos falarem: “Depois que alma partir do seu domicílio, etc”. Seria uma alma estúpida se ela estivesse no céu e desejasse o seu corpo!33  

Daí, talvez, melhor chamar o pensamento de Lutero sobre o estado após esta vida de “sono da morte” e não de “sono da alma” inconsciente. O cristão teria uma alma que descansa alegremente em Deus – o que implica algum estado de consciência, mas que Lutero não sabe como elucidar a exemplo do caso de Abraão.   Por outro lado, para Lutero, a estado anterior à ressurreição parece que cairá no esquecimento. “Repentinamente ressuscitaremos no último dia, sem conseguir compreender como morremos e como passamos pela morte.”34 Por fim, segundo Pieper, “um sono da alma que inclui a alegria em Deus (como diz Lutero) não pode ser chamado de doutrina falsa.”35  

Lutero a esperança de vida após a morte
Um exemplo do que define a certeza, a esperança cristã, para Lutero, são as palavras de Cristo em Jo 11.26: “Aquele que crê em mim, nunca morrerá.” Para Lutero, o “lugar” de descanso está na palavra de Deus e na promessa de Cristo. E, no último dia, todos, crentes ou não, ressuscitarão para o juízo, uns para vida eterna com Cristo e outros para a condenação eterna.36 A esperança e a alegria do porvir são aguardadas no dia da ressurreição. “Cairemos no sono até que ele [isto é, Cristo] venha e bata à porta do tumulozinho e diga: ‘Doutor Martim, levanta!’ Então me levantarei no mesmo instante e serei eternamente feliz com ele.”37 

Interessante é também a explicação do reformador sobre as palavras de Cristo ao ladrão da cruz: “hoje mesmo estarás comigo no paraíso”. No inverno de 1542 ou 1543, nas “Tischreden” (conversas à mesa), alguém pensando em Lc 23.43 perguntou a Lutero se a alma escapa imediatamente do corpo mortal entrando no paraíso. E o reformador responde:

Sim, o que significa esta palavra “hoje”? É verdade que a alma ouve, sente, e vê depois da morte, mas como isso ocorre nós não entendemos […] Se  nós tentássemos imaginar isso de acordo [nossa concepção de tempo] nesta vida, nós seríamos bobos. Cristo respondeu aos seus discípulos que eram, sem dúvidas, curiosos. [Ele disse] “Aquele que crer em mim, ainda que morra, viverá.” [Jo 11:25]. De forma similar [Paulo escreveu], “quer vivamos, quer morramos, somos do Senhor [Rm 14.8]”38

Lutero e a responsabilidade médica e eclesiástica
A morte não deveria afugentar os que podem oferecer ajuda médica e espiritual. Segundo Lutero, as autoridades médicas e eclesiásticas não deveriam ter pavor da contaminação. O médico, o pastor ou diácono, etc,  deveria “ser o infectado representante de Jesus Cristo.”39

Lutero e a dignidade do tratamento dos mortos

O corpo humano tem seu valor, especialmente à luz da ressurreição. Por isso, os cristãos devem modificar sua percepção e linguajar ao tratar dos mortos.  Segundo Lutero,

Ao ver meu pai, minha mãe, meu irmão, minha irmã, um filho ou amigo sepultado debaixo da terra, como cristão, não devo dizer: “Eis aí um cadáver ou uma carniça fedorenta e podre”, e sim: “Aí está meu amado pai, mãe, filho, amigo, príncipe e senhor, etc., e, hoje ou amanhã, também estarei com eles. Que são eles? Grãozinhos que, brevemente, brotarão imortais e imperecíveis, muito mais belos que a verde plantação na lavoura, ao chegar o verão”. Assim é que se fala! Essa é a linguagem celeste de Deus e seus anjos.40

Cabe também lembrar que Lutero fala da desonra terrena que nosso corpo não glorificado passa.  O corpo sofre de desonra por suas necessidades e inutilidade após a morte, sofrendo até o roubo de suas roupas.41 Além disso, é muito frágil, padecendo por doença, podendo ser atingido até por um piolho!42

Conclusão

Diferente de Calvino43, o pensamento de Lutero sobre a vida após a morte é afetado por uma antropologia mais integral. A tensão entre corpo e alma, desta vida e do porvir, para Lutero, ao que parece, se dá mais dentro de uma perspectiva escatológica. Segundo Pieper,

