Babel revisitada

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Autonomia

O cuidado com a perpetuação do nome não é coisa de hoje. O pastor pode se dedicar a fazer grandes obras em sua igreja e fica pensando se vai dar nome ao “Edifício de Educação Cristã”, ou a alguma praça ou avenida da cidade. Está bem, uma rua pequena já serve.

De fato, isso não é coisa de hoje. Gênesis 4.17 informa que “Caim edificou uma cidade e lhe chamou Enoque, o nome de seu filho”. Interessante que a primeira cidade tenha sido uma iniciativa dele. Deus lhe dissera que ele seria “fugitivo e errante pela terra” (4.12), mas Caim, tipicamente, tinha outros planos. Uma cidade representa o esforço humano conjunto dedicado ao bem-estar de seus habitantes. Nada contra as cidades. João registrou ter visto “… a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus” (Ap 21.2). Mas o ser humano, como Caim e depois em Babel, tem procurado provar a sua autonomia. Faremos nossas próprias cidades, não vamos aguardar a cidade de Deus.

Após o Dilúvio, a população migrou para a planície de Sinear, se estabeleceu ali e começou a se multiplicar (Gn 11.1-9). O nome Babel vem do acadiano Bãbilu, “Portão de Deus”, mas o som é o mesmo da palavra hebraica para confuso. Os homens decidiram construir uma torre elevada que tornaria célebre o seu nome. O Senhor, porém, lhes impôs barreiras na comunicação e o projeto fracassou. Ninguém se entendia.

O episódio bíblico de Babel resultou da arrogância e da rebeldia humana. Fariam o que quisessem, não o que fora divinamente ordenado, e promoveriam seu próprio nome, não o de Deus. O Senhor, porém, reprovou aqueles planos e a humanidade foi forçada a espalhar-se, como Deus havia originalmente determinado: “o SENHOR os dispersou dali pela superfície da terra; e cessaram de edificar a cidade” (Gn 11.8). Só que isso não representou o final da rebelião humana.

A ideia humana de alcançar o céu por seu próprio esforço não foi sepultada depois do episódio de Babel. Segundo a Enciclopédia da Bíblia Cultura Cristã, na Antiguidade, nas maiores cidades da Mesopotâmia “o templo era o edifício mais vistoso, e a torre que se elevava dele era sua glória suprema e seu esplendor. Essa torre, chamada de zigurate, era construída em terraços, ou andares, cada um deles menor que o anterior”. Tudo ali promovia a glória dos seus construtores e falava de seu acesso à divindade. Ainda segundo a Enciclopédia, “O santuário de Marduque na Babilônia era chamado de É-sag-ila (A casa cuja cabeça está levantada) e a torre elevada era chamada de É-temen-an-ki (Casa da fundação do céu e da terra)”. O último andar era reservado para residência do deus Marduque, daí alguns dos zigurates serem chamados de “A casa do elo entre céu e terra”. Nabopolassar (627-605 a.C.) deixou essa inscrição numa torre que construiu: “Marduque colocou este fundamento no coração da terra e ergueu seu pináculo até o céu”. O espírito da velha Babel estava vivo e ativo na Babilônia.

Alcançar o céu por seu próprio esforço e promover seu próprio nome estariam sempre ligados à história da humanidade. Remanescentes ficaram por lá fazendo de conta que nada havia mudado, continuaram com suas torres e cidades. Outros foram construí-las em outra parte e eu não me refiro apenas aos zigurates de incas, maias e astecas. O homem se espalhou pelo planeta e levou Babel junto. Ao confundir as línguas dos homens em Babel, porém, e espalhá-los pela superfície da terra o Senhor desferiu um golpe de morte nas pretensões humanas. Nos termos do mandato cultural pronunciado por Deus na Criação, o homem deveria dedicar-se a produzir cultura e a nutri-la, o que, porém, dependia, como depende, da comunicação, seriamente prejudicada em Babel. Pelo fato de ser impossível criar o saber individualmente e porque o conhecimento se apoia na interação humana, nos relacionamentos, então a qualidade do conhecimento produzido, ou melhor, seu caráter genuíno, decorrerá, por sua vez, da qualidade dos relacionamentos do homem consigo mesmo, com o próximo e com Deus. Nenhuma surpresa, portanto, que o cumprimento do mandato cultural tenha ficado prejudicado pela desobediência humana, o que se constata ter resultado de Babel e de sua maldição, evidentes na sociedade contemporânea.

