Armadilhas do vocabul rio político

6
3073

O filólogo Victor Klemperer (1881-1960) foi um dos judeus alemães que sobreviveram ao regime nacional-socialista. Ele não só deixou registros históricos e pessoais valiosos, como seus Diários, mas também, conjugando seu conhecimento acadêmico à experiência existencial de viver constantemente perseguido e marginalizado por um governo totalitário, elaborou uma análise do uso da linguagem pelo Estado nessas condições: A linguagem do Terceiro Reich, publicada em 1947.1 Klemperer era um homem sensível e um observador arguto. Acredito que poucos conheceram como ele, por vias teóricas ou práticas, os usos perversos da linguagem posta a serviço da política.2 Eis um homem que tem autoridade para falar sobre as relações entre linguagem e mentira. Por isso, à primeira vista talvez pareça estranho que seu juízo tenha sido este: “A linguagem revela. Por vezes, alguém procura esconder a verdade por meio da linguagem. Mas a linguagem não mente.” 3

Há nessas palavras uma dimensão teológica oculta da qual o próprio Klemperer, como judeu convertido a um protestantismo teologicamente liberal e comprometido com o iluminismo, pode muito bem ter deixado de perceber: a linguagem foi criada por Deus para expressar a verdade, de modo que a mentira é um parasita pernicioso, mas nunca de todo bem-sucedido.

Ninguém ignora que o terreno do debate político é pródigo de mentiras completas, meias-verdades, confusões e ambiguidades, tanto propositais quanto inconscientes. É importante que o cristão aprenda a evitar tais armadilhas. Diante disso, a sentença de Klemperer se relaciona de várias maneiras ao espírito do presente ensaio, cujo propósito não vai além de uma introdução à tarefa de combater alguns equívocos cometidos com frequência na reflexão política. O método consiste em problematizar, a título de exemplo, dois pares de palavras-chave potencialmente enganadoras, mostrando de que modos podem ser (e são) usadas para ocultar a verdade ao invés de esclarecê-la. Ao mesmo tempo, pretendo mostrar como tais usos podem revelar algumas verdades que são, em geral, pouco notadas.

1. Direita e esquerda

As palavras “direita” e “esquerda” são muito utilizadas para definir a posição política de indivíduos, partidos, governos e movimentos. Existem outros modos de descrição, é claro, mas muitas vezes essa referência direcional proporciona um bom ponto de partida e ajuda a economizar palavras. Porém, todos sabem que não existem só duas posições políticas no mundo. E, embora haja quem creia que toda a diversidade existente é redutível a apenas duas atitudes ou lealdades fundamentais, em geral se admite ao menos a possibilidade de gradações: há posições moderadas e posições radicais, que a convenção dominante situa perto ou longe do centro, respectivamente. É assim que surgem a extrema-direita, a centro-esquerda etc.

Tais considerações, no entanto, são estritamente formais. Passemos agora ao conteúdo. O uso mais difundido dos termos costuma situar na esquerda as visões que priorizam a igualdade econômica dos cidadãos, e na direita as que adotam outras ênfases. É costume também situar no centro as posições comprometidas com a democracia, enquanto as vertentes autoritárias ou totalitárias são empurradas para as extremidades. Assim, indo da esquerda para a direita, teríamos: comunistas, socialdemocratas, liberais, conservadores e fascistas.

Esse esquema representa aproximadamente bem o sentido mais comum que os termos “direita” e “esquerda”, com suas respectivas gradações, costumam ter na mente da maioria das pessoas . Tal uso tem suas vantagens, como já afirmei. Por outro lado, essas palavras são perigosas, pois podem nos levar a severas incompreensões na medida em que esquecemos que são meros atalhos, incapazes de dar conta da complexa realidade das posições políticas. Na presente seção, discorrerei sobre dois grandes perigos associados a esse uso, começando pelo próprio fato do excesso de simplificação.

