Duas diásporas e duas voltas

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Pessoalmente creio que a volta atual dos judeus à terra de Israel é um cumprimento da promessa de Deus.[1] Mas será que é bíblico pensar assim? Pois não será que todas essas promessas sobre o retorno já se cumpriram na volta do exílio babilônico? E não é a conversão de Israel a condição da sua volta? Assim já ouvi pelo menos sete perguntas críticas que pesam na balança contra uma segunda volta dos judeus para sua terra como cumprimento da promessa de Deus. Vamos ouvir com muita atenção essas objeções fraternais (quatro bíblicas e três práticas) para não errar na interpretação e no ensino fiel da Palavra de Deus (2Tm 2.15).

1. Cumprimento realizado

A primeira objeção tem peso histórico muito grande: a volta atual não pode ser o cumprimento da promessa divina, pois essas promessas já se cumpriram na volta do exílio babilônico, em 539 a.C. Vamos então reler umas promessas de volta e perceberemos que todas são muito semelhantes, mas umas se encaixam mais nodia de hoje do que no primeiro retorno. De fato, há semelhanças e diferenças entre a volta da diáspora babilônica depois daqueles 70 anos preditos por Jeremias 29.10 e a volta atual da diáspora romana, que depois do ano 70 durou mais de 19 séculos. A diferença principal está no seu volume. Pensando nas promessas como estrelas (Gn 15.5), há promessas que são como uma estrela maior ou, quem sabe, podíamos dizer que há promessas que são como uma “estrela dupla”, uma menor na frente com uma maior atrás. Sem telescópio mal dá para ver que é uma estrela dupla.[2] A volta da diáspora babilônica é relativamente pequena, contada em milhares (Ed 2.64), mas a volta da diáspora romana é enorme, pelo menos duas vezes maior.[3] Vamos focalizar alguns aspectos das promessas sobre a volta e seu cumprimento.

De onde voltam? No ano 539 a.C., os judeus vieram basicamente da Mesopotâmia e da Pérsia, então do nordeste de Canaã. Mas já uns vinte anos depois daquela volta, o Senhor falou de novo, desta vez por meio do profeta Zacarias: “Salvarei meu povo, tirando-o da terra do oriente e da terra do ocidente” (8.7). E na profecia de Isaías 43.5-6 o âmbito geográfico é ainda muito maior: “Trazei meus filhos de longe, e as minhas filhas das extremidades da terra”. Em 539 a.C. eles vieram do nordeste. Mas, atualmente, vieram do norte e do sul, do leste e do oeste, da Rússia e da África do Sul, da Índia e de Marrocos, das Américas e da Austrália; agora, de mais de cem países, quase do mundo inteiro. Mas
alguém perguntaria: “Este seria realmente a volta prometida?” E a resposta podia ser formulada em outras perguntas: “Não são os que voltam judeus?” “E não estão voltando para Israel?” De qualquer forma é uma volta. Mas, por cima, não há atualmente um fenômeno interessante complementar? Pois cristãos estão ajudando nesta aliya,[4] como a organização “Operação Êxodo” com muitos cooperadores voluntários de várias nacionalidades, como Isaías já tinha profetizado (49.22).[5] E mais: Jeremias enfatizou que viriam da “terra do Norte” (16.15). Há um capitólio exatamente ao norte de Jerusalém, Moscou. É que a gigante Rússia abrigava mais de dois milhões de judeus, mas a emigração começou somente depois da implosão da União Soviética (1991). Stalin tinha criado uma nova pátria judaica, Birobidshan, no extremo oriente da Sibéria na fronteira com a China (1928). Era uma região autônoma (oblast) de confissão religiosa ateísta, mas na bandeira tinha um candelabro estilizado; e, depois do russo, a língua oficial era yiddish, um dialeto judeu-alemão da Europa oriental escrito com letras hebraicas. Agora, depois de 1991, a maioria emigrou para América ou Israel onde 15% da população fala russo.

De fato, a volta do exílio romano é como a volta do exílio babilônica, porém agora em escala mundial e, como profetizado, especialmente do Norte e ainda por cima com a ajuda de estrangeiros. Três coincidências?

