Edward Gibbon, o paradoxo de Epimênides e os desafios do século XXI: um iluminista tem algo a nos dizer

0
4816

Introdução

Poetas e filósofos dizem muitas vezes coisas interessantes que o filtro  de uma orientação doutrinariamente ortodoxa não deixa ser percebido e aproveitado. Isso porque eles também dizem coisas muito estranhas e às vezes ofensivas à fé.  Estamos diante de um paradoxo: incrédulos podem nos ensinar, ou até exortar?  Isso não parece ser a regra, mas ocorre. E precisamos ser humildes o suficiente para ouvir e aceitar.

 Epimênides de Cnossos, Creta, meados dos anos 600 a.C

Epimênides cretense, de Cnossos ou de Festos, viveu no século VI a.C, escreveu, provavelmente em versos e em prosa, obras de assuntos cosmogônicos, mitológicos e políticos.

Paulo conhecia seus escritos e ele é citado pelo menos duas vezes, pelo Apóstolo. Uma vez em seu sermão no areópago ateniense (At 17.28): Porque nEle nos movemos e existimos (BRUCE, 1956, pág. 359).

Posteriormente, escrevendo a Tito, que está como pastor na Ilha de Creta, encontramos outra citação: “Disse um deles [dos cretenses], um profeta deles: ‘Mentem sempre os cretenses, bestas más, ventres preguiçoso’. Este testemunho é verdadeiro” (Tt 1.12-13).  Esta era uma conhecida citação de Epimênides, popularmente hoje conhecida como “Paradoxo de Epimênides”:  “Um cretense disse: ‘todos os cretenses são mentirosos’”. Se, como Paulo afirma, este enunciado é verdadeiro, então o enunciado é falso, já que um cretense mentiroso o fez.

O problema colocado pode ainda enunciar-se da seguinte forma: se quem fala faz parte de um grupo de pessoas que mentem sempre, e a sua afirmação concerne precisamente ao fato que aquelas pessoas mentem sempre, pode afirmar-se que está a dizer a verdade? (CASERTANO, 2011, pág. 30)

Dito de outra forma:

Epimênides o cretense diz que “todos os cretenses são mentirosos”, mas o próprio Epimênides é um cretense, logo ele é um mentiroso. Mas se ele é um mentiroso, o que ele diz não é verdade, e consequentemente os cretenses são verdadeiros; mas Epimênides é um cretense, logo o que ele diz é verdade…

Fiquemos a pensar sobre o Paradoxo de Epimênides e avancemos mais alguns séculos à frente na história.

  1. Edward Gibbon, Inglaterra, século XVIII

 Edward Gibbon, historiador britânico nascido em 1737, produziu uma obra que 240 anos depois continua relevante, constituindo-se “um relato impressionante e sistemático de um dos maiores fenômenos da história”: O Declínio e Queda do Império Romano. Teve reconhecimento do seu feito enquanto em vida, e circulou entre os grandes intelectuais da Inglaterra e França da segunda metade do século XVIII. Foi um homem do seu tempo. Fez afirmações que sacudiram o mundo religioso da época, tais como a que podemos encontrar na conclusão de sua opus magna  “Declínio e Queda do Império romano”, que aponta como causas da Queda  “o triunfo do barbarismo e da religião [cristã]” (GIBBON, 1821, pág. 365).

    Cinquenta anos depois da morte de Gibbon, o Cardeal Newman fez a seguinte consideração: “ É melancólico dizê-lo, mas muito relevante, talvez o único escritor inglês que tem qualquer pretensão de ser considerado um historiador eclesiástico, seja o incrédulo Gibbon.”

Teria este homem algo a nos dizer? Não costumo ver teólogos citando Gibbon, como o fez Paulo, com Epimênides de Cnossos.

Edward Gibbon viveu no turbulento período dos questionamentos, das dúvidas, que os historiadores denominaram de “Século das Luzes”. Precoce nas leituras e dono de um intelecto privilegiado, após sérias reflexões, provavelmente influenciado pelo pensador católico francês Bossuet, Gibbon abandonou a Igreja da Inglaterra aos 16 anos de idade  e se converteu ao catolicismo romano, sendo confidencialmente batizado em Londres.

Sua conversão provocou a indignação paterna que o enviou para Lausanne, na Suíça, sob os cuidados de um ministro reformado. No Natal do ano seguinte ele recebeu o sacramento na igreja calvinista de Lausanne. Entretanto, Gibbon circulava nos meios intelectuais da cidade, onde conheceu e tornou-se amigo de Voltaire e Rousseau.