1.1. Toda classificação com base em um critério único simplifica demais a realidade

A divisão entre direita e esquerda é unidimensional, e não são poucos os que se incomodam com isso. O site The Political Compass,5  por exemplo, apresenta um método de classificação em que a posição política é uma grandeza vetorial, com duas dimensões. Cada visitante pode preencher um questionário com algumas dezenas de perguntas, expressando seu grau de acordo com certas afirmações (como “O inimigo do meu inimigo é meu amigo” ou “Quanto mais livre for o mercado, mais livre será o povo”); com base nas respostas, o visitante é classificado simultaneamente como direitista ou esquerdista, segundo a escala econômica, e como autoritário ou libertário, segundo a escala social.6 Embora não isenta de falhas, a proposta merece menção porque o problema que os autores do método estão tentando superar é real e importante: quando só há uma dimensão, apenas um critério pode ser usado, e isso acarreta distorções que podem se revelar muito graves.

Uma ilustração simples das incongruências a que isso leva pode ser obtida se considerarmos o caso do anarquismo clássico. Sem dúvida é uma posição de esquerda; mas onde devemos colocá-lo, exatamente? Situá-lo à direita da social-democracia dará a impressão de que se trata de uma posição menos radical que esta; se colocado entre a social-democracia e o comunismo, parecerá que é uma posição intermediária entre ambos; e, se for posto à esquerda do comunismo, alguns pensarão que este é apenas um anarquismo mais moderado. Todas essas alternativas são falsas, pois o anarquismo tem peculiaridades que não foram levadas em conta pela classificação convencional.

Muitos aspectos precisam ser levados em conta na descrição de uma posição política. A classificação unidimensional privilegia um deles como o único importante, relegando à obscuridade todas as demais semelhanças e diferenças que possam existir entre duas posições quaisquer. Desse modo, basta mudar o critério, e a classificação muda completamente. Suponhamos, por exemplo, que o critério fundamental escolhido seja o grau de poder dado ao Estado. Nesse caso teríamos, bem perto um do outro, o nazismo e o comunismo7  (que na classificação convencional estão em extremos opostos), ao passo que, na outra ponta, estariam os anarquistas lado a lado com os liberais mais extremados, os assim chamados anarco-capitalistas. Duas ideologias quaisquer podem estar muito perto ou muito longe uma da outra, dependendo do critério adotado. Esse é um dos problemas de se ter um critério só.

As dificuldades que inviabilizam a pretensão unidimensional são muitas, mas citarei de passagem apenas mais dois exemplos. Se abandonássemos a classificação mais popular em prol de outra, baseada na oposição entre posturas coletivistas e individualistas, tudo aquilo que se convencionou chamar de extrema-direita estaria do lado coletivista, mais perto da esquerda, e não mais poderia ser visto como uma vertente radical do liberalismo ou do conservadorismo. Se isso parece um mero sofisma para alguns, devo lembrar que a pré-história dos movimentos fascistas está emaranhada de modo inextricável com a história do socialismo; não seria um grande exagero afirmar que aqueles nasceram como uma dissidência deste. Quando o cientista político russo Aleksandr Dugin conclama o mundo a uma guerra contra a globalização inspirando-se indistintamente em autores nazistas, fascistas e comunistas,8 não está criando ex nihilo uma conexão sem fundamento histórico, e sim seguindo certas tendências reais e antigas que, por motivos diversos, deixaram de ser enfatizadas ao longo do século XX.9