Quem está voltando? É nossa segunda pergunta. Como na volta da Babilônia, é o “restante” que está voltando agora, inclusive aleijados e mulheres grávidas (Jr 31.7-8). Há ainda mais um paralelo, sinistro, entre as duas voltas do “restante”, pois uns sessenta anos depois do primeiro regresso houve uma tentativa frustrada de Esaú de genocídio do “restante” de Jacó no império persa (Ester, 480 a.C.). Outro paralelo amargo são as lágrimas do “restante” pois desta vez havia muito mais choro ainda de Raquel e das mães de Israel pelos seus filhos, pois “já não existem” (Jr 31.15-17). É que na Europa havia nove milhões de judeus, porém dois terços deles foram mortos (dos quais 1,5 milhão de crianças) naquele Holocausto satânico. E não somente na Alemanha, pois quando os nazistas invadiram a União Soviética, em dois dias mataram em Kiev, capital da Ucrânia, mais de 30.000 judeus (1941, Babi Yar). Mortos, e não somente pelos nazistas. Naquele mesmo ano, quase 800 judeus conseguiram fugir da Romênia num velho cargueiro de gado, o Struma, com destino a Palestina. Mas a Inglaterra, que governava aquele mandatório, recusou a entrada. Refugiou-se no porto de Istanbul. Quando, depois de uns dias, ficou claro que a Inglaterra não permitiria mesmo a entrada num porto da terra prometida, o Struma foi puxado para alto mar e no dia seguinte torpedeado pelo submarino russo Shch-213. Houve apenas um sobrevivente.[6] A Inglaterra recusou a muito mais sobreviventes do Holocausto a entrada na Palestina,[7] devolveu o mandato às Nações Unidas (1947) e definhou como potência mundial (cf. Is 60.12).

De fato, há muitos paralelos, entre o “restante” das duas voltas, mas também diferenças: mais gente, mais lágrimas.

Sobreviver como? Uma terceira comparação entre as duas voltas pode ser como os imigrantes sobreviveram depois da chegada em Canaã. Sem dúvida, nos dois casos, era basicamente pela agricultura. Mas havia diferenças. Depois da Babilônia, a terra ainda não tinha se tornada em deserto, pois outros pequenos grupos étnicos tinham imigrado para lá e a agricultura voltou a produzir bem. Mas depois daquele longo exílio romano, a terra tinha se tornado um deserto ou pantanais infestados de mosquitos com malária e febre amarela. Assim, todos os viajantes do século 19, como Mark Twain, observaram: a Palestina é um deserto (1867). Mas os judeus, desta vez voltando depois de mais de 40 gerações, compraram essas terras e os antigos donos (que moravam em Beirute, Damasco, etc.) riram, pois conseguiram um bom dinheiro por terrenos que não valiam nada. Mas como trabalharam esses donos “novos”! E foi interessante que muitos jovens de outras nações vieram ajudá-los! Interessante, sim, mas assim se cumpriu outra profecia de Isaías que estrangeiros trabalhariam nas lavouras e vinhedos (61.5).

De fato, a “segunda volta” é como a volta de Babilônia pois são judeus que precisam trabalhar para sobreviver, mas é diferente pois ocorre em escala mundial e com ajuda mundial como profetizado.

Morar onde? Uma outra pergunta básica que imigrantes enfrentam é onde morar. E, de novo, há muita semelhança entre as duas voltas, simplesmente porque estes judeus eram pessoas com as mesmas necessidades básicas. Só que na segunda volta em escala maior, e encontramos até profecias complementares a respeito deste assunto. Assim Isaías diz 61.4, diz: “Edificarão os lugares antigamente assolados […] e as cidades arruinadas…”. Assim, hoje, diferente do que ocorreu no Egito, em Israel há muitas cidades novas nos lugares, e com nomes antigos: Berseba, Lachis, Bete-Seã, etc., reconstruídas (sempre depois de pesquisas arqueológicas).E Sofonias profetizou especificamente sobre uma parte da região dos filisteus: “O litoral pertencerá aos restantes da casa de Judá; nele apascentarão os seus rebanhos, e à tarde se deitarão nas casas de Ascalom…” (2.7). Hoje, Ascalom, reconstruída por judeus sul-africanos (1951), é uma cidade moderna de uns dez quilômetros, ao norte da faixa de Gaza, com esse mesmo versículo bíblico afirma.

