Europa pós-cristã: Há 500 anos uma Reforma, Há 50 anos uma nova Reforma

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Respostas diferentes aos desafios da ‚poca

Estamos tão absortos trabalhando as demandas presentes, e pensando nos desafios que nos são colocados agora, que não temos tempo nem disposição para refletir sobre o passado. Eis a dura tarefa do historiador, conclamar todos a um olhar ao passado para dele retirar as lições que a historia magistralmente nos ensina.

Os 500 anos da Reforma Protestante se tornam um mote interessante para essa olhada ao passado. A Reforma foi um movimento tão intenso que sacudiu a Europa de ponta a ponta e os europeus não foram mais os mesmos.  Impactos na espiritualidade, nos costumes, na política, na religião de uma forma geral. Os historiadores católicos admitem que o que os protestantes chamam de Contra-Reforma, na verdade foi uma Reforma Católica (ROPS, 1999, pág. 8).

A Reforma, porém, não se iniciou em Lutero e Zwinglio. Estava sendo gestada aos poucos pelas ideias de  homens como John Wycliff (na Inglaterra), Jan Huss (na Boêmia), e Savonarola (em Florença).

O século XVI vivia o apogeu tecnológico da história da humanidade:  A imprensa, criada pelo alemão Gutemberg, tornava possível a rápida disseminação do saber, como nunca antes. As caravelas portuguesas e espanholas singravam os mares atingindo terras nunca antes conhecidas, entre elas, o Brasil. Enquanto a Reforma começava a ferver na Alemanha, o português Fernão de Magalhães circunavegava o globo! Para financiar tais expedições era necessário grande volume de capital, que também resultava em elevado volume de lucros.

Na Itália, a arte clássica era redescoberta, e os artistas faziam ressurgir a beleza das esculturas gregas, com um leve toque do homem moderno. De fato, testemunhava-se uma “explosão de paganismo sensual que se manifestou na Itália no século XV e depois se propagou ao resto da Europa” (DELUMEAU, 1984, pág. 99). Quadros, peças licenciosas, a arte buscava pretexto para  desnudar o corpo feminino. “Em tal clima de sensualidade, a homossexualidade era uma das variantes do erotismo” (DELUMEAU, 1984, pág. 100). Uma outra questão é ainda levantada: “Os numerosos quadros dedicados na Alemanha, na Itália e nos Países Baixos ao episódio de Ló e suas filhas não procurariam sugerir a imagem do incesto?” (DELUMEAU, 1984, pág. 101). O paganismo e o cristianismo não se fundiam apenas nas telas, nos livros, nas estátuas das igrejas e nos afrescos das capelas mas também nos espetáculos oferecidos em dias de festa:

Em 1520, na festa de quinta-feira gorda de Roma, tudo foi organizado à moda antiga: o cortejo, que desfilou perante o papa, levava um grupo de carros que representavam a Itália, Ísis, Neptuno, Hércules, Alexandre Magno, a loba do Capitólio, etc. O último – uma esfera sobre a qual ia um anjo – simbolizava o triunfo da religião.  (DELUMEAU, 1984, pág. 101).

Dez anos antes, no final de 1510, o jovem monge Martinho Lutero, passou uma temporada em Roma. O que viu foi suficiente para convencê-lo de que tratava-se da Babilônia! 

Os reformadores poderiam concordar com alguns pensadores da época, que  a fé cristã em sua mensagem tradicional, com seus 1.500 anos de existência já não tinha mais relevância para um mundo cultural e tecnologicamente evoluído, como Pico della Mirandola que buscou conciliar o pensamento antigo com a mensagem cristã. Ele era um erudito, sabia hebraico e árabe, escreveu suas 900 Teses,  Discurso sobre a Dignidade do Homem, e sua principal obra, o Livro Séptuplo, Exposição dos Sete Aspectos da Criação. Como bom humanista, Pico della Mirandola não está preocupado em submeter-se ao texto bíblico, isto parece pouco adequado numa era de apropriação do saber. Ele afasta-se do Evangelho e das concepções bíblicas acerca do homem. Pico põe Deus a dizer ao homem:

Pus-te no mundo para que daí possas ver melhor tudo o que no mundo existe. Não te fiz celeste nem terrestre, nem mortal nem imortal, para que, livre e soberano artífice de ti próprio, possas modelar-te e esculpir-te com a forma que escolheres. Serás capaz de regressar ao nível das coisas inferiores e dos animais mas serás também capaz, mediante a tua vontade, de renascer no nível das coisas mais elevadas, das coisas divinas. (DELUMEAU, 1984, pág. 108).

