A teologia pública cristã reformada na emergente construção da ideia de uma esfera pública e social não-governamental chinesa
Introdução
Há um importante fenômeno de emergência nas dinâmicas da política internacional contemporânea, em que Estados em desenvolvimento veem ganhando notoriedade dentro das dinâmicas regionais e globais das relações internacionais. É neste processo que, desde os idos de 1990, e com forte expansão a partir do novo milênio, o mundo testemunha o dramático levante da China como um dos grandes poderes emergentes, poderes esses capazes de redefinirem as relações existentes no sistema internacional. (CHRISTENSEN; XING, 2016).
Todavia, diante desta emergência, que desperta o interesse analítico acadêmico voltado para o papel da sociedade emergente chinesa no globo (CHRISTENSEN; XING, 2016), surge também a demanda pela compreensão de suas dinâmicas sociais e políticas internas, como fatores analíticos conjunturais preponderantes que não devem ser ignoradas.
Dentre estas dinâmicas, um vigoroso debate surge em torno do desenvolvimento de uma esfera pública e social não-governamental chinesa, em que se discute a ideia do “público” (gong) em relação ao Estado (guan) e a “sociedade civil” chinesa, mediante uma vasta produção acadêmica e literária de origem anglófona e sinófona sobre a questão (CHOW, 2018).
Neste debate acerca do desenvolvimento de uma esfera social e do “público”, dois fatores nos chamam a atenção: (1) a voz e o envolvimento público crescente do Cristianismo na China, que se faz percebido na medida em que atua e mobiliza-se através (2) do desenvolvimento de uma Teologia Pública Cristã para o engajamento público-social neste contexto. Indagamos neste texto se e em que medida, o Cristianismo Protestante Chinês, mais especificamente, aquele de tradição calvinista e reformada, atuante fortemente no contexto urbano e acadêmico na China, juntamente com a Teologia Pública por ele produzida, participaria tanto dos debates acerca do público, quanto se envolveria nesta emergente esfera pública e social não-governamental.
Os estudos contemporâneos das Ciências Humanas e Sociais, ao tratarem daquilo que convencionou-se chamar de “Ocidente”, têm apontado para o retorno da religião ao centro dos debates acadêmicos e teóricos, ganhando cada vez mais “proeminência pública como um fator significante nas políticas globais e na sociedade civil”[2]. (GRAHAM, 2014, p. 235, tradução nossa). Indo contrariamente às predições das teorias secularistas dos séculos passados (TAYLOR, 2010), mas sem afirmar um reavivamento religioso em escala global, o que se pode observar no ocidente seria um novo fenômeno, num período intitulado de “Pós-secular”, em que a religião sofre ressurgimento, declínio, mutação e resistência, retornando, porém, ao centro dos debates públicos, políticos e sociais, seja âmbito nacional ou internacional, via a Teologia Pública (GRAHAM, 2013). Como aponta-nos Hent de Vries e Lawrence E. Sullivan (2006, p.3, tradução nossa), “Uma sociedade é “pós-secular” se considerar a decrescente, mas duradoura – e, portanto, talvez mais resistente e recalcitrante – existência do religioso”[3].
Este debate Pós-Secularista[4], também presente nos estudos das Relações Internacionais (PETITO; MAVELLI, 2014), aponta-nos para o fato de que seja em âmbito local, nacional ou global, a religião é partícipe do desenvolvimento do “público” – não sem percalços como apontamos acima – com destaque aqui para aquelas nações em desenvolvimento. Nesse sentido, Graham (2014, p. 237, tradução nossa) assevera que em países “como Brasil, China ou Índia, a religião continua a crescer sendo parte significativa na vida pública”[5].
Dentre estas expressões religiosas, o Cristianismo, enquanto religião de maior impacto na construção do Ocidente (DAWSON, 2016), tem permanecido atuante mesmo diante dos agouros secularistas sobre seu total declínio, ou de sua retração nas esferas políticas, públicas e sociais no início do século passado, fator esse preponderante para a defesa de um argumento em favor de uma era “Pós-Cristã”. Sua influência e capacidade de penetração se estendem em direção a Ásia Oriental e os países que a compõe, dos quais destacamos aqui a China, locos de uma parcela considerável dos esforços analíticos contemporâneos dos Estudos Internacionais.
Deste modo, apresentaremos, em caráter exploratório, investigativo e ensaístico, os seguintes tópicos: (a) a discussão sinófona e anglófona sobre o conceito e a ideia do público; (b) o desenvolvimento da Teologia Pública “Cristã” e seus desdobramentos no contexto público chinês, paralelamente ao envolvimento público crescente do Cristianismo na China contemporânea; (c) o papel público da Tradição Reformada Calvinista e de sua Teologia Pública, bem como a possível relação destas para com as discussões aqui pretendidas no contexto público-social e político chinês.
O “Público”: a construção de um conceito na tradição de pensamento chinesa e além
O pensamento chinês carrega consigo uma rica tradição no tocante a construção de um conceito do que venha a ser o “público” (gong). Longe de um reducionismo ou simplismo de significado, adquiriu uma elasticidade conceitual abrangente, fazendo com que o termo gong usado pelos chineses, viesse a parear-se em complexidade com aquele utilizado pela produção acadêmica do Ocidente (RANKIN, 1993).
Chen Ruoshui (2006, p.25-26), citado por Zhibin Xie (2017, p. 382-383), em The Concept of “Public” in Chinese History and Its Modern Deformations[6], propõe uma síntese sobre os tipos conceituais atribuídos à palavra “público” (gong) no decorrer da história chinesa, sendo eles: (1) um significado de origem, do qual deriva-se também a ideia de relações públicas, referindo-se ao governo ou ao governante e suas respectivas decisões, bem como às questões governamentais; (2) um conceito normativo de conotação moral e universal (tianxia) oposto a ideia de “privado”, situado ao final do período dos Estados Combatentes chineses; (3) advindo do Neo-Confucionismo da dinastia Song, a ideia do “público” passa a ter um sentido de “algo bom”, o “princípio fundamental do mundo”, geralmente associado com a ideia de justiça (yi), do que é reto (zheng) e de algo análogo ao paraíso confuciano (tian li); (4) fruto das reflexões advindas da dinastia Ming tardia, ganhou uma conotação de sentido associado com estados de mente, em que a ideia de um âmbito privado passa a existir em prol daquilo que é público; (5) o público como um derivativo do que é comum, como a ideia presente em uma discussão ou opinião pública, de forma análoga aquela praticada na corte imperial, nos assuntos comuns do clã, da família ou de outras expressões sociais – corte pública (gong tang), corporação pública (gong tuan), terra pública (gong tian).
De forma sintética, Ruoshui apresenta duas características fundamentais na compreensão chinesa acerca da ideia do que venha a ser gong (público): uma primeira, ligada às questões éticas-normativas e às relações entre as expressões dicotômicas público-privado; a segunda, raramente tocando a vida social, compõe a esfera governamental de maneira a excluir as demais esferas, fazendo com que a ideia do público “refira-se ao que é oficial ou pertença ao governo – como na suposição de que as relações públicas são responsabilidades do governo”[7]. (XIE, 2017, p.383, tradução nossa).
Xie argumenta ser ainda possível o acréscimo de duas perspectivas complementares àquelas propostas por Ruoshui. Partindo do trabalho de Yuzo Mizoguchi[8] sobre a forma pelo qual o pensamento chinês aborda a ideia do “público”, Xie adiciona duas caracterizações ao conceito da ideia do “público”: a primeira (1), aponta para o uso do conceito na retratação de uma divisão igualitária entre partes; a segunda (2), numa veia interpretativa de aspecto religioso, o uso do conceito implicaria no uso de “público” em relação com a ideia de “Paraiso”[9] ou “Céus”, descrevendo uma disposição para se manter no “caminho”. (XIE, 2017).
Paralelamente ao desenvolvimento de uma esfera pública emergente chinesa, haveria também uma certa preferência acadêmica quanto ao significado dado ao conceito de “público”, partindo de duas tradições, tanto intelectual quanto social. Nos aspectos que lhe são característicos, no conceito de público estaria “(…) uma consciência vaga da multiplicidade de esferas, a existência frágil da vida social e a mistura entre o público e seus servidores, bem como o lugar proeminente ocupado pelo governo nos assuntos públicos”[10]. (XIE, 2017, p. 384, tradução nossa).
Wang Xiaochao (2008), seria um destes que corrobora, mediante sua análise, para com esta ideia de um governo cuja densa presença se faz perceptível nas mais distintas esferas nacionais. Ao apontar para as características e padrões de abordagem do que venha a ser o “público”, Xiaochao ressalta o papel do governo como poder influenciador na esfera ou domínio público, com capacidade de penetração que se estende a esfera religiosa. Seria na arena do domínio político chinês que estaria alojada a esfera pública, unificando em si a nação e sociedade, assim como a moralidade, a religião, a natureza e a ideia de divindade, estabelecendo nesse ‘todo’ a concepção do que venha a ser a ideia do “público”. Nesse sentido, o conceito de “público” na tradição chinesa implicaria na assertiva de que raras são as partes da vida social das quais o governo não seja partícipe, incidindo, inclusive, sobre o contexto atual da China continental.
Paralelamente a análise de Xiaochao, Xie (2017, p.396-397) argumenta em favor de uma sociedade contemporânea chinesa que passa por mudanças estruturais profundas, em que novos grupos de interesse surgem estabelecendo uma vasta gama de demandas sociais, as quais teriam a capacidade de ampliar o debate acerca das questões concernentes ao domínio público e social. Diante deste novo fato no contexto chinês, aponta-nos Xie, seria possível estabelecer novos modelos teóricos em que as esferas (social, econômica e política) poderiam ser tratadas de forma distintas uma da outra, sendo possuidoras de suas instituições e organizações próprias, sendo elas fomentadas pelo governo, ou criadas com um certo grau de independência deste. Todavia, sua análise não é ingênua, pois, mesmo diante de uma realidade em que surge novos fatos e arranjos sociais, “o modelo de vida social é dominado pelo Estado na China contemporânea até o presente momento”[11]. (XIE, 2017, p. 397, tradução nossa).