Embora nunca tenha se declarado abertamente um ateu, agnóstico, ou tenha novamente abandonado o protestantismo, Gibbon abraçou as ideias que circulavam à época acerca da fé, e do cristianismo, com características notadamente deístas.  Para o deísmo a existência de um Ser Superior não é negada, mas sim sua revelação. Portanto, as Escrituras são percebidas como produto puramente da criação humana, as intervenções sobrenaturais são negadas, e quaisquer relatos que envolvam milagres são vistos como fábulas ou lendas, a imortalidade da alma e o castigo eterno são normalmente combatidos como superstição.

É importante registrar a atração que exercia sobre a mente do jovem Gibbon o mundo pagão greco-romano. Em 1756, aos 19 anos de idade recapitulou todos os clássicos latinos – historiadores, poetas, oradores e filósofos – desde Plauto e Salústio “até o declínio da língua e do império de Roma”. Aprendeu grego e leu parte dos clássicos helênicos. Em 1764 foi à Roma, e entre as ruínas do Capitólio decidiu relatar o declínio e queda do Império Romano.

Toda a sua vida foi dedicada a um único livro: “Declínio e Queda do Império Romano”, uma  obra gigantesca em 6 volumes e mais de 3.000 páginas, cujo primeiro volume foi publicado em 1776, e os últimos três em 1788.

  1. Causas do avanço da religião cristã

Interessa-nos especialmente os capítulos XV e XVI, que eram os capítulos finais do primeiro volume, os quais tratavam acerca do “avanço da religião cristã”. Gibbon inicia o capítulo XV da seguinte forma:

Um exame franco mas judicioso do avanço e estabelecimento do cristianismo pode ser considerado parte deveras essencial da história do império romano. Enquanto esse grande organismo era invadido pela violência sem freios ou minado pela lenta decadência, uma religião pura e humilde se foi brandamente insinuando na mente dos homens, crescendo no silêncio e na obscuridade; da oposição, tirou ela novo vigor para finalmente erguer a bandeira triunfante da Cruz por sobre as ruínas do Capitólio...” (GIBBON, 1989, pág. 194)

Prossegue mais à frente:  […] seja-nos ainda permitido perguntar […] as segundas causas do rápido desenvolvimento da Igreja cristã.” As causas primárias seriam explicações sobrenaturais, ligadas à doutrina e a Deus, causas estas que não interessavam ao nosso historiador.

Como um homem do seu tempo, um iluminista, os pressupostos de Gibbon são um amálgama de ceticismo, ironia, desconfiança de toda atividade eclesiástica, saudosismo clássico (ou paganismo greco-romano), racionalismo extremo, que exclui possibilidades da Revelação, do Sobrenatural e da imortalidade da alma.

Portanto, as causas identificadas são cuidadosa e exaustivamente exploradas, não de forma piedosa e edificante, mas crítica e irônica, embora reconhecidamente autêntica! Vejamos rapidamente cada uma delas: 

I. O inflexível zelo ou a intolerância dos cristãos. Gibbon registra que vivendo numa sociedade pagã, “era o primeiro mas árduo dever do cristão manter-se puro e inconspurcado no tocante à prática da idolatria”. Critica severa e irônica à identificação das divindades greco-romanas com demônios, identificação esta feita pelo próprio Paulo em I Co 10.20. Finaliza as considerações sobre esse tópico afirmando “…quanto mais lhes crescia o empenho, com mais ardor e êxito combatiam na guerra santa que haviam empreendido contra o império dos demônios.”. (GIBBON, 1989, págs. 201-206) 

II. A doutrina de uma vida futura, ou a crença na imortalidade da alma. Gibbon afirma que anjos, vida futura, destino, tudo isso foram “doutrinas especulativas da filosofia ou da religião de nações orientais” que os fariseus acrescentavam às Escrituras (GIBBON, 1989, pág. 204). Explicava a adesão de muitos à fé cristã da seguinte forma:

O politeísta negligente, acometido de novos e inesperados terrores contra os quais nem seus sacerdotes nem seus filósofos lhe podiam oferecer qualquer proteção segura, sentia-se com muita frequência apavorado e dominada pela ameaça de torturas sempiternas. Seus temores podiam ajudar o progresso de sua fé e razão; e caso pudesse persuadir-se a suspeitar que a religião cristã possivelmente estava certa, tornava-se fácil tarefa convencê-lo de que era o partido mais seguro e mais prudente a tomar.” (GIBBON, 1989, pág. 207)