Efeitos contemporâneos de Babel
Zygmunt Bauman, sociólogo nascido em 1925 na Polônia e radicado na Inglaterra desde 1971, faz análises bastante provocativas da sociedade contemporânea. Como filho desta mesma época, porém, ele avalia sem propor soluções. Bauman nada tem a dizer a esse respeito porque, ao avaliar, ele não chega às origens teológicas do problema.

Em seu Amor líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos, Bauman afirma que “o fracasso no relacionamento é muito frequentemente um fracasso na comunicação”.1 Nada mais babélico e mais renitente. O caso é que cada um parte de sua própria língua e, como individualistas congênitos, nos estabelecemos como padrão para o entendimento do Universo em geral e para os relacionamentos em particular. É claro que se poderia perguntar aqui de quem foi essa ideia de nos relacionarmos, mas a persistente imagem de Deus em nós, embora um tanto desfigurada, nos faz rejeitar a solidão que o individualismo produz. Fomos criados com capacidade e necessidade de nos relacionarmos, ou melhor, de termos comunhão.  Mas, que paradoxo! Essa centelha da Criação tem de conviver com a Babel em nós. Então, partimos para os relacionamentos e seja o que Deus (isto é, eu) quiser, e nada agradará mais um solitário Narciso do que um fiel espelho. Bauman cita o filósofo Knud Logstrup, da Universidade de Aarhus,2 para quem há duas perversões possíveis na comunicação. Uma delas resulta do desejo de promover a acomodação no relacionamento por meio de concessões e fuga do problema. Creio que Logstrup está certo. O outro não é como eu (que me elegi modelo no Universo e padrão nos relacionamentos), mas eu preciso dele para autenticar a minha existência, para dizer quem eu sou. Afinal, como escreveu Sartre (1905-1980), o homem se dá conta de que “não pode ser nada… salvo se os outros o reconhecem como tal”.3 Então, para manter a comunicação, eu decido generosamente que a outra pessoa demonstrará minha altruísta capacidade de fazer concessões e poderá, então, seguir com seu modo de pensar e de ser, embora fosse muito mais sábio da parte dela adotar-me como modelo. Mas, vá lá. Tudo pela harmonia… Uma segunda perversão possível, ainda de acordo com Logstrup, seria tentar mudar o outro, uma vez que nos elegemos como o ponto de referência. Alguém pode elogiar seu futuro cônjuge e explicar sua escolha para um relacionamento matrimonial por haver encontrado uma pessoa única no Universo. Logo após o casamento, porém, terá início a sua tentativa de transformação do cônjuge à sua imagem e semelhança, porque, afinal de contas, não pode haver duas pessoas únicas no Universo. Serei eu ou ela.  E, como diz o poeta, “Narciso odeia tudo o que não é espelho”. O agravamento dos conflitos será inevitável porque o outro é também individualista, não é o objeto em que eu gostaria de torná-lo. Ele verá em mim não só as qualidades que desejo exibir, mas igualmente – se não mais – os defeitos que eu preferia esconder. Meu avental de folhas não está dando conta do recado, eu continuo exposto.