Lutero fala mais cautelosamente do estado da alma entre a morte e a ressurreição do que […] os teólogos posteriores que transferiram algumas coisas para o estado entre a morte e a ressurreição que pode ser dito com certeza apenas do estado após a ressurreição.44

Assim também, nessa mesma linha vê Rieth

Assim, [Lutero] não se incomoda com o fato de Paulo falar da vida com Cristo logo após a morte e, paradoxalmente, abordar a ressurreição futura em face do juízo final. Lutero não busca uma solução sistemática dessas diferenças e evita todo e qualquer arrazoado que conduza à especulação grosseira […] Sustenta que toda e qualquer consideração sobre um estado intermediário entre morte e ressurreição desvia-se do centro da questão, pois pressupõe uma noção de tempo empiricamente percebida, que é totalmente diversa do tempo de Deus […] Por isso, Lutero prefere falar em “sono da morte”, ao invés de um “estado intermediário”.45

Talvez, a posição radical de Lutero sobre quase um sono da alma tenha se dado em reação à doutrina do purgatório, da intercessão dos santos, das diversas questões que estavam em ebulição ainda do mundo medieval. O “Leitmotiv”  da Sola Scriptura impeliu o coração do reformador para longe de quaisquer considerações não bíblicas. A redescoberta da justificação pela fé pode ter também inclinado Lutero para uma escatologia realizada de tal maneira que os fundamentos da vida após a morte foram sacudidos. Uma coisa é certa: em um contexto em que as pestes, a morte e o medo do porvir estavam em alta, foi em hora oportuna que a Providência fez arder a tocha do Evangelho sob o calor da justificação por graça e fé somente.

Havendo um “sono da morte” ou apenas a ressurreição após esta vida, o certo é que Lutero ensina a olharmos para a Escritura diante da morte e esperar nas promessas de Deus reveladas nEla. É pela Escritura que somos exortados a não esquecermos da constante presença da morte. As pessoas, segundo o reformador, “fazem de sua vida uma vida eterna, mesmo que a morte não desgrude de seus calcanhares e seja nosso vizinho mais próximo.”46 Lutero mostra como, pelas Escrituras, podemos viver  uma vida sem medo da morte. Somos desafiados a nos preparar adequadamente para a morte na esperança do Evangelho e jamais confiar ou nos desesperar em nós mesmos. Somos estimulados, nas promessas de Deus, a cuidar um dos outros, mesmo em situação de risco de vida.  Somos entusiasmados, em Cristo, a aguardamos a redenção e vitória final sobre a fragilidade do nosso corpo, sobre os nossos pecados, sobre a nossa morte e sobre a nossa condenação ao inferno tendo o próprio Cristo como único que venceu tudo pelos seus! Somos comovidos a meditar nisso, pois como disse Calvino, “ninguém terá progredido bem na escola de Cristo senão aquele que aguardar com regozijo o dia da morte e da ressurreição final.”47 Em Cristo temos a morte da nossa morte!

Para conhecer o pensamento de Lutero – algumas indicações em português
Nascido Escravo (96p.) – Editora Fiel
Da Liberdade do Cristão (127p.) – UNESP
Teologia dos Reformadores (344p.) – Editora Vida Nova
Martinho Lutero: Obras Selecionadas (série em 11 volumes) – Sinodal
Martin Lutero: tempo, vida, mensagem (409p.) 3ed atualizada e corrigida – Sinodal
A teologia de Martim Lutero: uma atualização (284p.) – Sinodal
Mais uma pergunta, Dr. Lutero: entrevista com o Reformador (144p.) – Sinodal
Bíblia Sagrada com Reflexões de Lutero (1344p.) – Sociedade Bíblica do Brasil.