De forma mais geral, descreve-nos Xie (2017, p. 386-387), o “público” poderá ter um amplo espectro de significados, de maneira a despertar um maior interesse da academia chinesa na busca pela ampliação do debate sobre o tema em questão. Alguns notáveis nomes como Xu Jilin, Wang Hui, Chen Yangu e Wang Yan estão entre aqueles que buscam a popularização, dentro do contexto chinês, do debate sobre as questões públicas. Parte do trabalho destes teóricos têm sido a disseminação de textos referentes às produções de Charles Taylor, Michael Foucault, Hanna Arendt e Jürgen Habermas, para nomearmos alguns.
Xu Jilin[12], por exemplo, editora geral do “Fórum dos Intelectuais” (Zhi shi fen zi lun cong), argumenta de forma crítica, o não ser possível equiparar a formação da esfera pública burguesa europeia, como apontada por Habermas, ao contexto moderno Chinês. No primeiro caso, a esfera pública seria composta de indivíduos da classe burguesa, membros da sociedade civil[13], sendo modelada e influenciada em seu desenvolvimento pelas dinâmicas de penetração do poder e do capital advindos do capitalismo moderno. Já no contexto chinês, a sociedade civil teria uma participação remota, conectando-se às questões relacionadas a criação dos estados nacionais e as reformas sociais. Esta última, sofreu grande revés dado a possibilidade de institucionalização estável na esfera pública, bem como experimentou dificuldades na manutenção da independência e do não partidarismo de seu desenvolvimento público, advindos não do capitalismo, como argumentara Habermas para o contexto ocidental, mas sim da própria influência das dinâmicas nacionais de luta partidária. (XIE, 2017, p.385).
Ademais, juntamente com esta discussão preliminar, é possível delinearmos algumas variações destes modelos tipológicos apresentados acima, via um extenso debate realizado, partindo de 1989, sobre os caminhos teóricos percorridos para a compreensão da ideia de público, os quais brevemente apresentamos aqui[14].
O final da década 1989 e início de 1990 é um período emblemático devido ao fato de que, ali, tem-se a tradução dos textos de Jürgen Habermas sobre a esfera pública ou esfera pública burguesa, para a língua inglesa, proporcionando aos acadêmicos ocidentais focados na história chinesa, um importante insumo teórico na compreensão do tema em questão. Como aponta-nos Alexander Chow (2018, p. 5, tradução nossa), passou-se a “argumentar em favor da relevância do termo no contexto da China continental”[15]. Deste modo, apresentaremos uma panorâmica desta contribuição anglófona sobre a ideia do “público” (gong) no contexto chinês.
Um panorama do debate conceitual anglófono acerca da ideia chinesa do “público”
Nas derivações e variações conceituais advindas do debate acerta da compreensão do significado de gong (público), se estabelece a importante contribuição de William T. Rowe [1989]/(1992)[16], especificamente para a proposta deste artigo, em que se busca enfatizar a emergência de uma esfera pública e social não-governamental aplicada ao que venha ser a ideia do “público”. Mediante os estudos sobre a cidade chinesa de Hankow entre os séculos XVII e XIX, Rowe observa que “em Hankow, o século dezenove viu a gradual expansão, tanto na área de serviços urbanos quanto no bem-estar social, do que poderia ser denominado uma esfera “pública” ou “cívica” extra burocrática”[17]. (ROWE, 1992, p.183, tradução nossa). Nesse sentido, a ideia de “público”, gradualmente migrou de sua relação com o governamental, para se relacionar o coletivo e aquilo que é comum, ganhando inclusive um lugar de prestígio no vocabulário de politização popular. (ROWE, 1992).
Posteriormente, Rowe aponta para o fato de que as origens da concepção extra burocrática, ou “não governamental” (XIE, 2017) da esfera pública, surgiu naquilo que convencionou chamar de “categorização tripartite”[18] – conceito este utilizado no campo de conservação hidrográfica e nas atividades de manutenção das vias urbanas. Esta categorização tripartite consistia na especificação do que seria a responsabilidade “oficial” (kuan), a “privada” (ssu), e de uma categoria intermediária chamada de “popular” (min). Ao final da segunda metade do século dezenove, o termo utilizado para se definir o que estava entre kuan (oficial) e ssu (privado), passou a ser nomeado kung (público). (ROWE, 1992, p. 184). Ademais, seus estudos concentrados na dinastia Qing e no período da República, possibilitou o reconhecimento da opinião pública (gong lun) como um importante fator guia na formação de políticas e análises do desempenho governamental. (XIE, 2017).
Em artigo posterior, Rowe (1993) mesmo reafirmando as aproximações entre um conceito de esfera pública ocidental e o gong utilizado em ambos contextos chineses, a era Qing e o período Republicano, parte para uma percepção crítica em sua análise do conceito habermasiano de esfera pública burguesa. Huang (1993, p.221, tradução nossa), em artigo análise dos escritos de Rowe (1993), percebe o ganho em tal abordagem na medida em que, ao assim fazer, Rowe “traz em foco não somente questões de diferenças e similaridades no nível de superfície, mas também os profundos níveis de análise habermasianos”[19].
Mary Backus Rankin (1990, 1993), citada anteriormente, reverbera os escritos de Rowe ao afirmar não somente que gong (público) adquiriu uma vasta gama de significados para além daqueles utilizados pelo ocidente, como também aponta para a construção do conceito de público que, na prática, estabelece-se além das atividades extra burocráticas. Assim, tem-se a ampliação do “(…) uso do público às atividades extra burocráticas dos homens envolvidos em assuntos locais e sua vinculação a palavras que sugerem solidariedade e esforços comuns, envolvimento das pessoas (elites), bem como dos funcionários e da autonomia social”[20]. (RANKIN, 1993, p. 160, tradução nossa).
Se em um primeiro momento Rankin atesta o fato de que seria inadequado aplicar as minúcias do modelo habermasiano de esfera pública burguesa sobre a história chinesa[21], logo em seguida afirma a adequabilidade da “(…) ideia de arenas intermediárias em que as iniciativas abertas e públicas são realizadas por ambos, os funcionários e a população, demonstrando-se útil na compreensão das relações entre os dois”. (RANKIN, 1993, p. 160, tradução nossa)[22]. Ademais, estas esferas demandariam “(…) a presença do estado, um grau de envolvimento social autônomo ou voluntário, algum impacto social sobre a política e uma ideia legitima do bem comum”[23]. (RANKIN, 19, p. 160, tradução nossa).
O movimento teórico por ela proposto, como demonstrado por Huang (1993)[24], transitaria de uma apropriação mecânica do conceito habermasiano de esfera pública burguesa – apropriação esta, amplamente criticada por Frederic Wakeman (1993) – para um uso mais abrangente do termo, relacionando-o a uma ideia de múltiplas esferas públicas aplicado à China. Ao assim fazer, Rankin estaria afastando-se de uma abordagem dicotômica entre Estado e esfera pública, ao mover-se em direção a uma “concepção trinária habermasiana de uma esfera pública intermediária entre o Estado e a sociedade”[25], corroborando para com parte da proposta teórico-analítica apresentada por Huang (HUANG, 1993, p. 221, tradução nossa).
Richard Madsen (1993), utilizando do aspecto filosófico-moral habermasiano, especificamente, o ideal moral-cultual como um padrão universal, aponta para a incapacidade tanto do Ocidente, quanto da China contemporânea, em se comprometer com estes aspectos morais que sustentaria as estruturas sociais contemporâneas de maneira livre, como idealizado pelas democracias modernas. A expectativa de Madsen estaria na possibilidade de um maior engajamento chinês, via uma agenda canalizadora destas ideias, principalmente na parcela populacional chinesa não ligada ao governo central, bem como em sua comunidade acadêmica. Edward Gu e Merle Goldman ([2004]/2005, p.13, tradução nossa) propõe que, dado o fato de que “a elite governante chinesa abandonou a ideologia marxista-leninista ortodoxa e o pensamento de Mao Zedong, alguns membros da nova geração de líderes do Partido-Estado manifestaram interesse na social-democracia”[26], muito embora não haja sinalização de que intentam fazer desta uma ideologia oficial[27].
Heath B. Chamberlain (1993), por seu turno, foca numa discussão voltada para se pensar uma possível “sociedade civil” chinesa emergente, em termos de um “reino da virtude” ou de uma “democracia incipiente”[28] (HUANG, 1993, p. 223, tradução nossa), na qual se faria necessário a aproximação do Estado em certas áreas, sendo este capaz de “encorajar a emergência de cidadãos da sociedade”[29]. (CHAMBERLAIN, 1993, p.211, tradução nossa).
Esta sociedade civil estaria então, gradualmente emergindo na China dos dias atuais, ainda que não seja um consenso entre os historiadores chineses. Diante disto, aponta-nos Chamberlain, seria correta a assertiva de alguns em afirmar um desenvolvimento de longo prazo para esta sociedade civil na China, entretanto, seria necessária uma abordagem deveras cautelosa, “para não tomar qualquer sinal de “independência, ou potencial independência, contra o poder do Estado” (Strand, 1990:12), como prova prima facie de sua presença.”[30]. (CHAMBERLAIN, 1993, p. 213, tradução nossa). Apesar da limitação nas evidências quanto a presença de uma Sociedade Civil chinesa, Chamberlain aponta para certas nuanças que denunciariam sua emergência, advindas da interação entre Estado e Sociedade, colocando-a entre ambos.
Huang (1993), em primeiro lugar, estabelece uma análise crítica das contribuições anteriores, apontando, inclusive, para a imprecisão ao se buscar aplicar sobre a China, um modelo dicotômico entre autonomia social e poder estatal, seja ele ligado a era Qing, ao período da República ou ao quadro político-social contemporâneo chinês. Hung recomenda as percepções advindas deste extenso debate, na medida em que apontariam para uma alternativa distinta daquelas polarizadas e dicotômicas. Ele próprio, partindo também da teoria de Habermas, propõe um conceito de esfera pública como um “Terceiro Domínio” (Third Realm), uma esfera intermediária entre o Estado e a Sociedade em que ambos operariam de forma participativa e atuante. Diante desta categorização, seria possível estabelecer uma definição mais inequívoca do que aquela da “esfera pública” habermasiana, na medida em que buscaria um “terceiro espaço conceitualmente distinto do Estado e da Sociedade”[31], prevenindo ainda, as tendências reducionistas que buscam alocar este “terceiro domínio” no Estado ou na Sociedade. (HUANG, 1993, p.225, tradução nossa).
Todavia, as discussões contemporâneas estabelecidas no início dos anos 2000 até os dias atuais, como demonstra-nos Alexander Chow (2018), tem buscado ressaltar a dificuldade e limitação do intercâmbio de termos usados no Ocidente, partindo de Habermas, para uma aplicação direta no caso da China.