Num mundo de renascença onde se redescobria o saber clássico, os reformadores poderiam buscar entre os filósofos gregos um outro padrinho intelectual para a mensagem cristã, abandonando Aristóteles. Ou mesmo buscar uma acomodação com a concepção pagã antropocêntrica, juntamente com os intelectuais como Pico della Mirandola.

O humanismo não estava restrito à Itália. Ainda no século XV chegou à Alemanha:

Algumas vezes é dito que o humanismo alemão se originou nas Universidades de Erfurt, Heidelberg, Leipzig, e Viena. Mas nós devemos notar que muitos advogados que trabalhavam como conselheiros para príncipes seculares e da Igreja foram educados na Itália e contribuíram em muito para o crescimento do humanismo depois que eles retornaram para o seu próprio país. (MAHONEY, 1976, pág. 406).

A Reforma Protestante aconteceu porque homens piedosos e corajosos se voltaram para o texto bíblico, abandonaram as analogias fruto de uma hermenêutica pitoresca, e começaram a pregar e ensinar o texto bíblico.

Esta posição exigia determinação diante dos homens esclarecidos da época, que eram profundamente humanistas. Cito como exemplo, o humanista alemão Gregor Heimburg (1400-1472), que em suas cartas, discursos, e escritos “referia-se não somente à Bíblia e aos Pais da Igreja, mas também escritores clássicos como Sócrates, Lactâncio, Cícero, Homero, Sólon, Thales, Zeno, Herodoto…” (MAHONEY, 1976, pág. 417).

Basear um discurso sem a citação dos filósofos e poetas antigos deve ter parecido muito bárbaro ao olhar dos humanistas contemporâneos de Lutero. Mas para aquele tempo só havia uma saída: Sola Scriptura. E foi nela que Lutero e os demais reformadores ergueram inteligentemente o edifício da Reforma.
 
A Europa nunca mais foi a mesma. Católicos promoveram internamente sua reforma, que produziu homens como Ignácio de Loyola, e a parte europeia que abraçou o protestantismo, ergueu bem alto os 5 Solas: Sola Scriptura, Sola Fide, Sola Gratia, Solus Christus, Soli Deo Gloria. Pudemos então continuar nos referindo à Europa como cristã pelos próximos séculos!

450 anos depois… década de 60, século XX:

Mais uma vez a humanidade vivia um tempo especial de desenvolvimento e progresso. A Segunda Guerra Mundial passou com suas agruras e cicatrizes. Entretanto, grandes avanços tecnológicos decorreram da corrida bélica:

De 1920 a 1930 houve descoberta das vitaminas e grande desenvolvimento da química, novas vacinas foram desenvolvidas. Na década de 40 foram desenvolvidos os quimioterápicos e antibióticos, com pesquisas impulsionadas pela Segunda Guerra Mundial […] Dos anos 40 até 1968, ocorreu a introdução maciça de novos fármacos, que trouxeram à população a possibilidade de cura para enfermidades até então fatais, sobretudo no campo de doenças infecciosas. (GUILHERMANO, 2010, pág. 55).   

No decorrer dos anos 60, na Europa,  a TV tinha-se tornado um artigo acessível, essencial no mobiliário doméstico até mesmo nos lares mais modestos (JUDT, 2014). Era uma revolução parecida com a possibilidade de todos terem um livro, uma bíblia em casa, no tempo de Lutero.

Tendo explorado todos os recantos do globo a meta agora era chegar à lua. A corrida espacial estava em pleno andamento, com os Estados Unidos e a Rússia competindo.
    
O humanismo ressurgiu com toda a sua força. Todas as manifestações da sensualidade pagã do século XVI retornaram com todo o vigor. A arte tornou-se porta-voz de um humanismo exacerbado. Em 1966 os Beatles anunciavam: “Agora somos mais populares do que Jesus Cristo. Não sei o que vai desaparecer primeiro, o rock’n roll ou o cristianismo. Jesus Cristo era legal, mas seus apóstolos eram teimosos e medíocres. E foram eles que distorceram tudo para mim.” As afirmativas bíblicas pareciam não mais fazer sentido para o homem esclarecido do século XX. Como Pico della Mirandola, novas formas de entender a mensagem do evangelho foram buscadas, e novas maneiras de explicar a relação do homem com Deus.