Índices e sumários das Obras Selecionadas de M. Lutero publicadas no Brasil
http://www3.est.edu.br/biblioteca/indice_lutero.htm
http://www.lutero.com.br/novo/obras_de_lutero.php

Internet
50 inconveniências da autojustificação – http://iprodigo.com/traducoes/50-inconveniencias-da-autojustificacao.html
A ideia esquecida de Lutero – http://iprodigo.com/traducoes/a-ideia-esquecida-de-lutero.html
Filme Lutero (2003, 123min) – Eikon Film, NFP Teleart Berlin, Thrivent Financial for Lutherans
Martinho Lutero, o Líder da Reforma – http://monergismo.com/david-schaff/martinho-lutero-o-lider-da-reforma/
Série – A Escravidão do Arbítrio – http://www.youtube.com/watch?v=4gNFqg9Ywvg

BIBLIOGRAFIA
ALTHAUS, Paul. The Theology of Martin Luther. Philadelphia: Fortress Press, 1966.
ALTHAUS, Paul. Unsterblichkeit und ewiges Leben bei Luther. Zur Auseinandersetzung MIT Carl Stange. Güttersloh, 1930;
BAYER, Oswald. A teologia de Martim Lutero: uma atualização. São Leopoldo: Sinodal, 2007.
CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. Trad. de Waldyr Carvalho Luz. 2 ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, 4v. v. 3. 9. 5.
CALVIN’S Commentaries. Commentaries on the Epistle of Paul to the Galatians, Ephesians, Philippians, Colossians, I & II Thess. I & II Timothy, Titus, Philemon. Grand Rapids: Baker Book House, 1993.
_____________________. Commentary on a Harmony of the Evangelists, Matthew, Mark, and Luke. Grand Rapids: Baker Book House, 1993, v. 1.
_____________________. Commentary on a Harmony of the Evangelists, Matthew, Mark, and Luke. Grand Rapids: Baker Book House, 1993, v. 3.
HEIDLER, Fritz. Luthers Lehre von der Unsterblichkeit der Seele. Ratzenburger Hefte 1. Erlangen, 1983.
HERRMANN, Christian. Unsterblichkeit der Seele durch Aufestehung. Studien zun den anthropologischen Implikationen der Escatologie. Göttingen, 1997.
HOEKEMA, Anthony. Criados à imagem de Deus. 1ed. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999.
LIENHARD, Marc. Martin Lutero: tempo, vida, mensagem. São Leopoldo : Sinodal, 1998.
LUTERO, Martim. Martinho Lutero: obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal, 2005. v.9.
LUTHER`S Works. Lectures on Isaiah. American ed. St. Louis: Concordia, 1969. v. 16.
LUTHER’S Works. Sermons I. American ed. Philadelphia: Fortress, Muhlenberg, 1959.
PIEPER, Franz. Christliche Dogmatik. St. Louis: Concordia, 1920-1946. 3 v. III,
RADLER, Alexander. Unsterblichkeitsgedanke und Aufestehungsglaube. Veröffentlichungen der Luther-Akademie Ratzenburg v. 11. Erlangen, 1988 (especialmente a bibliografia das páginas 38s);
WOLF, Manfred. Mais uma pergunta, Dr. Lutero…: entrevista com o Reformador. São Leopoldo: Sinodal, 2011.
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1 Texto originalmente publicado na revista iProdigo em que o tema da publicação foi “Morte e Vida”. GRIMM, Charles. “Lutero, a Morte e o Post Mortem: ars moriendi protestante – uma breve introdução”. Revista iPródigo, No 2 (2012), p. 50-57.
2 Também não se poderá omitir a compreensão antropológica que acaba sendo o pando de fundo necessário para tratar da vida e morte humana. Sugiro, como obra inicial para estudos: HOEKEMA, Anthony. Criados à imagem de Deus. 1ed. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999.
3 LUTERO, Martim. Martinho Lutero: obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal, 2005. v. 9, p. 285.
4 ALTHAUS, Paul. The Theology of Martin Luther. Philadelphia: Fortress Press, 1966. p. 412.
5  LIENHARD, Marc. Martin Lutero : tempo, vida, mensagem. São Leopoldo : Sinodal, 1998. p. 232.
6  LIENHARD, Marc. p. 232.
7 LIENHARD, Marc. p. 234.
8 LUTHER’S Works. Lectures on Titus, Philemon, and Hebrews. American ed. St. Louis: Concordia, 1968. p. 234.
9 ALTHAUS, Paul. Unsterblichkeit und ewiges Leben bei Luther. Zur Auseinandersetzung MIT Carl Stange. Güttersloh, 1930; HEIDLER, Fritz. Luthers Lehre von der Unsterblichkeit der Seele. Ratzenburger Hefte 1. Erlangen, 1983; RADLER, Alexander. Unsterblichkeitsgedanke und Aufestehungsglaube. Veröffentlichungen der Luther-Akademie Ratzenburg v. 11. Erlangen, 1988 (especialmente a bibliografia das páginas 38s); HERRMANN, Christian. Unsterblichkeit der Seele durch Aufestehung. Studien zun den anthropologischen Implikationen der Escatologie. Göttingen, 1997.
10 LUTERO, Martim.  2005. v.6, p. 27.
11 LUTERO, Martim.  2005. v.9, p. 402.
12 Table Talk (Luther’s Works). American ed. Philadelphia: Fortress, 1967, v.54. p. 446.
13 LUTHER’S Works. Sermons I. American ed. Philadelphia: Fortress, Muhlenberg, 1959, p. 44-5.