Gu e Goldman (2005) apontam para a inaplicabilidade do conceito de Habermas de “esfera pública” para os estudos sobre a relação entre Estado e Sociedade no caso da China, pelo fato de que, em Habermas, este conceito seria mobilizado para apontar um modo de integração social não cabível a história chinesa. Ambos propõem o uso dos termos “‘esfera pública’ ou ‘espaço público’ em um sentido livre de valor, para referir-se simplesmente a arena social entre o Estado e a Família”[32]. (GU; GOLDMAN, 2005, p.9, tradução nossa). Outros termos têm sido utilizados na tentativa de se referenciar a este espaço intermediário entre Estado e Sociedade, ou aquele entre Estado e Família.
Chow (2018, p. 7, tradução nossa) corrobora com este entendimento apontando-nos, em seu recém lançado trabalho, o fato de que a compreensão acadêmica sobre esta temática, compreensão esta da qual compartilha e faz uso, transita, de forma livre, entre as diversas nomenclaturas cunhadas para expressar uma realidade atual do contexto social chinês:
Independentemente do termo utilizado, os debates em torno da utilidade de categorias como a esfera pública, a praça pública ou o espaço público na China, destacam a importância desse período em que os intelectuais chineses veem a possibilidade de uma voz pública mais forte – uma voz pública mais forte deles na sociedade chinesa[33].
Neste contexto, uma análise apropriada sobre a compreensão do “público”, demandará também o lançar de olhos sobre o papel do Cristianismo chinês neste processo. Se há algo inerente a fé cristã em torno do globo, este algo estaria relacionado a sua própria natureza pública de ser e de se expressar, o que incluiria o contexto chinês, principalmente deste o fim do período da Revolução Cultural em 1976. (CHOW, 2018).
Nas Américas, na Europa e, de forma crescente, na China Continental, há um debate já estabelecido sobre o papel da produção intelectual cristã acerca no e acerca do espaço público, via o que convencionou-se chamar de “Teologia Pública”. A Teologia Pública, enquanto um campo do saber humano, tem auferido largo terreno no território acadêmico, envolvendo-se com as mais distintas áreas do saber humano, incluindo as Ciências Humanas em geral. Sua produção literária estabelece-se mediante uma “variedade de tradições Cristãs – Católica, Reformada, Anglicana, Anabatista, e muitas outras”[34]. (CHOW, 2018, p. 7, tradução nossa).
É necessário examinarmos a qualidade, bem como o desenvolvimento chinês desta Teologia Pública. Neste processo, buscamos compreender igualmente “se” e “como” o Cristianismo chinês se insere no debate acerca do “espaço público”, qual seria seu envolvimento para com este espaço, principalmente no tocante a sua produção intelectual sobre o tema aqui em relevo. Nesse sentido, traremos no tópico seguinte a exposição do que venha a ser a Teologia Pública Cristã, seu desenvolvimento e desdobramentos na China contemporânea. Ao assim fazermos, buscamos estabelecer bases para, posteriormente, averiguar uma possível relação do Cristianismo e da Teologia Pública chinesa para com o debate referente a ideia do “público” no contexto chinês.
A Teologia Pública Cristã e seus desdobramentos no contexto público chinês
Compreender o que venha a ser uma Teologia Pública Cristã, e esta, dado seu contexto chinês, demandará a devida discussão acerca dos termos que a referenciam, bem como seu significado dentro do enquadramento histórico-cultural chinês, aplicada a produção sino-teológica[35] contemporânea. (XIAOFENG, [1956] / 2015).
A Teologia Pública[36], enquanto campo de pesquisa derivada da Teologia, segue em seu crescimento exponencial na medida em que o debate, tanto na América do Norte, quanto na Europa, sobre o papel dos intelectuais cristãos no âmbito público e do próprio Cristianismo em si, também ganha igual notoriedade. Neste engajamento público do pensamento cristão, há igualmente o crescente desenvolvimento de uma rica literatura proveniente da ampla variedade de tradições que compõe o Cristianismo.
Não obstante, como fruto deste contexto, o pensamento cristão aplicado aos estudos teológicos, estabelece certo entendimento de que a Teologia Pública deverá lidar não somente com questões de global alcance dentro desta realidade globalizante[37] cada vez mais contundente, mas também, deverá mobilizar-se observando os específicos contextos no qual está inserida e a partir do qual é formulada. Isto se torna mais evidente na medida em que observamos certas iniciativas como a Global Network for Public Theology e a International Journal of Public Theology, que apontam para uma comunidade epistêmica teológica cada vez mais consciente da necessidade de “(…) entendimentos mais regionalmente específicos do engajamento público do Cristianismo”[38]. (CHOW, 2018, p. 7, tradução nossa).
Max L. Stackhouse tem sido um importante proponente ocidental na produção acadêmica em Teologia Pública e no envolvimento desta com as mais distintas áreas do saber humano. Dele, por exemplo, advém uma importante conceituação que distingue a Teologia Política da Teologia Pública. Para Stackhouse (2004), enquanto a Teologia Política se ocupa com o exercício de poder proveniente do Estado, a Teologia Pública estabelece um foco na sociedade civil. Ao focar na Teologia Pública e em sua ênfase, Stackhouse apontará para o reconhecimento da primazia das tradições espirituais, sociais e éticas de uma sociedade, em detrimento da ordem política. Assim, partindo desta percepção, afirma Stackhouse (2004, p.289, tradução nossa) que:
(…) partidos políticos, regimes e políticas vem e vão; elas são sempre necessárias, mas elas também são subprodutos das tradições religiosas, culturais, familiares econômicas e sociais que antecedem ao governo, e todo governo é, mais cedo ou mais tarde, responsabilizado perante deles.[39]
A Teologia Publica em Stackhouse, atuaria de maneira a compreender a forma pela qual a sociedade civil molda as políticas públicas, bem como sua maneira de interagir com as instituições políticas presentes em seu contexto. Destarte, Stackhouse atesta a capacidade do aspecto religioso dos indivíduos e das sociedades em moldar os interesses econômicos, materiais e de poder. Isso se dará mediante o fato de que indivíduos, “de forma consciente ou inconsciente, fundem seus “interesses espirituais” com seus “interesses culturais” e seus “interesses materiais” em maneiras que confirmar ou desafiam, alargam ou reformam um etos”[40]. (STACKHOUSE, 2007, p.81, tradução nossa).
Contudo, a Teologia Pública aqui pretendida, será aquela que se aloja no Cristianismo e na produção cristã de pensamento, ambos inseridos no contexto chinês. Deste modo, necessário é definir aquilo que chamamos de Cristianismo ou pensamento cristão neste contexto, bem como a respectiva relação deste para com a Teologia Pública ali produzida.
Alexander Chow (2014, p.159) aponta-nos em Calvinist Public Theology in Urban China Today, que tratar da fé cristã no contexto chinês contemporâneo, nos demandará compreender o uso interno do termo “Cristianismo”[41] (jidujiao) em relação as suas principais vertentes, sendo elas a linha protestante e a linha católica. Majoritariamente, jidujiao (Cristianismo) se estabelece como um sinônimo para “Protestantismo” (xinjiao), raramente sendo aplicado para referenciar-se ao “Catolicismo” (tianzhujiao) ou ao “Cristianismo Ortodoxo” (dongzhengjiao). Nesse sentido, o uso do qualitativo “cristã”, “cristão” e “cristianismo”, associados aqui a “Teologia Pública” e aplicadas no contexto chinês, deve ser compreendido como aquele que faz menção ao Cristianismo Protestante, ou Protestantismo, salvo em casos em que se especifique o contrário ou seja apontado um contexto distinto deste que aqui abordamos.
Tendo postulado isto, igualmente necessário é a compreensão do que venha a ser então, a Teologia Pública, fruto inicialmente da produção intelectual cristã ocidental, e seu desenvolvimento no contexto chinês contemporâneo.
No âmbito chinês, como aponta-nos Zhibin Xie (2017), o desenvolvimento de uma ideia sobre Teologia Pública, partindo do próprio pensamento cristão, poderia ser traçado desde o período da República da China na medida em que, é da própria natureza do Cristianismo chinês[42] o participar dos debates sociais de caráter público, seja na busca pela defesa da fé cristã, dos direitos educacionais, na luta pela desiguale, na oposição às agressões advindas dos atos imperialistas ou de qualquer outra questão que julgou ser necessária. Este engajamento esteve associado com a crença sobre a necessidade tácita que tanto os indivíduos, quanto a sociedade, tinham de uma entidade (Deus) capaz de viabilizar as estruturas basilares necessárias para a consolidação e o desenvolvimento destas. Se Deus é necessário aos seres humanos e a sociedade, então se fazia igualmente necessário o desenvolvimento não somente de uma teologia para a vida dos indivíduos, mas também, uma teologia para a vida pública.
Isto se torna ainda mais evidentes pós século XIX. Na primeira metade do século XX, testemunhou-se uma forte interação entre o Cristianismo e a sociedade chinesa, de maneira a torna-lo cada vez mais partícipe das dinâmicas e da vida social. Seja no âmbito educacional, médico ou do trabalho social, o Cristianismo se mobilizou provendo meios auxiliares na tarefa de reconstrução da sociedade chinesa, primordialmente sintetizados nos idos de 1920 e 1930 com o Movimento Cristão Chinês de Construção Rural (XIE, 2017). Aqui se faz importante ressaltar que, na construção da sociedade civil chinesa, tanto o Protestantismo como o Catolicismo na China, ambos desempenham importante papel como colaboradores deste processo. (LIM, 2013)[43].
Embora houvesse uma expectativa quanto a “morte” do Cristianismo chinês nos anos de 1970, as políticas de Deng Xiaoping para uma agenda além da ortodoxia Maoísta corroboraram para uma ampla abertura religiosa interna, promovendo aquilo que ficou conhecido como “febre do Cristianismo” (Jidujiao re), ocorrendo por toda a China diante do surto de conversões à fé cristã protestante. Estabeleceu-se nos mais distintos setores da sociedade chinesa, incidindo inclusive nos movimentos intelectuais conectados ao Segundo Iluminismo Chinês (di er ci qimeng), também conhecido como Novo Iluminismo (xin qimeng). (CHOW, 2013; 2018).
As condições estabelecidas no decorrer de três décadas, iniciando-se entre os anos de 1979 e 1980, possibilitaram ao Cristianismo chinês não somente um constante envolvimento em questões públicas, mas também, acarretou em um aumento da percepção desta voz pública proveniente da fé cristã na China. (CHOW, 2014; 2018).