Diferente do século XVI, no qual ninguém se afirmava ateu propriamente dito, o homem do século XX professa abertamente seu ateísmo e propõe livremente sistemas que substituam a doutrina cristã, como o filósofo francês Sartre, cuja nova proposta de humanismo, o Existencialismo,  constitui uma tentativa de tornar a vida    humana possível:

O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Afirma que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito: este ser é o homem, ou como diz Heidegger, a realidade humana. O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, não existe natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la. O homem é tão-somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer… (SARTRE, 2014, pág. 19).

Embora, como disse Sartre, o existencialismo seja uma doutrina originada em suas convicções ateístas, isto não impediu que teólogos cristãos promovessem um amálgama desta com a  mensagem de Cristo.

Paul Tillich, teólogo alemão radicado nos Estados Unidos, reinterpretou a teologia à luz da filosofia existencialista e produziu uma “Teologia Sistemática” que influenciou profundamente o mundo cristão. Para exemplificar seu pensamento, eis um pequeno trecho de seu entendimento da Cruz:

A “Cruz do Cristo” e a “Ressurreição do Cristo” são símbolos interdependentes; eles não podem ser separados um do outro sem perder seu sentido. A Cruz do Cristo é a Cruz daquele que conquistou  a morte da alienação existencial. Caso contrário seria apenas um evento trágico a mais (que também o é) na longa história da tragédia do homem. E a Ressurreição do Cristo é a Ressurreição daquele que, como Cristo, sujeitou-se a si mesmo à morte da alienação existencial. Caso contrário seria apenas uma história de milagre a mais, e até questionável (que também o é nos registros bíblicos). (TILLICH, 1987, pág. 362).

Rudolf Bultmann, professor da Universidade de Marburg propôs uma nova leitura do texto bíblico que ele próprio chamou de desmitologização:

O curso da história tem desmentido à mitologia. Porque a concepção do reino de Deus é mitológica, como o é a do drama escatológico. E como o são assim mesmo as pressuposições em que se embasa a expectação do reino de Deus, a saber, a teoria de que o mundo, ainda que criado por Deus, é regido pelo diabo, Satanás e seu exército, os demônios, são a causa de todo o mal, pecado e enfermidade. Toda a concepção do mundo que pressupõe tanto a pregação de Jesus como a do Novo Testamento, é, em linhas gerais, mitológica, por exemplo, a concepção do mundo como estruturado em três planos: céu, terra e inferno; o conceito da intervenção de poderes sobrenaturais no curso dos acontecimentos; e a concepção dos milagres, especialmente a ideia da intervenção de poderes sobrenaturais na vida interior da alma, a ideia de que os homens podem ser tentados e corrompidos pelo demônio e possuídos por maus espíritos. A esta concepção de mundo qualificamos de mitológica porque difere da que tem sido formada e desenvolvida pela ciência, desde que esta se iniciou na antiga Grécia, e que logo foi aceita por todos os homens modernos. (BULTMANN, 2008, págs. 13,14)..       

Atônito diante dos desafios de sua época, e inspirado por Tillich, Bultmann e outros pensadores, um bispo de uma pequena diocese de Londres, John A. T. Robinson, propôs, não apenas para os acadêmicos, ou teólogos, mas para todo o povo, como o fez Lutero ao afixar as 95 teses na porta da Catedral de Wittemberg, uma nova maneira de ver a Deus e se relacionar com ele. O pequeno livro Honest to God (Honesto para com Deus), foi publicado em 1963 (Foi editado em Portugal sob o título Um Deus Diferente, em 1967). Diz-se que a reação ao livro foi tremenda: era discutido nos pubs, nos chás ou jantares, com motoristas de taxi e até em lares onde a Igreja havia muito tempo deixara de existir. O jornal Sunday Observer publicou sobre ele na primeira página, a manchete: “Nossa imagem de Deus tem que sumir”. (SPONG, 2006, págs. 10, 11).  

Robinson traduziu numa linguagem ainda mais acessível as ideias de Bultmann e Tillich, tais como, o conceito de um Deus que esteja localizado em qualquer lugar “é mais uma pedra de tropeço do que uma ajuda à crença no Evangelho” (ROBINSON, 1963, pág. 16). Uma teologia inteiramente revolucionária era proposta:

Esta palavra ‘Deus’ anda tão condicionada para nós, em virtude das associações com um Ser no além (com tudo o que, por outras palavras, é considerado como supérfluo, dispensável ou intolerável pelo antiteísta) que Tillich julga dever advertir-nos de que (…) ‘importa esquecer tudo o que de tradicional aprendemos acerca de Deus, quiçá mesmo a própria palavra’. De fato, a fronteira que separa os que creem em Deus dos que não creem não tem quase nada a ver com o fato de aceitarem a existência ou não existência de tal Ser. É, antes, uma questão de abertura ao que é santo, ao sagrado, que se esconde mesmo nas insondáveis profundidades da relações mais seculares. (ROBINSON,1963,  pág. 47,48).    