A convivência com o outro é uma luta. Segundo Bauman, os que amam “desejam suavizar, extirpar e purgar a exasperadora e irritante alteridade que os separa daqueles a quem amam”.4 E aqui percebemos por que Bauman está equivocado ao chamar essas perversões, como o faz, de “filhas do amor”. Não são certamente filhas do amor definido pela Escritura em 1Coríntios 13. Ocorre que o amor verdadeiro segue o padrão divino, do qual o ser humano se afastou na Queda, que aliás, foi mesmo uma tragédia cósmica e um horror existencial. Os seres criados por Deus para se relacionarem com a Deidade e uns com os outros perderam, na Queda, não essa necessidade de relacionamento, mas as condições para ele, com a adoção de uma quimera denominada autonomia, algo tido como inalienável, irrenunciável, algo de que o ser humano então julga não poder livrar-se mesmo que queira. Ele pode aqui e ali culpar outros pelo que lhe acontece, mas no fundo está convencido de que se basta, não precisa de ninguém, pode curtir muito bem a solidão. Como uma comichão, porém, em um ponto que ele não consegue coçar, a necessidade de relacionamentos o faz temer a solidão. Bate o medo. Então vamos encarar os relacionamentos. Afinal, dos males, o menor e, supõe Narciso, talvez seja possível ter o melhor de dois mundos: o temor da solidão afastado e a ameaça da alteridade eliminada. Basta projetar-se no outro ou fazê-lo igual a Narciso. Daí podermos concluir, contra Bauman, que as tais perversões mencionadas por Logstrup não são filhas do amor, mas do temor. Primeiro bate o medo da solidão, depois bate o medo do outro. “Você vai me ver para sempre?”, pergunta o alarmado Garcin a Inês na peça Entre quatro paredes. “Pra sempre”, responde Inês. “Então, é isso o inferno. Eu não poderia acreditar… Vocês se lembram: enxofre, fornalhas, grelhas… Ah! Que piada. Não precisa de nada disso: o inferno são os Outros”.5

E aí vêm as perversões, qualquer delas evidenciando em nossos dias a alienação da Queda e a confusão de Babel.

Valeu tentar, mas fracassou

A frase acima é o título de uma matéria da revista Veja (20.02.13) sobre tentativas de exploração da Amazônia feitas com a plantação de indústrias e mesmo fazendas que, porém, não respeitaram a realidade da selva. As perdas foram bilionárias.

O Ministério do Bom Senso adverte: a tentativa de atropelar a realidade faz mal à saúde. Se não pudermos lidar com a realidade empregando apenas nossos meios, de nada adiantará fazer uma caricatura dela e, superestimando nossos recursos, declarar por antecipação nossa vitória. Podemos derrubar um enorme homem de palha com um forte e certeiro soco no queixo, mas ele é só isso mesmo. Um homem de palha.

Babel foi um emblema da recorrente prática humana de tentar, fracassar e tentar de novo, com os mesmos recursos, só para fracassar outra vez e seguir o ciclo vicioso. Trata-se de uma prática de autoengano que começou com a Queda. Aquela ideia humana de cobrir a sua nudez e esconder-se de Deus foi o reconhecimento de que, afinal, havia algo a ser escondido. O problema, porém, não era mais embaixo, na genitália. Era mais em cima, na mente e no coração; no conhecimento do bem e do mal e no desejo de ser autônomo. O ser humano pensou mesmo que se tornara autônomo, por isso adotou sua própria solução para mascarar diante de Deus o seu afastamento. Deus, porém, sabia que a solução não estava mais embaixo, no homem. Estava bem mais em cima, nele mesmo, Deus. Daí a tipológica vestimenta de peles, cujo sentido, porém, a descendência de Adão não percebeu, ou fez questão de desprezar. Somos autônomos, lembra? Então, qual é o problema se Deus colocou aquela espada flamejante para nos afastar dele? Podemos ter o paraíso às nossas próprias custas. Alguém aí falou em uma torre? Boa ideia! Chegaremos a Deus e, no processo, ainda provamos do que somos capazes. “Tornaremos célebre o nosso nome!”