Xie (2017, p.391, tradução nossa), ao discorrer sobre as dinâmicas espinhosas de desenvolvimento do campo da Teologia Pública chinesa, e da base teológica da qual ela se vale, nos informa que “O debate na China é focado majoritariamente na ideia de Max L. Stackhouse sobre Teologia Pública”[44]. Todavia, mesmo havendo a constatação de que Stackhouse tem sido lido e utilizado por parte da comunidade teológica chinesa, seu uso não vem destituído de uma postura crítica diante de suas análises e conceituações.
Wai-Luen Kwok (2015), inserido dentro de um contexto específico ligado ao Cristianismo em Hong Kong – sendo figura influente na produção acadêmica em Teologia Pública Chinesa[45] – aponta para a possibilidade de que as assertivas provenientes de Stackhouse, venham a ser inadequadas diante da realidade asiática como um todo. Kwok irá preferir outra definição do que venha a ser a Teologia Pública, valendo-se de E. Harold Breitenberg Jr (2010, p. 5, tradução nossa) quando diz:
A teologia pública é um discurso público descritivo e normativo informado teologicamente sobre questões públicas, instituições e interações, dirigido à igreja ou a outro corpo religioso, bem como público ou públicos em geral, e argumentado de maneiras que podem ser avaliadas e julgadas por meio de garantias e critérios públicos.[46]
Alexander Chow (2018), por seu turno, faz coro à postura crítica apresentada por Kwok (2015), apontando para os limites das análises advindas de Stackhouse que privilegiaram as preferencias discursivas do Ocidente. Esta inadequação analítica se faria evidente, por exemplo, diante do fato de que, o sistema legal chinês concede somente a liberdade de crença religiosa (zongjiao xinyang ziyou), e esta vista como uma questão de cunho privado, em contraposição a liberdade religiosa (zongjiao ziyou).
Ademais, aponta-nos Chow (2018, p.8, tradução nossa), diferentemente do esquema distintivo proposto por Stackhouse, entre o foco da teologia política e o da teologia pública – a primeira se ocupa das dinâmicas do poder do Estado, ao passo que, a segunda foca-se na sociedade civil, no contexto chinês – “o engajamento religioso para com a sociedade civil, necessariamente significará o engajamento religioso para com os poderes políticos”[47]. Desta maneira, Chow procura apresentar em sua abordagem teológica-social sobre o “público” chinês, uma proposta em que a Teologia Pública e a Teologia Política seriam campos de pesquisa relacionados e complementares.
Estas discussões teriam a capacidade para demonstrar a grande complexidade e particularidade não somente do que venha a ser a compreensão do “público” no âmbito chinês, mas também, da própria peculiaridade inerente a Teologia Pública no mesmo contexto.
Zhibin Xie (2017, p. 395) estabelece, de forma apropriada em nosso parecer, aquilo que seria o cerne das atuais discussões em Teologia Pública no contexto chinês. Basicamente, no centro do debate tem-se (1) a ideia e o conceito do “público” proveniente das tradições sociais e intelectuais chinesas, (2) o aspecto público da tradição cristã e (3) a questão referente a sua natureza teológica. Tal debate nos auxilia na compreensão da continuidade e evolução da esfera pública chinesa, desde seu perídio tradicional até sua forma contemporânea. E assim o faz ao abarcar questões inerentes a este contexto chinês no qual está inserido, ao demandar o lidar com o “problema indenitário dos grupos religiosos enquanto organizações sociais, sua interação com o Estado e a vida social com um todo, e a interação com outras fontes intelectuais quando os valores cristãos se engajam no discurso em um assunto particular”[48]. O ponto fulcral para Zhibin Xie (2017, p. 298, tradução nossa), no tocante ao papel da Teologia Pública, estaria no fato de que, é de sua própria natureza “estar preocupada com o engajamento público da igreja”[49], o que, no contexto chinês, demandaria ressaltar “uma importante dimensão para a expressão local de uma fé pública”[50].
O Cristianismo que em meados de 1980 teve seu crescimento associado aos convertidos considerados como os mais vulneráveis, nomeados de “os quatro mais” (si duo), dentre os quais incluíam-se os mais velhos, muitas mulheres, os mais iletrados e os mais enfermos, viu-se a migrar, a partir dos anos de 1990, para um tipo de indivíduo chinês mais jovem, mais formalmente educado e inserido em um contexto majoritariamente urbano. E isto incluiria não somente aqueles cristãos já inseridos nas igrejas institucionais, vinculadas ao Three-Self Patriotic Movement – TSPM[51] – (Zhongguo jidujiao sanzi aiguo yundong), ou daqueles partícipes do China Christian Council – CCC[52] – (Zhongguo jidujiao xiehui). Antes, o movimento expansionista público-urbano chinês também se deu no universo acadêmico ligado às universidades seculares chinesas, através dos “cristãos culturais” (wenhua jidutu) – cristãos acadêmicos provenientes do campo das Ciências Humanas e Sociais que não se vincularam a igreja institucional formalizada, por pensarem serem esta demasiadamente retrógrada e restritiva.
Na realidade, neste contexto dos anos de 1990, o Cristianismo urbanos chinês produziu dois tipos de cristãos, os quais exerciam forte influência nas dinâmicas públicas urbanas nas quais estavam inseridos: os assim chamados “patrões cristãos” (laoban jidutu) e uma “elite intelectual cristã” (zhishi jingying). O primeiro, era composto por executivos e donos de negócios, o segundo, ainda que menor em número, compunha o quadro de professores universitários, funcionários de grandes empresas internacionais de capital misto, institutos de pesquisas e hospitais. (CHOW, 2014).
Algo fundamental de se perceber neste contexto, seria o fato de que, para além do arranjo institucional associado ao TSPM e a CCC, é possível o reconhecimento da existência de outras expressões e configurações da fé cristã protestante no contexto chinês: (1) as “Igrejas nos Lares”[53] e suas variantes de características separatistas, e (2) as “Igrejas Intelectuais” urbanas, também conhecidas como “Terceira Via” (disan daolu), “Terceira Igreja” ou “Igreja Emergente” (xinxing jiaohui), muitas destas caracterizadas pelos movimentos academicistas ligados a uma comunidade intelectual e universitária de protestantes calvinistas. Alexander Chow e outros, têm apontado para o fato de que, este Cristianismo, ainda que distinto em sua organização e manifestação pública, sofrendo conformidades e limitações diante de seu contexto chinês, tem se demonstrado relevante em toda a discussão em torno do que venha a ser o “público”, contribuindo tanto em seu arrazoar teórico-conceitual, como também em sua práxis social dentro da china rural e urbana. (CHOW, 2014).
Isto, curiosamente, incluiria também uma participação crescente e ativa no universo digital por parte dos cristãos protestantes e das comunidades por eles organizadas, a partir dos 1990, dado a emergência de uma sociedade civil contestadora chinesa. Até os dias atuais, o Cristianismo chinês se vale de estratégias cibernéticas para a distribuição de textos, artigos e sua produção teológica-doutrinária, formando verdadeiras “comunidades online” (online communities) em torno da propagação de um “evangelho online” (online gospel), tanto para a igreja regulamentada pelo governo via a TSPM, quanto para com aquelas que operam desligadas deste como a “Igreja nos Lares” e a “Igreja Intelectual”. Alguns importantes exemplos deste engajamento público-cibernético, seja em sites ou periódicos online, são: (a) “Missão Chinesa de Internet Cristã”[54], (b) Aiyan – “O Banquete”[55], (c) Maizhong – “Sementes de Trigo”[56], (d) Jiaohui – “Igreja China”[57], (e) Fuyin shibao – “Tempos do Evengelho”[58].
Grande parte do envolvimento Cristão na esfera pública e social chinesa atualmente, têm sido via o trabalhado cristão de caridade, amplamente reconhecido pelo governo e pela sociedade chinesa. Desde o ano de 2012, o governo chinês estabeleceu oficialmente, mediante documento intitulado de “Uma Proposta sobre o Incentivar e o Regulamentar dos Círculos Religiosos Envolvidos em Atividades de Caridade”[59], grandes áreas de atuação religiosa voluntariada para o auxílio social como assistência em desastres, auxílio no trato com a pobreza, doações para educação, serviços de saúde, proteção ambiental, auxílio nas construções de estabelecimentos públicos, dentre outras atividades reconhecidamente intituladas de “caridade”. Mesmo havendo restrições quanto ao acesso aos assuntos sociais e públicos na China, os grupos religiosos ainda se estabelecem como as maiores organizações sociais não-governamentais atuando no ceio da sociedade civil chinesa. (XIE, 2017, p. 398-399).
Ao pensarmos sobre a influência pública da Teologia Cristã no contexto Chinês atual, principalmente naquele tipificado como urbano, se faz notório o resgate e a presença crescente de uma matriz teológica fundamental para o envolvimento e o desenvolvimento do Cristianismo protestante no debate acerca do “público”, assim como em sua práxis neste contexto. Esta matriz estaria estruturada sobre a produção teológica-filosófica advinda dos escritos de João Calvino, e de toda uma tradição reformada decorrente deste, melhor conhecida como Calvinismo.
Se a proposta da Teologia Pública cristã, como tratada até o presente momento, se estabelece sobre uma demanda constante de comunicação dos valores e das ideias cristãs na esfera pública e social, mediante uma linguagem não cristã inteligível ao contexto público, seja dialogando, criticando ou sendo criticado, o Calvinismo, por tradição e natureza, se estabeleceria como aquele que, historicamente, destaca-se no exercício desta tarefa em torno do globo. No caso chinês, parece haver indícios de que o Calvinismo e a tradição reformada que o acompanha, têm tido certo êxito na tarefa de engajamento para com as questões sociais e públicas, influenciando as dinâmicas e os debates nesta esfera, via sua Teologia Pública (CHOW, 2014; 2018; XIE, 2017).
Assim, de forma sintética, passaremos a exposição do Calvinismo e da tradição Reformada, bem como da Teologia Pública derivada deste, em seu envolvimento com o público e o social no contexto urbano chinês contemporâneo, como um possível caminho na construção de um diálogo, e de antítese, em direção uma maior participação cristã nos debates e nas dinâmicas referentes a esfera pública e social não-governamental.