De fato, essa segunda volta é como a volta de Babilônia, somente em escala mundial e, às vezes, com alguma profecia complementar, como esta sobre Ascalom.

Nação forte? Refugiados que, depois de anos, voltam para casa, encontram pessoas que ocuparam o espaço vazio e que, de repente, se tornam seus piores inimigos. Por isso precisam se organizar bem para poder sobreviver. Mas, estando dentro do plano de Deus, eles podem ter certeza que o Fiel os ajudará. Uma profecia de Miqueias 4.6-7 trata especialmente deste problema dos inimigos. E, na primeira volta, o Senhor cumpriu sua promessa quando o árabe Gesém e seus companheiros resistiram ao governador Neemias (Ne 2.9). Mas a mesma promessa valeu também para o que parece ser uma segunda volta prometida, pois apesar dos muitos inválidos pelos campos de concentração, Deus prometeu que os faria “uma poderosa nação”! E Deus cumpriu sua Palavra! Pois como foi um milagre que o novo Estado de Israel conseguiu vencer as guerras de extermínio que seus novos vizinhos travaram contra ele. Logo depois do país nascer, eclodiu a guerra da independência, de 1948; depois a guerra de seis dias, em 1967; outra em 1973; e as seguintes. Mas Israel sobreviveu, e hoje é uma nação forte!

A promessa entregue pelo profeta Miqueias valeu para todas essas circunstâncias adversas, tanto na primeira como na segunda volta. E somente nesta última, em escala cem vezes maior e perigosa!

Todos nós já sabíamos da história, que, de fato, há duas diásporas, a babilônica e a romana. Pessoalmente creio que podemos também distinguir duas voltas e reconhecer essa última também como cumprimento das profecias naquela “estrela dupla”. Como acabamos de ver, em cinco áreas há paralelos claros, mas também “coincidências complementares”[8] nas profecias mencionadas que apontam nesta direção.

A grande pergunta honesta e fraterna permanece: “será que a volta atual dos judeus à terra de Israel de fato é um cumprimento da promessa de Deus?” No primeiro ponto procuramos responder à objeção que todas essas promessas sobre o retorno dos judeus já se cumpriram na volta do exílio babilônico. Mas há pelo menos mais seis réplicas que pesam na balança contra uma segunda volta como cumprimento da promessa de Deus.

2. Condição

Na primeira objeção, a do cumprimento realizado, podíamos apontar para as diferenças óbvias entre as duas voltas, mas na segunda objeção a resposta talvez seja mais difícil: não é que Deus estipulou uma condição? Não é que o SENHOR prometeu esse retorno à terra somente depois do retorno a Deus (Dt 30.1-6)? Estão voltando, mas será que já se converteram? Hoje em dia talvez somente 1,5% da população é judeu messiânico. Pensando neste ponto crucial temos de concluir: sim, estão voltando, mas praticamente sem conversão.

Que os judeus estão voltando para a terra prometida não há dúvida, pois desde 1900 este é um simples fato histórico e, se não, nem existiria um Estado de Israel. Então, há duas opções: ou é uma “volta carnal”, sem a bênção do Eterno, ou é pela graça imerecida de Deus. Pessoalmente creio que esta volta é um milagre da graça pelo sopro do Espírito Santo, numa certa altura da história geral. Pois quando é que o jornalista Theodor Herzl tocou a trombeta? Não foi um pouco antes do ano 1900?9 Será que foi como por um sopro do Espírito Santo? Se for, de certo a igreja de Cristo também percebeu esse sopro, pois quando o vento sopra, todo o mundo nota. Será que a igreja percebeu algo desse sopro? Será que a ordem cronológica neste sopro seria também: primeiramente o judeu, depois o grego? Parece que sim, pois um pouco depois de 1900 nasceu entre os crentes gentílicos o movimento pentecostal, e começou uma campanha de evangelização que, apesar de problemas, se provou ter sido a maior depois de Pentecoste (como o historiador Mark Noll observou). Pessoas simples, mas que tinham estado com Jesus (At 4.13)! Alguém poderia dizer: “Pura coincidência”. Mas eu acredito que a volta da diáspora romana é um milagre da graça e um milagre profetizado. Pois em Ezequiel 37 a sequência do cumprimento é: primeiro, a reunião dos ossos secos — antes da conversão.