Quando a poeira de Babel foi baixando, tudo o que se podia ver era um enorme vexame. Aquela tentativa tinha sido mais ridícula ainda do que os inadequados e indecentes aventais de folhas lá no Éden. Como sugeria Sartre, a consciência não pode furtar-se a enfrentar outra consciência que a denuncia, num “tempo contínuo” impossível de ser interrompido.6 A confusão em Babel resultava de cada um falar sua própria língua. Ninguém se entendia, mas o pensamento de cada homem era um só: a gente tenta de novo, só que dessa vez vamos fazer do meu jeito.

Essa confusão ainda vai aumentar.

Saber, o homem sabe, mas… “sou mais eu”

Espalhado a partir de Sinear, o ser humano levou consigo Babel, incluindo em sua bagagem a disposição de tentar de novo e de não abrir mão cada um de falar a sua própria língua. Certa dose de amargura e resignação por não conseguir, porém, acabou também curiosamente recheando a mochila. O conflito já mencionado neste texto nunca o abandonou: a autonomia leva ao individualismo, que gera a solidão, que o homem não atura por causa dos remanescentes vestígios de imagem de Deus – o que o faz precisar dos relacionamentos e da comunhão, coisa que ele teme tanto quanto ficar sozinho, se não mais. Sozinho, porém, o ser humano não poderá realizar-se, cumprir o propósito que o Criador lhe propôs e nem mesmo o que ele se propõe, sua autenticação como ser.

A insistência na ideia de autonomia aparece explicitamente nos escritos de Sartre. Para ele, “o destino do homem está nas suas mãos”, ele possui “total responsabilidade da sua existência” porque está “condenado a ser livre”.7

Conflitante com essa tese existencialista, a parte da bagagem humana composta pela resignação por não conseguir o que Frank Sinatra na sua música I did it my way cantou arrogantemente haver conseguido (Eu fiz do meu jeito), aparece na cultura humana de forma surpreendentemente clara e aberta. Uma afirmação do reconhecimento da limitação humana pode ser vista em um conceito da cultura grega clássica que foi amplamente explorado pelas tragédias. Trata-se de hybris. Segundo Bornheim,

O próprio de quem vive entregue ao mundo da aparência é fazer do homem a medida do real, fazendo-o recusar uma medida que o transcende. Nessa medida da recusa reside o pseudos, a injustiça, a culpa. O homem se torna – enquanto vive a teimosia de sua particularidade – princípio da lei, e rejeita um princípio (arké) que transcenda a sua particularidade. O nómos theiós, a lei divina, de que fala Heráclito, é preterida. O indivíduo passa a ser, assim, presa da aparência ou de uma medida aparente, porque [é] sua, particular; ele incide em hybris, ou desmedida, o oposto da existência que encontra a sua medida na “lei divina” e que por isso é justa.8

Esse violador intencional da lei transcendente, por deliberadamente eleger a sua própria, esse que incide na hybris, diziam as tragédias gregas, era o ser trágico que deveria ter sabido que não se pode lutar contra moira, às vezes identificada com Zeus, exprimindo o fado de cada um, sua sorte ou destino. Em Antígona,9 Sófocles (496-406 a.C.) faz o coro lamentar: “Ai, gerações humanas, como descubro que a vossa vida e o nada são o mesmo! Quem? Que homem chega a quanta felicidade possa imaginar, se não para ver ruir quanto imaginou”, e põe na boca do Corifeu este reconhecimento: “… no que é devido aos deuses, não se pode cometer qualquer deslize”.

O que se pode fazer? E, se não temos escolha, qual seria o proveito da criação e da exibição teatral das tragédias? Para Aristóteles (384-322 a.C.), elas produziam catarse. “Suscitando o terror e a piedade, têm por efeito a purificação dessas emoções.”10 O homem trágico era purificado com katharmós, o rito purificador, o sacrifício de sua vida, e a plateia o seria projetando-se nele e aprendendo que “cada um segue uma ordem determinada que nenhuma prece modifica”.11 Maktub, estava escrito, tinha de acontecer, ecoaria a cultura árabe.