III. Os poderes miraculosos da Igreja Primitiva. Este tópico é introduzido com as seguintes palavras pelo nosso autor:

Os dons sobrenaturais que mesmo nesta vida eram atribuídos aos cristãos, pondo-os acima do restante da humanidade, deve ter-lhes trazido conforto, assim como, muito frequentemente, convicção aos infiéis. Além dos eventuais prodígios que se podiam por vezes efetuar mercê da intervenção imediata da Deidade, quando esta se dispunha a suspender as leis da Natureza em benefício da religião, a Igreja cristã, desde o tempo dos apóstolos e de seus primeiros discípulos, tem alegado uma sucessão ininterrupta de poderes miraculosos, o dom de línguas, de visão e de profecia, o poder de expulsar demônios, de curar os enfermos e de ressuscitar os mortos.” (GIBBON, 1989, pág. 207)

IV. A moralidade pura e austera dos cristãos. Apenas um breve trecho da exposição é suficiente para captarmos a essência do pensamento de Gibbon nessa questão:

Ao emergir do pecado e da superstição rumo à gloriosa esperança da imortalidade, resolviam devotar-se a uma vida não apenas de virtude mas de penitência. O desejo de perfeição tornava-se a paixão dominante de suas almas...” (GIBBON, 1989, pág. 211)

V. A unidade e a disciplina dos cristãos. Gibbon analisa o governo da igreja do período apostólico aos sínodos episcopais, percebe que a igreja cristã torna-se uma sociedade dentro da sociedade, com suas leis, sua submissão, seu governo, seus recursos. Obviamente que para Gibbon as motivações que impulsionaram bispos e presbíteros nem sempre eram as que aparentavam, e críticas e insinuações são recorrentes no desenvolvimento da análise.

  1. Gibbon, profeta?

O apóstolo Paulo citou Epimênides, o poeta pagão. Escrevendo a Tito ele o chamou de profeta (Tt 1.12-13). Eu gostaria de retornar às cinco causas elencadas por Edward Gibbon, o historiador iluminista, fascinado pelo mundo greco-romano, descrente do sobrenatural e irônico em relação às crenças esposadas pela Igreja. Nas palavras do Cardeal Newman, um incrédulo! Hoje: um profeta!

No entendimento de Gibbon, essa religião pura e humilde que cresceu no silêncio e na obscuridade; que da oposição, tirou novo vigor para finalmente erguer a bandeira triunfante da cruz.  Obviamente isso só foi possível graças às cinco causas acima citadas e brevemente explicadas. Indago-me se a igreja dos tempos pós-modernos não deveria ler estas causas e espelhar-se nela para se posicionar em épocas não mais favoráveis à fé e ao Evangelho.

É claro que a ironia e análise descrente de Gibbon contribuíram para que o texto fosse execrado pelos teólogos e religiosos cristãos quando da edição da obra. Mas parece que tudo o que foi escrito foi rechaçado e nada foi ponderado ou considerado. Não deveria a igreja do final do século XVIII ter reavaliado a si mesma à luz das cinco causas? Parece-nos que a igreja estava por demais identificada com o Império Romano para entender que na derrocada deste ela teve grande contribuição. E isso horrorizou os círculos cristãos mais intelectualizados. Gibbon pode ter posto o dedo na ferida!

Lembrando da sua conclusão ao final da obra, de que foram o barbarismo e o triunfo da religião [cristã] que levaram ao Declínio e Queda do Império Romano. Cumpre-nos perguntar:

Por que não? Afinal os cidadãos do império romano ao se converterem a Cristo recebiam a seguinte exortação da pena do apóstolo Paulo: “E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso entendimento” (Rm 12.2). Uma comunidade inconformada com o mundo, e com o entendimento transformado, indubitavelmente levaria esse ‘mundo’ à mudança, quiçá ao seu fim.

Muito mais do que nos indignar com Gibbon que apontou que o cristianismo estava na base do “Declínio e Queda do Império Romano”, nós deveríamos nos alegrar com isso, e refletir sobre nosso papel no mundo de hoje, às vezes muito mais conformados e adaptados que transformados…

Duzentos e quarenta  anos se passaram da publicação do primeiro volume de “Declínio e Queda”, com seus controversos capítulos XV e XVI. A Igreja vive desafios tão grandes quanto a Igreja do tempo do Império Romano, e a Igreja do “Século das Luzes”.

Parece-me, contudo, que a Igreja de hoje prefere buscar posicionamentos muito distintos daqueles apontados nas “causas” de seu crescimento por Gibbon: 

I. Zelo inflexível ou intolerância. Termos politicamente incorretos. Não queremos ser identificados como intolerantes, nem aparentarmos zelo inflexível. A sociedade, aparentemente tolerante, é intolerante com os intolerantes! Abraçamos os ídolos que nos são oferecidos e nos curvamos aos altares das mais diversas propostas idolátricas. Nosso referencial é Salomão, em nosso amor às muitas mulheres estranhas (I Rs 11.1-13). Queremos ser uma igreja cristã, aberta, flexível, tolerante! 