Agora, sem dúvida, um reviver espiritual entre os judeus poderia acontecer em qualquer lugar da vasta diáspora existente, como ocorre também entre os gentios. Mas nessa profecia específica há um ponto centripetal, a terra de Israel (Ez 37.12). Neste caso, o juntar dos ossos em Israel é algo preparatório. E o que seria esse juntar dos ossos outro do que juntar judeus para ser um povo, uma comunidade organizada, provavelmente um estado, para poder sobreviver como um povo tão perseguido. Na entrada do Yad vaShem, o memorial do Holocausto em Jerusalém, se encontra gravado o versículo 14, revelando o que seus diretores judeus acreditam sobre a volta atual: “Porei em vós o meu Espírito, e vivereis, e vos estabelecerei na vossa própria terra”.[10]

3. Silêncio do Novo Testamento

Além da objeção que falta conversão e por isso a volta a Israel não pode ser o cumprimento da profecia, ainda há o problema aparente do quase silêncio total do Novo Testamento sobre a restauração de Israel. E, pensando bem, a ausência significativa de algo tão importante pode ser uma prova indireta que estamos na pista errada. E talvez seja por causa deste silêncio que muitos crentes pensam que a maioria das promessas do Tanach devam ser espiritualizadas.

Antes de chegar à essa conclusão devíamos nos lembrar do contexto. Sabemos que, nascidos e criados judeus, para o Senhor Jesus e seus discípulos, as promessas no Antigo Testamento, inclusive sobre a volta da diáspora, eram tão certas, transparentes, subentendidas e concretas que ninguém estranhou a pergunta: “Será este o tempo em que restaurarás o reino a Israel?” (At 1.6). Depois da resposta clara e negativa do seu próprio Rei (parafraseando: “Agora não! Nem chronos nem kairos!”), a ordem positiva para esta nova época da graça era muito clara: agora é evangelizar o mundo inteiro!

Mas em si, o fato de ter poucas referências não invalida essas poucas. Ouçamos então as poucas palavras do próprio Senhor Jesus e do seu apóstolo Paulo sobre o assunto. A mais conhecida talvez seja o “até” no sermão escatológico do Senhor Jesus em Lucas 21.24 sobre Jerusalém: “Cairão ao fio da espada e serão levados cativos para todas as nações; e, até que os tempos dos gentios se completem, Jerusalém será pisada por eles”.

A pequena palavra “até” é como uma fronteira: sempre tem dois lados, o para cá e o para lá. Assim também em Lucas. “Para lá” uma esperança desconhecida ainda, mas “para cá” uma advertência demorada de tom severo, que nos faz pensar na “medida dos pecados” dos povos gentílicos, que está se enchendo (Gn 15.16). E de alguma forma a história de Jerusalém está conectada com esse medidor, indicando o prazo da paciência de Deus com os gentios, incluindo as ameaças e ataques deles contra seu povo e seu país. Mas o que acontecerá com Jerusalém depois dos tempos dos gentios?

Para isto vamos ler o outro “até” conhecido sobre este assunto: Romanos 11.25-26: “Endurecimento veio em parte a Israel, até que haja entrado a plenitude dos gentios. E assim todo o Israel será salvo”. Como o Senhor Jesus, também Paulo fala sobre dois grupos étnicos: é um “até” promissor e alertador tanto para judeus como para não-judeus. Aponta para um futuro certo, mas de data aberta, o final da época da graça para os gentios, quando a porta da arca da salvação será fechada. E para os judeus é uma preparação para seu reavivamento, e ao mesmo tempo, uma última chamada clara para os outros povos.