O fatalismo cego é inaceitável para quem crê no Deus da providência, mas a paradoxal impotência humana que combina resignação e teimosia diante da implacável moira (fado ou destino) – seja ela uma força impessoal ou um deus criado pela imaginação humana – denuncia a condenadora confusão a que o homem ficou reduzido. Então, ele sabe que há uma linha que transcende a sua própria, uma que ele não deve transpor. A própria cultura humana expressa esse reconhecimento, que bem se vê nas tragédias gregas, mas repetidamente é retomada a ideia da autonomia, como em Sartre, já mencionado. O ser humano sabe, mas não tem a menor intenção de admitir, numa expressão de insensatez denunciada pela Escritura em Romanos 1.18-23:

A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça; porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se lhes o coração insensato.

Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis.

O homem sabe que não é um Batman, cujo cinto de utilidades lhe resolve qualquer problema. A própria cultura humana lhe diz para resignar-se, mas em face do que, ou de quem? Do Deus criador, Senhor do Universo, que tem um propósito glorioso para o ser humano, que é o de refletir a própria glória divina? Não, a despeito da inegável e clara revelação divina o homem reduz a divindade a seres feitos à sua imagem e semelhança – o que, como já disse acima, o ser humano quer sempre fazer com o outro – e limita-se à resignação, enquanto põe as mãos para trás, cruza os dedos e pensa: “Se deu certo para o Sinatra, por que eu não posso ter tudo do meu jeito?”.

Em seu Amor líquido, Bauman insinua que as telenovelas de nossos dias repetem as tragédias gregas e fazem a mesma coisa dizendo aos inseguros e inconformados com sua sorte: “Sim, esta é sua vida, e a verdade sobre a vida de outros como você. Não entre em pânico, vá levando, e não se esqueça nem por um momento de que isso vai acontecer – pode estar certo”.12 A ideia pode ser até admitir o caráter inevitável do fado, mas jamais de submeter-se a Deus. Na tragédia grega, foi sugerido às vezes que Moira era superior ao próprio deus supremo do panteão, mas prevaleceu a ideia da supremacia de Zeus. Confusão muito parecida com a de nossos dias, quando a referência a deus não deixa claro de quem – ou do que – se está falando.

A globalização, isto é, babelização
A autonomia e o individualismo que vêm da Queda e que se espalharam em Babel explicam de modo satisfatório a confusão reinante nesta época globalizada.

A cultura e a sociedade que produzimos é do tipo que solapa seus próprios fundamentos. Ela se torna, segundo Morin, “fermento de inadaptação”. Enseja a sua própria desintegração, estimulando o individualismo em vez de incentivar o espírito comunitário, a autogratificação em vez do espírito de serviço e abnegação, louvando a rebeldia em vez da disciplina, como se viu no endeusamento da juventude transviada dos anos 50, composta de rebeldes sem causa, mas com farta alimentação, roupas de qualidade, carros potentes e habitações confortáveis.13

A cultura e a sociedade que produzimos é do tipo que pratica inversão de valores fundamentais. Assim, desde sempre, e hoje mais do que nunca, valores como ideologias, o consumismo, o entretenimento, o exercício do poder e, acima de tudo, a própria busca da felicidade e autorrealização, são abraçados com valor religioso, seus templos brotam do chão como cogumelos depois da chuva, permanecem piedosamente lotados e seus adoradores fervorosamente fieis. Por outro lado, religiosos de diferentes persuasões transformaram sua religião em meio de vida, em entretenimento, ou canal para exercício de poder e autorrealização.