O próprio Bultmann comentou o livro:

 Na Inglaterra e também na Alemanha ele provocou em parte uma discussão bem agitada. No semanário Die Ziet, de Hamburgo, apareceram artigos com os títulos: “Deus é uma metáfora?” “A nossa imagem de Deus está ultrapassada?” “A fé em Deus é um assunto encerrado?” – perguntas provocadas pelo livro de Robinson…[…] uma revolução se faz necessária; pois pelo fato de a imagem de Deus da tradição eclesial não ter mais credibilidade para o ser humano de hoje, necessita-se de uma nova imagem de Deus; a antiga está acabada.(BULTMANN, 2001, pág. 406).   

Bultmann concorda com Robinson, e não poderia deixar de ser diferente afinal tratava-se de seu mentor: A imagem tradicional de Deus está acabada. Somente uma nova revolução, uma nova reforma para responder ao homem do século XX, e o livro do bispo inglês parecia fazer parte dessa Reforma.

Dois anos depois Robinson publicava The New Reformation? (Uma Nova Reforma?),  e afirmava: “Se Honest to God falou a muita gente a quem não era inicialmente dirigido, isso deve-se ao fato de nele terem reconhecido instintivamente, através da poeira do desmoronamento, o Deus que perderam.” (ROBINSON, 1968, pág. 28,29).

A proposta da nova Reforma como adaptação ao humanismo vigente e esvaziamento da mensagem bíblica não resultou num revigoramento do cristianismo na Europa, antes tornou o kerygma precariamente inútil. Para falar de alienação, as pessoas não precisavam de Jesus ou do apóstolo Paulo, elas já tinham Sartre!

A nova Reforma ajudou a levar a Europa a uma era pós-cristã, para utilizar o termo adequado quando falamos de crença no continente europeu (HOWARD, 2016, pág. 197). Isto há apenas 50 anos! Respostas opostas a desafios semelhantes. É claro que o mundo no século XX não era o mesmo do século XVI, porém os problemas eram muito parecidos. Mas a resposta a eles foi muito distinta. Esse fato parece nos lembrar que, quando o mundo não estiver querendo ouvir a mensagem da Cruz, a saída continua sendo voltar às Escrituras, reafirmando: Sola Scriptura, Sola Fide, Sola Gratia, Solus Christus, Soli Deo Gloria.

Referências bibliográficas

BULTMANN, Rudolf, Jesus Cristo e Mitologia, 4. Edição, São Paulo, Fonte Editorial, 2008

BULTMANN, Rudolf, Crer e Compreender, Ensaios Selecionados, São Leopoldo, Sinodal, 2001
      
DELUMEAU, Jean, A Civilização do Renascimento, vol. 2, Lisboa, Editorial Estampa, 1984

GUILHERMANO, Luiz Gustavo, e outros, Páginas da História da Medicina,  Porto Alegre, EDIPUCRS, 2010

HOWARD, T. A e Noll, Mark A., Protestantism after 500 years, New York, Oxford University Press, 2016

JUDT, Tony, Pós Guerra, História da Europa desde 1945, Lisboa,  Edições 70, 2014

MAHONEY, Edward P. (organizador), Philosophy and Humanism: Renaissance Essays in Honor of Paul Oskar Kristeller, Leiden, Brill, 1976

ROBINSON, John  A. T., Honest to God, Londres, SCM, 1963

ROBINSON, John A. T., Uma Nova Reforma?, Lisboa, Moraes, 1968

ROPS, Daniel, A Igreja da Renascença e da Reforma (II), São Paulo, Quadrante, 1999

SARTRE, Jean Paul, O Existencialismo é um Humanismo, 4a. Edição, Petrópolis, Vozes, 2014

SPONG, J. Shelby, Um Novo Cristianismo para um Novo Mundo, Campinas, Verus, 2006

TILLICH, Paul, Teologia Sistemática, 2. Ed, São Paulo/São Leopoldo, Paulinas/Sinodal, 1987

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