Anualmente, judeus diziam no final da mesa pascoal: “No próximo ano em Jerusalém.” Era como uma oração pelo cumprimento das promessas no Antigo Testamento sobre a volta: “Até quando, Senhor?” Na sua palavra de despedida, na última mesa pascoal com seus discípulos, o Senhor Jesus não disse: “No próximo ano em Jerusalém”, mas deu outra indicação temporal no seu último “até”: “Desta hora em diante não beberei deste fruto da videira até aquele dia em que o hei de beber, novo, convosco no reino de meu Pai” (Mt 26.29-30). E tendo cantado um hino saíram para o Monte das Oliveiras de onde partiria em breve, depois da morte e ressurreição, e onde os seus pés estarão de novo numa outra plenitude do tempo (Zc 14.4).

Há ainda outro trecho onde o Senhor Jesus fala sobre o futuro de Israel. Na “Revelação de Jesus Cristo”, no capítulo 7, Jesus nos mostrou os selados de “todas as tribos dos filhos de Israel” diferenciando-os da “grande multidão […] de todas as nações, tribos, povos e línguas” (Ap 1.1; 7.4-10). Mas ambos os grupos foram salvos pela graça, pela fé no Cordeiro de Deus! É como o cumprimento da promessa apontada pelo apóstolo Paulo em Isaías sobre o remanescente de Israel que será salvo depois da plenitude dos gentios (Rm 9.27; 11.25).

Diante destas referências, o pequeno Novo Testamento não parece tão silencioso sobre esse assunto como comumente se pensa. E mais, onde ele fala, as palavras sempre estão em harmonia com as promessas do vasto Antigo Testamento, aguardando uma restauração espiritual de Israel, inclusive daquilo que vem antes disso. Entre nós, não há dúvida sobre o acordar espiritual de Israel no fim dos tempos. A única diferença entre irmãos reformados talvez seja que uns estão pensando logo na fase final e outros também, mais sobre as várias etapas anteriores.

4. Tiago

Um quarto argumento bíblico forte contra a ideia de uma volta prometida seria sobre uma hermenêutica específica: como o apóstolo Tiago interpretou Amós 9.11-12 sobre a reconstrução do tabernáculo de Davi como se referindo à entrada dos gentios na igreja (At 15.15-18). O assunto naquele concílio apostólico era a posição dos crentes gentílicos entrando numa igreja cristã composta de crentes judeus. A decisão da assembleia deixou claro que crentes-das-nações não precisam se transformar em judeus (pela circuncisão e lei cerimonial). Mas, por outro lado, ficou subentendido também que judeus não se tornam “gentios” quando vêm a Jesus, permanecendo judeus etnicamente. Ao mesmo tempo, embora cada grupo pudesse preservar suas características étnicas, Deus requer de todos uma etnicidade santificada (Ap 21.24; Is 24.16). E todos esses crentes são irmãos no Messias! Numa família, irmãos são diferentes, cada um com seus próprios traços típicos. Por isso, judeus, sendo judeus, deviam se circuncidar como Paulo fez com Timóteo por pertencer a esse povo específico. Tito não, pois era grego (At 16.3; Gl 2.3). Sem dúvida, a circuncisão não garante salvação (Rm 2.29), mas é um privilégio pertencer àquele povo com suas promessas, alianças e sofrimentos especiais (Rm 9.4). E esse povo judeu ainda é um povo, também depois da rejeição do Messias e, melhor ainda, ainda é seu povo (Rm 11.2). Assim, eles sofrem também como povo, pois apesar de serem holandeses, nossos vizinhos foram obrigados a usarem uma estrela de Davi (Jood) e desapareceram num campo de concentração nazista. Mas, por incrível que pareça, existem ainda como povo, descendentes de Abraão, Isaque e Jacó e por isso ainda sob a promessa segura do Fiel, o Deus da Aliança. Pois Deus é fiel e não rejeitou seu povo. Outros povos antigos já desapareceram há séculos, mas Israel não. Depois de 2700 anos, os “filhos de Manassés” voltando de Assam recentemente, ainda sabem que são Bnei Menashe.