14 WOLF, Manfred. Mais uma pergunta, Dr. Lutero…: entrevista com o Reformador. São Leopoldo: Sinodal, 2011. p. 91.
15 Eyn Sermon von der bereytung zum sterben (alemão antigo) WA 2.684-97.
16 LUTERO, Martim. 1987. v.1, p. 386.
17 LUTERO, Martim. 1987. v.1, p. 386.
18 LUTERO, Martim. 2005. v.9, p. 329.
19 LUTERO, Martim. 1987. v.1, p. 387.
20 LUTERO, Martim. 1987. v.1, p. 387.
21 LUTERO, Martim. 1987. v.1, p. 390.
22 LUTERO, Martim. 1987. v.1, p. 391.
23 LUTERO, Martim. 1987. v.1, p. 391.
24 LUTERO, Martim. 1987. v.1, p. 392.
25 LUTERO, Martim. 1987. v.1, p. 398.
26 LUTHER`S Works. Lectures on Isaiah. American ed. St. Louis: Concordia, 1969. v. 16. p.337-38. “However, victory and preparation for death must be sought in Christ, not in the wilderness and in monasteries, where bellies are fattened. You must to look to Christ, in whom you see death conquered […] We must not look a our sins and disgraceful acts, but we ought to get out of ourselves, away from our sins and our presumption, and go to Christ himself […] None have correctly dealt with this manner of preparing for death, although countless treatises on the preparation for death have been written. As for you, do not consider your death as it is in you, but see it in Christ, the Victor.”
27 ALTHAUS, Paul.  p. 412.
28 ALTHAUS, Paul. p. 412. “If God introduces himself to you as your God, then you are alive to God even when you die.”
29 ALTHAUS, Paul. p. 412. “According to Luther, this holds true for every man – even though God does not speak with him in grace, but “in wrath”. Theres is no basis for a man to scape from, or run away from, his relationship to God through bodily death. The fact that God has spoken to him remains his inescapable fate.”
30 BAYER, Oswald. A teologia de Martim Lutero: uma atualização. São Leopoldo: Sinodal, 2007. pp. 238-39.
31 WOLF, Manfred. p. 93.
32 PIEPER, Franz. Christliche Dogmatik. St. Louis: Concordia, 1920-1946. 3 v. III, p. 512. “How the soul rests, we are not to know; it is certain, however, that it lives.”
33 Table Talk (Luther’s Works). American ed. Philadelphia: Fortress, 1967, v.54. p. 446.  “Yes, you, too, are already in heaven. […] Abraham lives too. God is God of the living […]  Now, if one should say that Abraham’s soul living with God but his body is dead, this distinction is rubbish. […] This is the way you the philosophers speak: ‘Afterward the soul departed from its domicile,’ etc. That would be a silly soul if it were in heaven and desire its body!
34 WOLF, Manfred. p. 92.
35 PIEPER, Franz. p. 512. “A sleep of the soul  which includes enjoyment of God (says Luther) cannot be called a false doctrine.”
36 ALTHAUS, Paul.  p. 417.
37 BAYER, Oswald. pp. 238-39.
38 Table Talk (Luther’s Works).  p. 446. “Yes, what does this word ‘today’ mean? It’s true that soul hear, feel, and see after death, but how this occurs we don`t understand. Where do  those stay who hang on the gallows? If we try to figure this out according to [our conception of time in] this life, we’re fools. Christ has given his answer, for his disciples were undoubtedly just a curious. [He said,] ‘He who believes in me, though he die, yet shall he live’ [John 11:25]. Similarly [Paul wrote], ‘ Whether we live or whether we die, we are the Lord’s’ [Rom. 14:8].”
39 LUTERO, Martim. 2005. v.9, p. 429.
40 LUTERO, Martim. 2005. v.9, p. 394.
41 LUTERO, Martim. 2005. v.9, p. 400.
42 LUTERO, Martim. 2005. v.9, p. 401.
43 Cf. a obra de Calvino, Psychopanychia (1534). Cf.  CALVIN’S Commentaries. Commentary on a Harmony of the Evangelists, Matthew, Mark, and Luke. Grand Rapids: Baker Book House, 1993, v. 1. pp. 188-90. Cf. CALVIN’S Commentaries. Commentary on a Harmony of the Evangelists, Matthew, Mark, and Luke. Grand Rapids: Baker Book House, 1993, v. 3. p. 52, Cf. CALVIN’S Commentaries. Commentaries on the Epistle of Paul to the Galatians, Ephesians, Philippians, Colossians, I & II Thess. I & II Timothy, Titus, Philemon. Grand Rapids: Baker Book House, 1993. p.43-4. (Philippians).
44 PIEPER, Franz. p. 512. “Luther speaks more guardedly of the state of the soul between death and resurrection than […] the later theologians, who transfer some things to the state between death and resurrection which can be said certainly only of the state after the resurrection.”
45 LUTERO, Martim. 2005. v.9, p. 285.
46 WOLF, Manfred. p. 136.
47 CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. Trad. de Waldyr Carvalho Luz. 2 ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, 4v. v. 3. 9. 5. Grifo impresso.