Com a inclinação para o egoísmo e a concomitante necessidade de reconhecer e afirmar o outro que, por sua vez, não nos afirma como desejamos, enfrentamos o que Sartre chamou de “inferno”,14 uma batalha que a sociedade humana emite sinais de estar perdendo. É a confusão babélica, que mesmo pensadores não cristãos reconhecem, embora rejeitem o diagnóstico bíblico das causas primeiras e a prescrição divina para a cura. Bauman descreve o “Convívio destruído” desta era que ele chama de “modernidade líquida”, em que nada tem forma definitiva e tudo é visto como que por turistas, de passagem, sem envolvimento duradouro. Exatamente quando o convívio se torna mais inevitável, para ele,

Um espectro paira sobre o planeta: o espectro da xenofobia. Suspeitas e animosidades tribais, antigas e novas, jamais extintas e recentemente descongeladas, misturaram-se e fundiram-se a uma nova preocupação, a da segurança, destilada das incertezas e intranquilidades da existência líquido-moderna (p.143).

A busca por riquezas cada vez mais distantes tornou gigante o Império Romano, antes de derrubá-lo, e a procura de novos mercados tornou pequeno o mundo moderno, antes dele se tornar inviável pelo excesso de contingente. No excelente filme O gladiador, o general romano Maximus Decimus Meridius sonhava voltar para casa após o que imaginara ter sido sua última batalha. Ele nunca retornou. Neste planeta, porém, em breve poucos poderão voltar para onde quer que seja, por simples falta de espaço. Está cada vez mais difícil afastar-se de tudo e de todos e a situação se agrava. Com a população mundial pulando de um bilhão para outro em pouco tempo não haverá remédio para quem sofrer de agorafobia.

A xenofobia mencionada por Bauman é então um paradoxo numa aldeia global congestionada, mas ela só faz aumentar e o estrangeiro – ou qualquer pessoa – vai ficando à distância de sua respiração. Há milhões de refugiados no mundo inteiro, indesejados onde são temporariamente acolhidos (bem como pelo país de onde saíram), e os estrangeiros que conseguem trabalho em outro país são vistos com desconfiança. “Culpar os imigrantes… por todos os aspectos da doença social (e acima de tudo pelo nauseante e desabilitante sentimento de… insegurança) está se tornando rapidamente um ato global”.15 Pessoas com sotaques mais ou menos suspeitos podem ser detidas para averiguação e podem ser presas por… resistir à prisão. É o absurdo da aldeia global golpeando a própria ideia de uma aldeia global. É a galera de Babel dizendo algo como: “Agora que estamos espalhados por toda a terra vamos fazer dela uma aldeia global, mas vamos excluir a escória”, como se alguém pudesse ser excluído do planeta. Isso é mesmo confusão.

A ideia de que alguns são tratados como escória humana não é nova, obviamente. Na era das grandes descobertas os novos continentes receberam levas de degredados. Era o lixo humano sendo tirado da vista da sociedade. No mesmo livro aqui citado, Amor líquido, Bauman denuncia a produção em nossos dias de “enormes quantidades de lixo humano”.16 Uma nova ordem social exige “que se cortem, aparem, segreguem, separem ou extirpem as partes da matéria-prima humana que sejam inadequadas para a nova ordem, incapazes ou desprezadas para o preenchimento de qualquer de seus nichos”.17 O progresso econômico também produz lixo humano, por exigir “a incapacitação, o desmantelamento e a aniquilação final de certo número de formas e meios de os seres humanos ganharem a vida”.18 Os sindicatos vão fazer muito barulho, mas, “para a fábrica não fechar”, vagas serão reduzidas com a automação do trabalho até ali feito por milhares de operários que agora serão, digamos, “colocados à disposição do mercado” já saturado de entulho humano resultante do desenvolvimento humano. Confuso, não?