Pelo que entendo, a interpretação de Tiago tratou, positiva e explicitamente, da posição dos crentes-não-judeus na igreja do Messias judeu, abrindo 100% de espaço para eles, mas, ao mesmo tempo, negativo e subentendidamente, não aboliu a etnicidade dos membros judeus, nem declarou inválidas as promessas específicas.

5. Números

Ainda há pelo menos três argumentos práticos que colocam em dúvida que o que está ocorrendo seria uma volta prometida. Assim um argumento aponta para os números: tem poucos judeus na terra. E, de fato, há ainda pelo menos duas vezes mais judeus na Diáspora do que em Israel.[11] Sim, mas isto não desqualifica nem nulifica a realidade da volta atual. Parece que também neste ponto a história se repete. Quantos voltaram do exílio babilônico? Sem dúvida muitos (Ed 2.64), mas, por outro lado, muito mais nem queriam voltar pois estavam tão acomodados nos seus cantinhos de descendentes de refugiados. Mas sessenta anos depois da volta dos seus pais, na época da rainha Ester, um edito ameaçou com extermínio todos esses judeus no vasto império persa, dando a impressão que realmente havia muitos deles em muitos lugares (Et 3.13; 8.13). A arqueologia conhece até uma “Cidade-al-Yehuda” na Mesopotâmia,[12] e outro grupo da tribo de Manassés chegou até o leste da Índia. A diáspora existente antes de 70 d.C. era vasta mesmo (At 2.11) e muitos nem queriam voltar a não ser para morrer e ser enterrados na Judeia, causando um número grande de viúvas na Terra Santa (At 6.1).
De fato, também neste ponto a história se repete: agora nem todos voltam, mas um bom grupo representativo se faz presente na terra prometida. Hoje em dia a volta se acelera de novo, e especialmente do “país do Norte”, mencionado tantas vezes nas profecias (ex. Jr 16.15). Sem falar dos milhares de refugiados da Ucrânia, somente neste ano (até 08/2022) mais do que 20.000 judeus migraram da Rússia para Israel,[13] causando inclusive tensões diplomáticas entre os dois países, porque muitos destes olim são cientistas. E dentro da própria Rússia as perguntas sobre a guerra contra a Ucrânia estão aumentando, motivo de aliyah também do crítico rabino-mór de Moscou, que seria preso se abrisse a boca.

Em 1948, na hora do nascimento do Estado de Israel, havia umas 800.000 pessoas. Agora, a população chega a 9,5 milhão, e a estimativa é que no centenário aumentará para 15,2 milhão. Entre eles, atualmente há uns 120.000 judeus messiânicos, mormente entre os jovens. Números falam também.

6. Ameaça

Como se fosse algo que contradiria o cumprimento da promessa da volta, há também o argumento prático que ainda hoje a própria existência de Israel — e de Jerusalém como uma cidade judaica independente — está sob ameaça. E é verdade, mas isto não desclassifica o retorno atual como uma “volta prometida”. Ao contrário, parece muito mais como uma confirmação, pois na história da salvação, muitas vezes o diabo logo se mexe com uma boa margem de segurança para ele, como na matança dos meninos abaixo de 2 anos em Belém. E o Senhor mandou um dos profetas pós-exílicos avisar que finalmente, não somente árabes, mas nações unidas subirão contra Jerusalém (Zc 14.2). Mormente, depois de 1967, o antissemitismo e seu sinônimo antissionismo estão aumentando por todo o mundo e rapidamente. Há até cristãos que apoiam e propagam a política BDS contra Israel, como um deão do Instituto Bíblico em Belém e Nazaré.[14] Ameaças contra a menina dos olhos de Deus (Zc 2.8) não negam a realidade de uma “volta prometida” atual, ao contrário, parecem confirmá-la.