A influência pública da Tradição Reformada Calvinista e seu desenvolvimento no contexto chinês
Se a teologia protestante na china pós-Mao buscou dar maior ênfase nas “teologias enraizadas em persuasões fundamentalistas, pietistas e nas chamadas ‘pentecostais’”[60] (CHOW, 2014, p. 164, tradução nossa), teologias estas com uma forte tendência separatista em relação ao seu envolvimento para com a sociedade chinesa, atualmente há um movimento de retorno aos escritos e ensinamentos do importante reformador genebrino João Calvino, bem como da tradição reformada desenvolvida a partir de sua produção teológica. Diferentemente da primeira, a teologia calvinista no contexto chinês tem se estabelecido como um importante insumo fomentador do engajamento público e social cristão, via uma Teologia Pública Reformada que busca vigorosamente contextualizar-se.
Não sendo novo na China continental, o Calvinismo estabelecido no início do século XX por missionários reformados europeus e americanos implantadores de igrejas, sofreu revés mediante o ato unificador de adoração pública chinês em 1958, até seu abafamento diante da Revolução Cultural Chinesa. Após três décadas deste o término da revolução e, principalmente, diante da possibilidade de reabertura das igrejas na década de 1980, o Calvinismo na china experimentou desde fortes oposições vindas de parte da liderança ligada a TSPM e a CCC, quanto importante apoio proveniente de figuras ligadas a igreja governamentalmente sancionada, como é o caso do vice-presidente do Seminário Teológico da União de Nanjing, Wang Amimg, cujo PhD desenvolveu-se em torno da importância de Calvino e do Calvinismo para a igreja na China (CHOW, 2014).
Será nos idos de 1980, após as reformas políticas propostas por Deng Xiaoping de abertura, o despertar da “febre do Cristianismo” (Jidujiao re) e os protestos da Praça Tiananmen (1989), que se passou a ter um despertamento do interesse acadêmico chinês para com o Calvinismo, via a leitura de Max Weber sobre a ética proveniente do Protestantismo, o surgimento da modernidade e do capitalismo no contexto ocidental. Paralelamente a isto, deve-se ter em mente a influência das dinâmicas domésticas e externas chinesas sobre este contexto, como o levante chinês no mercado global, o rápido processo de urbanização difundido sobre todo o país e a abertura controlada da China diante do mundo, possibilitando um canal de acesso para com o ocidente. Estaria estabelecido assim, juntamente com toda uma cadeia produtiva acadêmica sociológica e teológica, incluindo aqui aquelas produzidas pelos intelectuais cristãos (jidutu xueren), o ambiente propício para a redescoberta e o uso do Calvinismo na China. E não somente nas estruturas eclesiásticas urbanas e acadêmicas, mas também tendo forte influência sobre parte da “Igreja nos Lares”, especificamente, as comunidades desenvolvidas sobre o modelo “Wenzhou” em que a teologia reformada de base calvinista se faz predominante (CHOW, 2018; WIELANDER, 2013).
Diante dos relatórios produzidos pelo banco de dados chinês para periódicos acadêmicos, entre os anos de 1956 e 2010, mais de quatro mil artigos faziam menção a Calvino ou ao Calvinismo, sendo que, grande parte deles, são datados do período pós anos de 1990. Chow (2018) demonstra que isto se dá, em boa medida, devido ao aumento das “igrejas intelectuais” em contexto urbano, cujos pastores e líderes eram, em sua grande maioria, associados ao meio academicista daqueles intelectuais cristãos (jidutu xueren).
Se o Cristianismo, operando com o consentimento do governo chinês, já havia promovido trabalhos e serviços em prol do bem comum social, é em meio aos cristãos calvinistas e as “igrejas intelectuais” que questões públicas e sociais, ligadas às mais distintas esferas sociais da China, passam a receber maior atenção e envolvimento por parte do Cristianismo chinês. Questões como o Estado de Direito e o Constitucionalismo, passam a compor o exercício e o arrazoar teológico público cristão, de maneira mais presente no contexto urbano, além do engajamento público no movimento de defesa dos direitos (weiquan yundong), via um movimento de diálogo e antítese característico do Calvinismo e da tradição reformada que dele se desdobra. (CHOW 2014; 2018; XIE, 2017).
Este engajamento público, aponta-nos Chow (2014), irá compor boa parte do envolvimento público do Calvinismo[61] dentro dos círculos intelectuais urbanos na China. A defesa dos diretos (weiquan) se daria mediante o envolvimento de advogados e magistrados cristãos e não cristãos, buscando a defesa de indivíduos que sofrem com a opressão vinda do governo da China. Hodiernamente, ao Cristianismo é atribuído também o importante papel de contestador deste governo chinês contemporâneo, e isto, nos assuntos dos mais diversificados. (CHOW, 2014; WIELANDER, 2013).
Se há algo inerente a teologia cristã, em especial, àquela reformada e calvinista, como aponta-nos Wielander (2013, p. 8, tradução nossa) em seu livro Christian Values in Communist China, seria o fato dela não somente demandar “uma exegese bíblica ‘correta’, mas também o prover diretrizes para a organização e gestão das igrejas, bem como para com o papel e a responsabilidade da igreja em relação à sociedade e à cultura”[62]. A teologia calvinista e a tradição reformada que dela se desenvolve, demandam uma Teologia Pública engajada com as questões público-sociais no contexto em que se insere, seja mediante o diálogo ou a contestação (antítese), como falamos a pouco.
Seu papel contestador poderá ir além, sendo visto nos atuais debates em torno do constitucionalismo, e este, em relação ao governo chinês. Basicamente, críticas têm sido levantadas contra o sistema legal na China, as quais apontam para o fato de que sua operação tem se dado mais sobre o modelo de “governo por decreto” (rule by law) do que via o “Estado de Direito” (rule of law). Isto implicaria no fato de que o uso da lei por parte do governo, estaria promovendo um contexto de opressão sobre o povo, ao invés de ser um mecanismo de constrangimento, como se dá no contexto ocidental, estruturado sobre o primado e o legado do Cristianismo.
Há uma relação entre o pensamento cristão reformado e o constitucionalismo, proveniente da teologia que lhe da base. Por meio desta, depreende-se uma noção clara de comunidade pactual em que cristãos e não cristãos estariam inseridos harmoniosamente. Isso não seria dizer, entretanto, que o constitucionalismo deveria ser construído sobre uma teologia cristã, mas que o pensamento Calvinista seria aquela perspectiva teológica de maior robustez, capaz de prover, mediante seu esforço público-teológico, uma forte base em favor das políticas constitucionais e da lógica de um poder transcendente que sustentaria a defesa reformada em favor da separação entre Estado e Igreja. (CHOW, 2014, p.167).
Wang Yi (2012), um acadêmico da área do direto, pastor e teólogo público reformado, tem sido um bom exemplo, juntamente com outros líderes e pensadores cristãos, daqueles que saem em busca da defesa dessa lógica de contestação ao governo. Um importante documento produzido em agosto de 2015 por Yi e um grupos de líderes cristãos com repercussão interna e internacional à China, foi aquele intitulado de “As 95 teses da Igreja Reformada Chinesa”, documento esse amplamente divulgado via a rede global de computadores. Neste documento, seus formuladores desafiam o Estado e as igrejas chinesas na medida em que debatem temas como soberania, autoridade, governo e igreja, partindo de uma teologia reformada que os sujeitam aos decretos e a soberania do próprio Deus apregoado pela fé cristã reformada.
Destarte, os pontos altos deste manifesto estariam ligados ao seu ímpeto reformista, assemelhados aos atos perpetrados pela reforma protestante no século XVII, via Matinho Lutero. Questões como a relação Estado-Igreja (teses 45 a 72), a rejeição a “sinonização” do Cristianismo (teses 32 a 39) e a crítica a igreja regulamenta pelo governo (teses 73 a 95)[63], estariam na pauta da igreja reformada em seu engajamento público (STARR, 2016).
O movimento de antítese, como se pode observar, é parte constituinte das dinâmicas inerentes a tradição de pensamento calvinista e do legado reformado que dele se desenvolve. Contudo, não só de antítese vive a teologia reformada. Se há um fulcro para o movimento intelectual proveniente desta tradição de pensamento, além da contestação e contestação, seria igualmente o diálogo (duihua). E não somente ao Calvinismo em si, mas partindo da tradição de pensamento reformada que o toma como base, temos, por exemplo, o Neo-Calvinismo[64] proposto pelo teólogo público, reverendo, cientista político e antigo primeiro ministro na Holanda, chamado Abraham Kuyper (2014).
A tradição de pensamento Neo-Calvinista, ou Reformacional – temos apresentado isto em outros lugares (MARQUES, 2017a; 2017b; 2017c) – tem sido virtuosa na provisão de um profícuo meio de diálogo e de antítese para com questões das mais distintas ordens do saber humano, incluído aqui as matérias referentes a Política, a Economia e a Economia Política, a Sociologia, a Teologia, os Estudos Internacionais, e outras tantas. Se faz presente, inclusive, dentro do engajamento e das discussões acerca do público e do social, mediante a Teologia Pública proveniente deste Cristianismo reformado, que engloba calvinistas e neo-calvinistas no contexto chinês contemporâneo.
Chow (2014) nos apresenta o esforço por parte da igreja reformada chinesa e de seus intelectuais, de buscarem uma abordagem dialogal mais direta com o governo chinês sem a mediação do Estado via a TSPM. Isto estaria sintetizado, por exemplo, no caso da Igreja Shouwang, pastoreada pelo “intelectual cristão” Jin Tianming, que pleiteia seu registro direto, junto ao governo chinês, como um grupo social autônomo. Esta modalidade de registro se tornou possível a partir do ano de 2005 com a nova regulamentação promovida pelo governo da China.
O grande intento de igrejas como a Shouwang, seria o de estabelecer um melhor diálogo com o governo civil, sem com isso, comprometer sua ortodoxia doutrinária como o fazem as instituições ligadas a TSPM. A crença orbitaria a ideia de que o registro, ao invés da clandestinidade praticada por alguns grupos, permitiria a Igreja Chinesa envolver-se com sua missão em direção a sociedade. Esta perspectiva estaria enraizada na ideia reformada do “mandato cultual” que informa a todo cristão e igreja, de sua responsabilidade no envolver-se e no influenciar da cultura em que está inserido, nas mais distintas esferas que a compõe. Para Chow, estaria presente aqui também a ideia kuyperiana das “Esferas de Soberania”, em que a soberania do Estado e a soberania da Igreja existiriam simultaneamente lado a lado, estabelecendo os respectivos limites em sua própria esfera de atuação e a possibilidade de cooperação. (CHOW, 2014, p. 167-168; CHOW, 2018, p.143).