A sociedade urbana moderna teve de familiarizar-se com a ideia dos aterros sanitários. Bem a tempo, porque surgiu a necessidade de descartar também o lixo humano, como no tempo das descobertas. Funções menos valorizadas nas economias mais desenvolvidas continuaram a ser desempenhadas nos paquistões e tailândias do planeta, mas a síndrome de Babel está rapidamente acabando com esses aterros sanitários porque também esses rincões vão sendo alcançados pelas conquistas da vida moderna, a nova ordem social e o desenvolvimento econômico. Nas palavras de Bauman, “A oferta de aterros sanitários é cada vez menor. (…) Pilhas de lixo humano crescem ao longo das linhas defeituosas da desordem mundial, e se multiplicam os primeiros sinais de uma tendência à autocombustão, assim como os sintomas de uma explosão iminente”.19

Uma aldeia global. Um mundo que é uma esfera. O único lugar habitável existente conhecido, pelo menos por enquanto. Quando os Pais Peregrinos ingleses se ressentiram de falta de liberdade religiosa na Inglaterra do século 17, embarcaram no Mayflower e se mudaram para a América do Norte. No mesmo século, huguenotes saíram da França para a África do Sul, escapando do extermínio; judeus fugiram de Recife para Nova Amsterdã (futura Nova York) por ocasião da retirada dos reformados holandeses e aproximação dos intolerantes católicos portugueses. Incontáveis têm sido os movimentos migratórios ao longo da História, por diversas razões. Desta aldeia global, porém, não temos para onde ir. A confusão só pode aumentar.

A aldeia global caminha para uma escassez crítica de espaço vital, quando provavelmente o mundo todo será um país só, mas, por enquanto, ainda dá para se ter os diversos Estados soberanos que estão cada vez mais… soberanos. Enquanto o rei Luís XIV reivindicava “O Estado sou eu”, os Estados hoje reclamam “O rei sou eu”. E não qualquer rei, mas um absolutista, dos que detinham poder de vida e de morte sobre os seus súditos. No Brasil, crianças e adolescentes com formação sadia em lares cristãos são constrangidos com aulas de “educação sexual” pervertida em nome de uma ideológica “saúde pública”. Nos Estados Unidos todos se inclinam reverentes diante de uma Suprema Corte que reescreve a Constituição ao “interpretá-la” e decidir que um bebê não mais está seguro no ventre da mãe. Lá e em outros países, o Estado decidiu que o aborto sob demanda é direito da mulher e muitos fetos não nascidos – e não consultados – são descartados como indesejáveis. Retornamos à barbárie. Logo serão sacrificados portadores de defeitos congênitos e irrecuperáveis. A escassez de recursos para a Previdência, agravada pela crescente longevidade da população, poderá requerer medidas radicais que Estados soberanos executarão para o bem da nação.

Confuso, não? Seria essa a ideia de “tornemos célebre o nosso nome” de Gênesis 11.4? O ser humano torna-se infame desse modo. Famoso, jamais.

Célebre, nunca.

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1BAUMAN, Z. Amor líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos (Rio de Janeiro: Zahar, 2004), p.31.
2Idem.
3SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo 2ª edição (Lisboa: Editorial Presença, 1970), p.249.
4BAUMAN, Obra citada, p.32.
5SARTRE, Jean-Paul. Entre quatro paredes (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005), p.125.
6SARTRE, Entre quatro paredes (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005), p.11.
7SARTRE, O existencialismo é um humanismo 2ª ed. (Lisboa: Editorial Presença, 1970), p.218,228,246.
8BORNHEIM, G.A. O sentido e a máscara 2ª ed. (São Paulo: Editora Perspectiva, 1969), p.76.
9SÓFOCLES, Antígona, Ajax, Rei Édipo. Tradução de Antônio Manoel Couto Viana (Lisboa: Editorial Verbo, s.d.), p.165, 51.
10ARISTÓTELES, Poética. IV, 27.
11SÊNECA, Édipo. Citado em MAFRA, J.J. “Para entender a tragédia grega” in Ensaios de Literatura e Filologia (Belo Horizonte: UFMG, 1980), p.79.
12BAUMAN, Obra citada, p.42.
13MORIN, E, Cultura de Massas no Século 20. 2ª edição (São Paulo: Editora Forense, 1969), p.177.
15BAUMAN, Obra citada, p.146.
17Idem.
18Idem.
19Idem, p.149.

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