7. Fatos históricos

Finalmente um outro tipo de objeção prática fraternal séria: “Como se pode interpretar e concluir algo a partir dos eventos atuais?”. Concordo que isso parece pretencioso e arriscado, no mínimo. Mas quando tantos irmãos têm a mesma impressão faria alguma diferença? E será que no tempo do Senhor Jesus, não era exatamente um dos problemas dos líderes de Israel o não poder/querer reconhecer, nos seus próprios dias, o cumprimento das promessas, e por isso não querer/poder reconhecer a Jesus como o Messias? A começar com os sábios interrogados por Herodes sobre Belém. Será que, 30 anos depois, todos já morreram ou ninguém se lembrou daquela visita alvoroçadora dos magos e daquele holocausto regional consequente? Ninguém, menos uns, como Nicodemos, que prestaram atenção aos fatos evidentes, e daí chegaram a uma conclusão de crente (Jo 3.2). É isso que aconteceu com os discípulos depois da ressurreição: eles já eram crentes, mas por causa dos fatos históricos se fortaleceu sua fé e creram na promessa de Jesus (Jo 2.22). Concordo cem porcento com a advertência que temos de ter muito cuidado para não errar e seguir falsos profetas. Por outro lado, atalaias não podem fechar os olhos para o progresso na história mundial. A meu ver, o assunto é tão importante que quase precisamos de um capítulo de “Israelogia” no locus da eclesiologia e/ou da escatologia.

Numa noite imaginária dois atalaias estavam conversando: “O que foi que ouvimos? Será que me enganei, colega? Que horas são? Será que eu estava cochilando um pouco? Você ouviu também alguma coisa? Parece que meu relógio parou! É cedo ainda? Vamos prestar atenção. Pois que som estranho era esse? Será que era o toque de um shofar?”

Se for assim, aplica-se o que o Senhor Jesus disse: Lembre-se da figueira, pois quando “seus ramos se renovam […] sabeis que está próximo o verão” (Mc 13.28). Podemos chorar por não entender o livro da história (Ap 5). Mas vamos aguardar atenciosamente como o Senhor da história vai guiar tudo. E uma coisa está certa: Venceu o Cordeiro nosso! Vamos segui-lo![15] Maranata!

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Referências bibliográficas

[1] Cf. meu texto anterior, “Israel voltando para casa”, em: https://teologiabrasileira.com.br/israel-voltando-para-casa/.

[2] Lembre-se também que, às vezes, as promessas de Deus são mais ricas do que pensamos e, às vezes, se cumprem por enquanto parcialmente ou em etapas. Assim, na sinagoga de Nazaré, o Senhor Jesus leu a promessa em Isaías sobre o ministério do Messias, mas Ele parou no meio da frase pois não tinha chegado ainda a hora do juízo final (Lc 4.19).

[3] Imigração na Terra Santa: em milhares: 539 a.C.: 42.000 (Ed 2.64); 1948 A.D.: 101.000; 1949: 239.000; 1950: 170.000. Veja https://www.jewishvirtuallibrary.org/latest-population-statistics-for-israel.

[4] Alija significa subir para Jerusalém.

[5] Cf. Ebenezer — Operation Exodus: https://ebenezer-oe.org/pt-br/; Christians for Israel International: https://www.c4israel.org/.

[6] Veja https://en.wikipedia.org/wiki/MV_Struma.

[7] Leon Uris, Exodus (Rio de Janeiro: Record, 2018).

[8] Co-incident? God-incident!

[9] Der Judenstaat, 1896.

[10] Yad vaShem email (Jerusalem, 18/9/22): further to your query, yes, the quotation is from the book of Ezekiel, Chapter 37, verse 14: “And I shall put my spirit in you, and you shall live, and I shall place you in your own land.”

[11] Dos 15,2 de milhões de judeus no mundo, somente 46% mora em Israel. Veja https://www.jewishvirtuallibrary.org/latest-population-statistics-for-israel.

[12] Veja https://en.wikipedia.org/wiki/Al-Yahudu_Tablets.

[13] Restando talvez uns 600.000.

[14] BDS = Boycot, Desinvestment, Sanction. Rev. Dr. Johanan Katanacho, The Land of Christ: A Palestinian Cry (Eugene: Pickwick, 2013).

 

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