No conceito kuyperiano de “Soberania das Esferas”, ou “Esferas de Soberania”, ressoando sua herança Calvinista, estaria presente a ideia de que nenhuma soberania seria absoluta em si mesma, principalmente ao ser posta em relação a soberania absoluta que é encontrada somente na pessoa da Divindade judaico-cristã. Assim, cada esfera da sociedade, composta pelo Estado, Família, Igreja, Educação, Trabalho e quantas outras esferas houverem, operariam de acordo com a soberania legada de sua própria esfera. Assim, Kuyper propunha que nenhuma esfera de soberania poderia exercer domínio sobre outra. Caberia ao Estado, dado a natureza de justiça pública e social de sua própria esfera, ser o mantenedor da ordem entre as esferas, impedindo o transbordamento entre elas. (KUYPER, 1880).
Como aponta-nos Chow (2018), esta estrutura de pensamento é assimilada pela democracia ocidental de uma melhor forma, bastando-nos os exemplos do modelo estadunidense e do holandês, mas é estranha e até mesmo hostil para com o contexto político-social chinês atual. Todavia, fato é que em casos como os da Igreja Shouwang e de outras inseridas no contexto urbano chinês, em que se busca uma relação direta com o governo civil e uma maior autonomia em relação ao Estado, a estrutura de pensamento reformada teria condições – e tem sido aquela – que lhes provém a base ideacional para a operação pretendida.
Outros intelectuais cristãos chineses como Yu Jie, Bei Cun e Fan Yafeng, tem ecoado esta ideia kuyperiana na medida em que apontam para a conexão entre o Calvinismo e o engajamento político-social inerente a este na esfera pública. Um exemplo estaria na proposta da “evangelização da cultura” (wenhua fuyin hua) mediante o uso das expressões artísticas como meio propagador dos valores e das ideias cristãs, visando assim, uma mudança política e social chinesa via seu engajamento cultural e intelectual público. (CHOW, 2018).
Diante deste mosaico analítico apresentado, algumas considerações finais se fazem necessárias no intuito de se apontar algumas questões referentes aos desafios e possíveis caminhos do Cristianismo na China, assim como possíveis entraves e limitações no tocante ao seu papel no debate, no envolvimento e no desenvolvimento da esfera pública neste contexto.
Apontamentos finais
A maneira pela qual a ideia do “público” vem sendo tratada pela produção intelectual chinesa a este respeito, denuncia a força e a presença do governo chinês no setor público. Como aponta-nos Wang Xiaochao (2008), haveria neste contexto um governo cuja densa presença se faz perceptível nas mais distintas esferas da vida nacional, cuja capacidade de penetração social se estenderia até a esfera religiosa. Isto seria intensificado, como aponta-nos Gu e Goldman (2005), mediante as políticas repressivas praticadas pelo Estado chinês diante dos atos e das organizações que se opões à sua lógica de governo, sejam elas políticas ou religiosas.
Todavia, principalmente após a implementação das políticas de Deng Xiaoping e as mudanças ocorridas na ortodoxia proveniente da era Maoísta, houve uma importante transição de um regime político chinês totalitário para uma forma menos fechada tida como autoritária. (GU; GOLDMAN, 2005).
A análise feita por Xie (2017) corrobora para com esta ideia ao pontar para uma realidade paradoxal concernente a esta China contemporânea: (1) por um lado, um Estado chinês forte cuja influência e poder se estendem por toda a estrutura social interna; (2) por outro, diante das mudanças e aberturas promovidas pelo governo chinês, a sociedade contemporânea chinesa passa a experimentar o surgimento de novos grupos de interesse sociais, cujas demandas seriam capazes de ampliar as percepções sobre o “público”. Dentre estas percepções, há novos modelos em que as esferas (social, econômica e política) são tratadas de forma distintas uma da outra, cada qual possuindo suas instituições e organizações próprias, fomentadas pelo próprio governo ou em decorrência de sua permissão.
Há então a emergência de uma esfera pública e social que, ainda debaixo da autoridade do Estado chinês, se estabelece como o meio de atuação ente o governo e a sociedade civil. Um espaço que não poderá ser visto como livre, pois existe mediante vontade e concessão estatal, mas que se torna em uma esfera não-governamental, na medida em que surgem áreas de atuação pública nas quais o governo tributa liberdade de agência, ou em que opera de forma cooperativa para com a sociedade civil, as instituições e organizações que nela surgem.
É nesta condição de abertura concedida e controlada que o Cristianismo Protestante tem contribuído, tanto na discussão a respeito desta esfera pública emergente, quanto também em sua própria práxis neste espaço, ambas orientadas por suas produções teológicas e seu engajamento para com esta esfera via sua Teologia Pública. Mediante as políticas de Deng Xiaoping, aquelas que corroboraram para com a abertura religiosa e a “febre do Cristianismo” (Jidujiao re), o Cristianismo protestante vêm ganhando mais espaço, principalmente nos grandes centros urbanos da China. (CHOW, 2014; 2018).
É mister apontarmos para a realidade de não ser possível afirmar que o Protestantismo, em sua totalidade, se faz plenamente engajado para com as dinâmicas inerentes ao espaço ou a esfera pública-social. As bases teológicas que sustentam a perspectiva de mundo da fé Cristã são variadas, incidindo inclusive sobre a forma pela qual a religião, as instituições e os devotos cristãos se envolvem com o mundo e com o público, incluindo aqui o Protestantismo Chinês. Como demonstra-nos Xie (2017), há vertentes da fé protestante chinesa possuidoras de uma disposição e de uma teologia que é contrária a publicidade e o engajamento para com a vida pública. Habermas auxilia-nos a compreender o fato de que para estes, o público não é uma plataforma de comunicação comum, mas seria um espaço a ser dominado pelas ideias religiosas e os valores cristão professados.
Todavia, num contexto chinês dominado por uma miríade interpretativa acerca do público, que perpassa por uma ampla tradição chinesa de pensamento, entre elas o confucionismo, o taoísmo, as perspectivas marxianas e até mesmo algumas estruturas ocidentais de pensamento, uma Teologia Pública Cristã coerente com suas raízes protestantes teológicas, alinhadas ao seu engajamento público, demandará uma postura radicalmente distinta daquela outra. Como asseverado por Xie (2017, p. 400, tradução nossa), “Uma teologia pública cristã chinesa é necessariamente obrigada a estabelecer um diálogo para com estas escolas de pensamento sobre as questões inerentes a vida pública”[65].
Há, entretanto, algumas importantes questões que não devem ser ignoradas. Mesmo havendo a emergência de uma esfera pública não governamental chinesa, ela surge em meio a um governo com fortes características intervencionistas e autoritárias, fazendo com que falar sobre o “público”, ainda seja referir-se a uma esfera de domínio governamental majoritário. Algo este que está bem impresso no entendimento de grande parte da população chinesa atual, fazendo com que se atribua ao governo a responsabilidade de gerenciamento desta esfera em grande medida. Assim, seja mediante a tradição intelectual ou as realidades sociais chinesas, as esferas públicas na China sofrem forte influência direta do governo nacional.
Contudo, o Cristianismo Protestante tem se colocado como uma voz e um corpo que opera nesta esfera em emergência. Dentre as tradições de pensamento cristãs que têm se destacado no envolvimento dos debates acerca do pública e da práxis nesta esfera, apontamos para o Calvinismo e o Neo-Calvinismo que compõe uma relevante parcela da tradição cristã reformada de pensamento na China. (HARVEY, 2016)[66]. Mediante o estabelecimento de um movimento de diálogo e antítese que lhe é inerente, e estruturado numa forma bem específica de Teologia Pública, o Cristianismo Reformado chinês, ainda que de forma seminal em relação ao todo social na China, têm demonstrado um crescente engajamento público, principalmente, no contexto urbano e acadêmico chinês que segue em crescimento. (CHOW 2014; 2018).
Do ponto de vista do envolvimento público na esfera pública, da qualidade e relevância de sua Teologia Pública, as igrejas oficiais ligadas a TSPM e a CCC sofrem com a baixa qualidade de sua teologia, de seus ministros e da própria influência interna do Estado, enquanto que as “Igrejas nos Lares” inclinam-se para um primitivismo eclesiológico, que enfatiza a conversão, profecias e atos extraordinários de cura, tendo pouco envolvimento com as diversas esferas que tocam o âmbito público (CHOW, 2014).
Os desafios sociais e públicos demandarão não somente uma Teologia Pública Cristã robusta e coerente, apta para discernir seu tempo e propor caminhos e soluções para as questões referentes ao contexto em que está inserida. Antes, (XIE, 2017, p. 403, tradução nossa)[67]:
(…) uma expressão teológica feita em público deve ser de natureza comunicativa bem equilibrada. A declaração pública derivada da teologia cristã deve ser justificável e persuasiva, defendendo sem a tendência de se tornar arrogante e dominante. O envolvimento cristão nos assuntos públicos requer inevitavelmente comunicação, negociação e cooperação com pessoas de diferentes origens culturais, diferentes contextos disciplinares e intelectuais. Neste processo de comunicação, se os cristãos apenas colocarem ênfase nas semelhanças entre o cristianismo e outras perspectivas religiosas e culturais, então, a compreensão distintiva e o posicionamento ímpar do cristianismo não foram adequadamente apresentados. Embora a perspectiva dos cristãos seja diferente de outras perspectivas, ela deve ser expressa de forma que o público possa entender e respeitar o que está sendo dito. Só então ele poderá participar da construção de políticas públicas negociando com outras perspectivas.
Mesmo compreendendo os entraves e as limitações experimentadas pelo Cristianismo na China, nossa suspeita é que a tradição reformada de Teologia e de Teologia Pública, possibilita um maior e mais adequado engajamento público nos moldes apresentados por Xie.
No decorrer do século XX o Cristianismo Chinês estabeleceu uma prática constante de “participação na transformação social, no desenvolvimento econômico, na revolução nacional e na reconstrução do país”[68]. O Calvinismo e o Neo-calvinismo de Abraham Kuyper parecem prover uma tradição de pensamento cristã abrangente, com força mobilizadora para o desenvolvimento de uma Teologia Pública que deve responder aos questionamentos do seu tempo, dialogar com as demais perspectivas concorrentes que operam no contexto cultural chinês e criticar ideias e comportamentos que desafiam as sociedades chinesa e global.