5 COMENTÁRIOS

  1. Li o sermão de 1519, depois de sua referência. H  elementos importantes no que diz respeito ao cuidado espiritual com moribundos em seu leito de enfermidade.No sermão h  uma teologia para pastoral para o momento da morte. Foi escrito na fase em que Lutero ainda professava os sete sacramentos da igreja católica, mas, vale muito a pena ser lido. Obrigado pela citação da fonte, para podermos pesquisar. parabéns pelo artigo.

  2. parabéns pelo texto. A questão da morte tem me absorvido muito desde que o Felipe faleceu. Tenho lido mais de 50 livros a respeito, at‚ mesmo de espíritas. Pretendo escrever um livro sobre o tema, j  disponho de farta bibliografia, mas ainda não estou pronta para a empreitada. Pretendo enfocar as fases do luto, as bobagens que nos dizem ã guisa de consolo, enfim, os bastidores da dor da perda.
    abraço
    carla

  3. Quando ser  que os protestantes abandonarão de vez as heresias católicas e se libertarão da ideia de alma imortal e consciente após a morte e um imagin rio estado intermedi rio? Por que não ficar com o simples tu ‚s pó, e ao pó tornar s?
    Por que não aceitar o que ‚ afirmado em Sl 146:4? Ao exalar o último suspiro, perecem todos os nossos pensamentos, deixamos de existir, voltando   condição de antes de nossa concepção. Quando Cristo voltar, ouviremos seu chamado e voltaremos a existir, dessa vez para sempre estarmos com ele. O Hades, o símbolo da condição de mortos, não poder  nos deter. Não havendo consciência, não h  noção de tempo decorrido, logo, hoje mesmo quem morre est  com Cristo.
    Esqueçam Lc 16:19-31, ‚ apenas uma par bola, a qual est  em desacordo com as Escrituras que afirmam que os mortos não sabem de coisa alguma.

  4. Agradecida pela oportunidade em ler este texto. Interessante e edificante. Assunto difícil para a maioria de nós, revelando a nossa humanidade, o limite.

  5. Obrigada pela oportunidade de ler este texto, achei bastante interessante, embasado em uma vasta literatura e me trouxe um olhar diferenciado para a morte. Confesso que após a minha conversão eu não havia refletido ainda sobre o tema. Meus presupostos neste tema ainda estavam amparados em doutrinas que aprendi no catecismo católico romano. Na leitura do texto pude contronta-los em um texto forte em suas convicçäes, mas suave e de f cil compreensão. parabéns!!!

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