II. A doutrina de uma vida futura, ou a imortalidade da alma. Nos concentramos numa teologia pragmática enfocando as necessidades presentes. Pra que nos preocuparmos com o porvir? Muitos já abraçaram ideias universalistas, da salvação geral de toda a humanidade, ou aniquilacionistas, que os ímpios serão destruídos. Poupa-se assim muita conversa acerca da vida futura. 

III. Os poderes miraculosos da Igreja. David Prior nos alerta: “Não devemos permitir que o medo de experiências erradas ou superficiais impeça que tomemos posse aquilo que pertence, por direito, à igreja desde o Pentecostes até hoje” (PRIOR, 1993, pág. 225). Para caminhar pela área da prática dos dons, que tem sido uma das mais controversas na história da Igreja, a obra do Dr. Craig Keener, parece ser um excelente referencial. Dr. Keener esteve no Brasil, por ocasião do 11º Congresso de Teologia das Edições Vida Nova. Na conclusão do seu livro “O Espírito na Igreja – O que a Bíblia ensina sobre os dons”, ele afirma:

“A vida no Espírito inclui o poder de Deus em nossa vida: capacitação para evangelizar, para superar provações e para edificar irmãos em Cristo por intermédio de dons espirituais seletos…[…] afirmar que os dons são para o presente exige que permaneçamos ainda mais vigilantes contra falsificações de dons e contra o elitismo espiritual entre aqueles que exercitam determinados dons.” (KEENER, 2017, pág. 229-230) 

IV. A moralidade pura e austera dos primeiros cristãos. Porque insistir numa moralidade caduca? Por que enfatizar pureza sexual, matrimonial, conduta ética? Essa austeridade só afasta as pessoas da Igreja. Isso tudo pode ser classificado como farisaísmo. As igrejas que ainda insistem nesses itens são verdadeiras sinagogas! A igreja deve libertar-se de tais amarras! 

V. A unidade e a disciplina dos primeiros cristãos. As igrejas são comunidades onde as pessoas fazem adesão por conveniência. Vem e vão de acordo com o que lhes é mais cômodo. Submissão e autoridade são palavras muito fora de moda para se aplicar aos membros das igrejas.

Indago-me se com tais características uma Igreja cristã triunfa? Ou, pelo menos, sobrevive?

Não foi dessa forma que a Igreja conquistou e triunfou sobre o Império Romano! Gibbon está aqui para nos trazer as causas que neste século XXI, deveríamos refletir. Pois são elas mesmas que poderão nos levar ao triunfo, se fizermos como os cristãos do império romano, ou à ruína se imitarmos o que já estamos vendo em muitas igrejas.

  1. Gibbon e o Paradoxo de Epimênides

Em Gibbon, eis o Paradoxo de Epimênides:

Um incrédulo (nas palavras do Cardeal Newman), é sempre mentiroso.  Não podemos confiar no que é dito. Mas este incrédulo trouxe um testemunho que é verdadeiro!

Em meio as ironias, críticas e questionamentos acerca da história da Igreja, Gibbon nos trouxe verdades. Uma proclamação profética para a igreja do século XXI.

Assim como Paulo referiu-se a Epímênides, eu diria:  Edward Gibbon, um profeta que trouxe 5 causas do crescimento e triunfo da Igreja, as quais não podem ser olvidadas ainda no século XXI. 

Referências bibliográficas

 BRUCE, F.F., The Book of Acts, Grand Rapids, WM B. Erdmans, 1956.

CASERTANO, Giovanni, Epimênides, Sábio ou Filósofo? HYPNOS, São Paulo, número 26, 1º semestre 2011, p. 13-35, em:  http://www.hypnos.org.br/revista/index.php/hypnos/article/viewFile/222/223, consultado em 05/05/2018.

GIBBON, Edward, The History of the Decline and Fall of the Roman Empire, Volume 8, Londres,  1821.

GIBBON, Edward, Declínio e Queda do Império Romano, São Paulo, Companhia das Letras/Círculo do Livro, 1989.

KEENER, Craig, O Espírito na Igreja – o que a bíblia ensina sobre os dons, São Paulo, Vida Nova, 2017.

NEWMAN,  John Henry, An Essay on the Development Christian Doctrine , 1845.

PRIOR, David, A Mensagem de I Coríntios, São Paulo, ABU, 1993.

DEIXE UM COMENTÁRIO

Please enter your comment!
Please enter your name here