Crescentes questões na China como a pobreza urbana, a migração do âmbito rural para as cidades, as condições de trabalho no campo e nas grandes metrópoles, o desenvolvimento social e governamental interno, o projeto nacional de educação, a política externa chinesa para o Pacífico e o mundo, dentre outras questões, deverão estar na pauta de discussão da Teologia Pública Cristã chinesa. Mesmo sendo esta uma minoria intelectual no contexto chinês, ligada principalmente ao movimento reformado Calvinista e Neo-Calvinista urbano, cresce com bastante influência na academia e nos debates triangulares envolvendo esta última, a igreja e o Estado. Certamente que sua influência sobre a comunidade cristã chinesa, e o crescimento de sua atuação na esfera pública e nas discussões ali estabelecidas, trarão novos questionamentos e desafios. Numa sociedade tão singular e dinâmica como a chinesa, o Cristianismo Reformado na China, aponta-nos Chow (2014), deverá manter-se sensível às mudanças tão repentinas naquele contexto, ou sofrerão obsolescência. Compartilhamos da ideia de que a tradição reformada Calvinista e Neo-calvinista, ambas, poderão fazer frente a estas dinâmicas.
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[1] O presente trabalho foi apresentado como critério para a conclusão do Curso Livre de Teologia no Seminário Martin Bucer em São José dos Campos, São Paulo, sob orientação do Dr. Franklin Ferreira. Contribuições, visando o enriquecimento do debate, serão de grande valia para o desenvolvimento da pesquisa.
[2] (…) public prominence as a significant factor in global politics and civil society.
[3] A Society is “post-secular” if it reckons with the diminishing but enduring – and hence, perhaps, ever more resistant and recalcitrant – existence of the religious
[4] Para uma importante discussão sobre o Pós-Secularismo nas Relações Internacionais, ver: MAY, Samantha et al. The Religious as Political and the Political as Religious: Globalisation, Post-Secularism and the Shifting Boundaries of the Sacred. Politics, Religion & Ideology. Vol. 15, No. 3, pp. 331-346, 2014. THOMAS, Scott M. The Global Resurgence of Religion and the Transformation of International Relations: The Struggle for the soul of the Twenty-First century. The Global Resurgence of Religion and the Transformation of International Relations. New York: Palgrave Macmillan, 2005. WILSON, Erin K. Theorizing Religion as Politics in Postsecular International Relations. Politics, Religion & Ideology. 15:3, pp. 347-365, DOI: 10.1080/21567689.2014.948590, 2014.
[5] (…) as Brazil, China, or India, religion continues to grow and to be a significant part of public life.
[6] Ver: RUOSHUI, Chen. ‘Zhong guo li shi shang ‘gong’ de guan nian ji qi xian dai bian xing’ [O Conceito de “Público” na história chinesa e suas modernas deformidades], em: Gong gong xing yu gong min guan. Nanking: Jiang su ren min chu ban she, pp. 03-39, 2006.
[7] (…) refers to that which is official or pertains to the government – as in the assumption that public affairs are the responsibilities of the government.
[8] Ver: MIZOGUCHI, Yuzo. Zhong guo si xiang zhong de gong yu si [Público e Privado na história intelectual chinesa]. Sasaki Takeshi and Kim Tea-Chang, eds. Gong yu si de si xiang shi [Público e Privado em Histórias Intelectuais Comparativas], Liu Wenzhu, Beijing: Ren min chu ban she. Pp. 37-87, 2009.
[9] Xie utiliza aqui a palavra em inglês heaven que, para a língua portuguesa, poderá ser traduzida para “paraíso” ou “céus”. Basicamente, o conceito aponta para o domínio ou habitação dos seres divinos, celestiais ou angelicais em várias tradições religiosas. Na tradição filosófica, religiosa e mitológica chinesa, o termo utilizado para “paraíso” é Tiān. No Confucionismo e no Taoísmo, Tiān aponta para o aspecto celestial do cosmos, e este em relação a outros dois aspectos, as regiões medianas e as regiões profundas. A junção destes três aspectos compõe o total da realidade existencial, intitulado de “Os Três Reinos”. Ver: CHANG, Ruth H. Understanding Di and Tian: Deity and Heaven from Shang to Tang. Sino-Platonic Papers 108: 1-54, 2000.
[10] (…) a vague awareness of the multiplicity of spheres, the fragile existence of social life, and the intermingling between the public with officials, as well as the prominent place occupied by the government in public affairs.
[11] (…) the model of social life is dominated by the state in contemporary China so far.
[12] Ver: JILIN, Xu. Jin dai zhong guo de gong gong ling yu: xingtai, gongneng yu zi wo li jie: yi Shanghai wei li [Esfera Pública na China Moderna: Seu padrão, funcionamento e auto-compreensão: Tomando Shanghai como um Exemplo], Shi lin [Revisão Histórica] 2, pp. 77-89, 2003.
[13] A ideia de uma sociedade civil tem sido alvo de debates e críticas. Os textos de Madsen (1993), Wakeman Jr (1993), Rowe (1993), Chamberlain (1993) e Huang (1993), referenciados neste artigo, são de grande auxílio para a compreensão de seu significado no contexto tardio e contemporâneo da história chinesa.
[14] Ver também: Wang Hui and Chen Yangu, eds., Wen hua yu gong gong xing [Cultura e Publicidade] Beijing: SDX Joint Publishing Company, 2005.
[15] (…) argue for the relevance of the term in the mainland Chinese context.
[16] A data entre colchetes indica o ano de publicação original da obra, que só será indicada na primeira citação da obra no texto. Nas seguintes será registrada apenas a data da edição consultada, sendo válido também para as referências dos demais títulos utilizados no decorrer de todo o texto.
[17] The ninethenth century in Hankow saw the gradual expansion, in the area of urban services as well as of social welfare, of what may be termed an extrabureaucratic “civic” or “public” sphere.
[18] (…) tripartite categorization (…)
[19] (…) to bring into focus not only questions of surface similarities and differences, but also the deeper levels of Habermas’s analysis.
[20] (…) use of public to the extrabureaucratic activities of men involved in local affairs and linked it to words suggesting solidarity and common efforts, involvement of the people (elites) as well as officials, and social autonomy.
[21] Há uma literatura ocidental importante que busca compreender a cultura política chinesa, estabelecendo um profícuo e relevante debate sobre Sociedade Civil e a Esfera Pública chinesa, em que muito se utiliza das concepções habermasianas sobre o tema. Para tanto, ver: WAKEMAN JUNIOR, Frederic. The Civil Society and Public Sphere Debate: Western Reflections on Chinese Political Culture. Modern China, v. 19, n.2, p. 108-138, April 1993.
[22] (…) idea of intermediate arenas in which open, public initiatives are undertaken by both officials and the populace seems useful in understanding relationships between the two.
[23] (…) a state presence, a degree of autonomous or voluntary social involvement, some social impact on policy, and a legitimizing idea of the common good.
[24] Em seu artigo intitulado “Public Sphere/”Civil Society” in China? The Third Realm between State and Society, Huang estabelece uma análise crítica sobre o uso dos conceitos “esfera pública burguesa” e “sociedade civil” utilizados na busca pela compreensão do espaço público chinês, em que se estabelece uma análise dicotômica entre Estado e Sociedade. Em sua percepção, esta visão, ainda que obtenha certo êxito em sua capacidade de análise, o faz num uso reducionista da teoria habermasiana sobre a esfera pública. Partindo também de Habermas, Huang (1993, p. 216, tradução nossa) sugere uma abordagem que chamou de “uma alternativa mais sofisticada”, em contraste aquela intitulada de “oposição binária entre Estado e Sociedade”. O ponto fulcral seria que esta última, seria na realidade “um ideal abstraído do início da experiência ocidental moderna e da modernidade”, sendo inadequada para o caso chinês. Em contrapartida, uma “concepção trinária” (trinary conception), seria mais precisa, uma vez que, descreveria um terceiro espaço entre o estado e a sociedade no qual ambos participariam ativamente sem uma dicotomia necessária.
[25] Habermas’s trinary conception of a public sphere intermediate between state and society.
[26] “(…) the Chinese ruling elite abandoned the orthodox Marxist-Leninist ideology and Mao Zedong thinking, some members of the new generation of Party-state leaders expressed interest in social democracy, though there was no sign that they sought to make it an official ideology.”
[27] Huang (1993) dirá que a perspectiva de Madsen opera majoritariamente num “devir” em detrimento do “ser”, transitando nas possibilidades de uma sociedade que despertaria para um viver democrático, para além daquilo realmente percebido no contexto social chinês. Na realidade, Huang estabelece uma análise crítica importante desta e de outras perspectivas aqui apresentadas. Para tanto, ver: HUANG, Philip C. C. “Public Sphere” / “Civil Society” in China? The Third Realm Between State and Society. Modern China, v. 19, n.2, p. 216-240, April 1993.
[28] “(…) incipient democracy”
[29] “(…) to encourage the emergence of citizen from society”.
[30] “(…) not to take any sign of “independence, or potential independence, against state power”; (Strand,1990:12) as prima facie evidence of its presence.
[31] “(…) a third space conceptually distinct from state and society”
[32] “(…) ‘public sphere’ or ‘public spaces’ in a value-free sense, to refer simply to a social arena between state and family.
[33] Regardless of the term used, the debates around the usefulness of categories such as the public sphere, public square, or public space in China highlight the importance of this period in which Chinese intellectuals see the possibility of a stronger public voice – their stronger public voice in Chinese society.
[34] (…) a variety of Christians traditions – Catholic, Reformed, Anglican, Anabaptist, and many others.
[35] A expressão “Sino-Teologia” inicialmente foi mobilizada para descrever uma teologia geolocalizada num determinado contexto acadêmico de fala chinesa. As vezes também referenciada na literatura acadêmica como “teologia dos chineses” (huaren shenxue) ou “teologia chinesa” (Zhongguo shenxue), demostrou-se limitada em sua semântica, mediante sua incapacidade para referenciar e descrever esta longa tradição de pensamento e debate teológico no contexto histórico e linguístico chinês. Neste artigo, a utilizamos em relação a produção teológica Cristã Chinesa destes últimos duzentos anos, como aponta-nos Liu Xiaofeng. Para uma profunda discussão crítica sobre o tema, ver: XIAOFENG, Liu. Sino-Theology and Philosophy of History: A Collection of Essays by Liu Xiaofeng. Brill. X, 209 Pp. ed. edition, March 20, 2015.
[36] Para uma importante síntese do que venha a ser a Teologia Pública, seu significado, sua tarefa e sua abrangência, ver: YOUN, Chul Ho. The Points and Tasks of Public Theology. International Journal of Public Theology, v.11, Issue 1, pp. 64-87, 2017.
[37] Max L. Stackhouse, um dos grandes expoentes atuais dos estudos de Teologia Pública, debate amplamente a relação entre a Teologia Pública e a Globalização. A justificativa central para esse engajamento estaria relacionada às mudanças sociais, políticas e econômicas globais, para nomearmos algumas, que possuirão implicações diretas para com os aspectos da fé, da ética, da compreensão humana e do bem-estar social. Desta relação, Stackhouse e outros teólogos públicos, buscam analisar em que medida a religião, a teologia e a ética, ao interagirem com as esferas sociais, políticas e econômicas, poderiam nortear o avanço desta globalização. Para tanto, ver: STACKHOUSE, Max L. God and Globalization: Globalization and Grace (Theology for the 21st Century). T & T Clarck International. Volume 4, 1ed, 2007.
[38] (…) more regionally specific understandings of Christianity’s public engagement.
[39] (…) political parties, regimes and policies come and go; they are always necessary, but they are also the byproduct of those religious, cultural, familial, economic and social traditions that are prior to government, and every government is, sooner or later, accountable to them.
[40] (…) consciously or preconsciously fuse their “spiritual interests” with their “cultural interests” and their “material interests” in ways that confirm or challenge, stretch or reform an ethos
[41] Para o governo chinês, o Protestantismo e o Catolicismo são reconhecidos como duas religiões separadas, visivelmente distinguíveis por suas instituições religiosas e para-eclesiástica, bem como sua mediante sua teologia, sua eclesiologia e seu envolvimento com as esferas públicas e governamentais. Para tanto, ver: CHOW, Alexander. Chinese Public Theology: Generational Shifts and Confucian Imagination in Chinese Christianity. Oxford University Press. New York, NY. 1st ed, 2018, especificamente, o capítulo primeiro intitulado “A Tradition of Public Theology”, ítem “Early Catholic Scholar-Officials”, p. 30.
[42] Se por um lado o aspecto público do Cristianismo é evidente aos estudiosos do campo da Teologia Pública, trabalhos recentes apontam para sua peculiaridade no contexto chinês. Alexander Chow (2018) busca demonstrar que ao falarmos do Cristianismo Chinês, se faz necessário o emparelhamento deste com o Confucionismo. O pensamento cristão tem se desenvolvido a partir da Bíblia Sagrada, da tradição cristã e isto aplicado a um contexto específico. Assim, Chow busca demostrar que o Cristianismo Chinês recente tem desenvolvido uma fé publicamente engajada que se vale, para tanto, dos recursos advindos do “Cristianismo Estrangeiro” (foreign Christianity) e do “Confucionismo indígena” (indigenous Confucianism). Esta perspectiva tem sido nomeada de uma “Teologia Integrativa” (integrative theology) que busca a unidade Divino-humano como base tanto para o teólogo quanto para a igreja, na busca pelo engajamento para com sociedade e Estado. Ver: CHOW, Alexander. Theosis, Sino-Christian Theology and the Second Chinese Enlightenment: Heaven and Humanity in Unity. Palgrave Macmillan’s Christianities of the World. Palgrave Macmillan. New York, NY, 2013; Ver também: CHOW, Alexander. Chinese Public Theology: Generational Shifts and Confucian Imagination in Chinese Christianity. Oxford University Press. New York, NY. 1st ed, 2018.
[43] O enfoque dado no presente artigo, versa sobre o papel do Protestantismo nesse processo. Entretanto, para uma ampla análise sobre a construção de uma sociedade civil chinesa, se faz necessário a compreensão de ambas as tradições nesse processo. Para tanto, ver: CHAN, Shun-Hing. Civil society and the role of the Catholic Church in congtemporary China; FALLMAN, Frederik. Calvin, culture and Christ? Developments of faith among Chinese intellectuals, ambos em LIM, Francis Khek Gee. Christianity in Contemporary China: Social-cultural perspectives. Routledge. New York: NY, 2013.
[44] The debate in China is mainly focused on Max L. Stackhouse’s idea of public theology.
[45] Ver: CHOW, Alexander. Chinese Public Theology: Generational Shifts and Confucian Imagination in Chinese Christianity. Oxford University Press. New York, NY. 1st ed, 2018.
[46] Public theology is theologically informed descriptive and normative public discourse about public issues, institutions, and interactions, addressed to the church or other religious body as well as larger public or publics, and argued in ways that can be evaluated and judges by publicly warrants and criteria.
[47] (…) religious engagement with the civil society necessarily means religious engagement with political powers.
[48] (…) the problem of the identity of religious groups as social organizations, their interaction with the state and social life at large, and the interaction with other intellectual resources when Christian values engage in the discourse on a particular issue.
[49] (…) to be concerned with the church’s public engagement.
[50] (…) an important dimension to a local expression of a public faith.
[51] Como aponta-nos Chow (2014, p.159), o TSPM iniciou-se como uma organização para-eclesiástica protestante, concebida como uma entidade que buscava promover o patriotismo e a autonomia diante das influências estrangeiras. A partir dos anos de 1980, a igreja crista protestante passou a ter a obrigatoriedade de registro junto ao TSPM, para que pudesse operar legalmente e em conformidade com a legislação governamental chinesa.
[52] Se faz mister ressaltar uma importante distinção entre TSPM e CCC, como também nos aponta Chow (2014). Mesmo havendo o reconhecimento de uma aproximação entre a natureza do trabalho do TSPM e do CCC, ambos precisam ser compreendidos de forma relacionada, mas não idêntica. A TSPM compete a tarefa de ser a instituição vinculante entre Estado e igreja no cenário regulatório governamental interno da China, ao passo que, ao CCC é legado o trabalho de formação dos líderes vocacionados no oficio cristão chinês, bem como a tarefa de publicação dos textos bíblicos e demais literaturas cristãs ali produzidas.
[53] Atualmente, há análises que apontam para a existência de, no mínio, três tipos de “Igrejas nos Lares”: a “Modelo Beijing”, a “Modelo Wenzhou” e a “Modelo Pearl River Delta”. Para tanto, ver: WIELANDER, Gerda. Christian Values in Communist China. Routledge, New York: NY, p. 97, 2013.
[54] Chinese Christian Internet Mission – www.ccim.org
[55] Aiyan (The Banquet) – www.aiyan.org
[56] Maizhong (Wheat Seeds) – www.maizhong.org/wheatseeds
[57] Jiaohui (Church China) – www.churchchina.org – Ligado fortemente ao movimento chamado de Novo Calvinismo.
[58] Fuyin shibao (Gospel Times) – www.fuyinshibao.cn
[59] “A proposal on Encouraging and Regulating Religious Circles Engaging in Charitable Activities”
[60] (…) theologies rooted in fundamentalist, pietistic and so-called ‘Pentecostal’ persuasions (…)
[61] Essa redescoberta do Calvinismo no contexto urbano chinês, tem sido chamado também de “Novo-Calvinismo” (New-Calvinism), sendo um termo emprestado do contexto norte-americano que referencia a nova onda calvinista estadunidense com figuras como John Piper, Mark Driscoll e Albert Mohler. Não deverá ser confundido com a tradição ligada a Abraham Kuyper, teólogo, pastor e primeiro ministro holandês no início do século XX, intitulado de “Neo-Calvinismo”. Alguns noms importantes desse Novo-Calvinismo na China são Jonathan Chao (Zhao Tianen), Samuel Ling (Lin Cixin), Stephen Tong (Tang Chongrong). Para tanto, ver: FÄLLMAN. Fredrik. Calvin, Culture and Christ?: Developments of Faith Among Chinese Intellectuals. Em Christianity in Contemporary China: Socio-Cultural Perspectives. Edited by Francis Khek Gee Lim. New York:Routledge, 2012.
[62] (…) ‘correct’ biblical exegesis, but it also provides guidelines for the organization and management of churches, as well as the church’s role and responsibility towards society and culture.
[63] Disponível em http://chinese.gospelherald.com/articles/25384/20150831/大陸教會發佈-家庭教會九十五條-與政府展對話.htm. Acessado pela última vez em 03 de março, 2018.
[64] Bob Gouzwaard, um reformacional, em “Christian Social Though in the Dutch Neo-Calvinist Tradition”, afirma que o termo “Neo-Calvinismo” foi uma expressão inicialmente utilizada por Max Weber em seus escritos sobre sociologia da religião, no intuito de escrever o ressurgimento do uso dos ensinos de João Calvino sobre política e o social, predominantemente na Holanda entre os séculos XIX e XX. Todavia, a melhor síntese do que a tradição do neo-calvinismo representa, esteja contida na produção literária de Abraham Kuyper que o enxerga como uma “cosmovisão” ou “biocosmovisão”. Para tanto, ver: KUYPER, Abraham. Calvinismo. 2ed. Cultura Cristã, São Paulo: SP, 2014.
[65] A Chinese Christian public theology on is necessarily obliged to be in dialogue with these schools of thought on the issues of public life.
[66] Thomas Harvey, deão acadêmico do Oxford Centre for Misssion Studies tem apontado para a relevância da “moldura epistêmica Neo-Calvinista” como uma alternativa teórica político-social para a compreensão e formação do público na Ásia, incluindo aqui a China. Para tanto, ver: HAVEY, Thomas. Sphere Sovereignty, Civil Society and the Pursuit of Holistic Transformation in Asia. Transformation, Vol. 33 (1), pp. 50-64, 2016.
[67] (…) a theological expression made in public must be of a finely balanced communicative nature. The public statement derived from Christian theology should be justifiable and persuasive, advocating, without the tendency to become overbearing and dominating. The Christian engagement in public affairs inevitably requires communication, negotiation and cooperation with the people of different cultural backgrounds, different disciplinary and intellectual backgrounds. In this process of communication, if Christians only put an emphasis on the commonalities between Christianity and other religious and cultural perspective, then the distinctive and unique Christian understanding and positions have not been properly presented. Even though Christians perspective is different from other perspectives, it must be expressed in a way that the public can understand and respect what is being said. Only then can it participate in the construction of public policies by negotiating with other perspectives.
[68] “(…) participating in social transformation, economic development, national revolution and reconstruction of the country”.