Aproveitando que acabo de falar em globalização, o último exemplo citado será o caráter nacionalista ou internacionalista das propostas políticas. Nesse caso, teríamos reunidos do lado internacionalista os seguintes elementos: comunistas e socialistas em geral, para os quais o foco fundamental da lealdade é de natureza classista, transcendendo, portanto, as fronteiras nacionais; os globalistas adeptos da social-democracia cujo sonho é transformar a ONU em um governo mundial; os defensores mais extremados do liberalismo econômico, para os quais as fronteiras nacionais constituem barreiras ao livre comércio e, portanto, à prosperidade dos povos; diversos movimentos políticos islâmicos, que buscam implantar o sonho já bem antigo de um califado mundial; e mesmo alguns segmentos conservadores que atribuem ao Ocidente (ou a alguma nação em especial) a missão de civilizar e democratizar o mundo. O regime nacional-socialista alemão propagava a ideia de que as democracias capitalistas ocidentais eram aliadas naturais do comunismo, visto que ambos os lados eram internacionalistas e, supostamente, controlados por judeus. Sem dúvida há uma boa medida de paranoia nisso, mas não se pode negar que os nazistas estavam enxergando uma semelhança real e sendo coerentes com sua própria valorização exacerbada do nacionalismo.

Todas essas considerações e exemplos apontam para a dificuldade insuperável que qualquer método unidimensional de classificação do espectro político tem de enfrentar. Tal método necessariamente trará simplificações que podem ser fatais uma vez que seu caráter simplificador seja esquecido. Creio que isso pode ser reconhecido por representantes de qualquer posição política; ou seja, não é necessário ter opiniões semelhantes às minhas sobre qual é o melhor sistema para perceber o caráter potencialmente nocivo desse modo de classificação. Minha primeira objeção à classificação tradicional é, na verdade, uma objeção a qualquer classificação unidimensional.

1.2. A classificação convencional não privilegia o que é mais importante

Não existe método de representação do espectro político isento de desvantagens. Todos eles colocam em evidência certas verdades sobre a realidade política e tornam invisíveis algumas outras. Dessa forma, mesmo uma classificação unidimensional pode ter certo grau de utilidade, desde que estejamos certos de que aquilo que ela ressalta é mais importante que aquilo que ela oculta. Mas essa consideração traz à tona outro possível risco. Afinal, quem garante que uma dada classificação de fato privilegia o mais importante? Se não o fizer, ela conduzirá a enormes equívocos. Baseia-se nisso a minha segunda objeção ao esquema convencional. Essa objeção possui duas características que a diferenciam da primeira: ela não é universal, mas sim dirigida de modo específico a esse modelo; e não independe da posição política adotada pelo observador, pois essa posição influencia os critérios que ele adota para se classificar entre seus antagonistas, já que diz respeito de modo direto às prioridades que cada um tem em vista.

A classificação convencional presume que de cada lado há um acordo razoável sobre os fins, restando apenas combater os que desejam o fim oposto, assim como em uma partida de futebol o objetivo de cada time (ganhar o jogo) é logicamente sinônimo de derrotar o time adversário. Podem existir, é claro, diferenças severas em cada time sobre o melhor meio de ganhar o jogo, e é provável que essa divergência sempre ocorra na ausência de um técnico ao qual todos obedeçam. Os jogadores de um mesmo time podem, inclusive, brigar entre si e não colaborar uns com os outros, o que reduz suas chances de vitória. Apesar disso, todos estão de acordo quanto ao objetivo do jogo. Uma das inconveniências capitais do esquema tradicional é que ele aponta direita e esquerda como lados simetricamente opostos, retratando o jogo político como algo mais semelhante ao futebol do que de fato é. E não poderia ser de outro modo, pois a definição de um único critério de classificação tem naturalmente esse efeito.

A premissa da simetria entre direita e esquerda é falsa. Pode-se dizer, sem dúvida, que a erradicação da desigualdade econômica é uma meta consensual de todas as esquerdas existentes, a despeito de não ser tão unânime a expectativa concreta de como seria o socialismo ideal. Na verdade, as divergências internas da esquerda quanto a isso já foram bem maiores do que são hoje,10 de modo que a descrição pode ser quase acurada dependendo da época a que se refira. Porém, a unidade do lado oposto é muito menor; na verdade, quase nula. Não há um objetivo comum, por mais vago que seja, a todas as direitas que existem. Há quem veja essa unidade em uma defesa comum do “capitalismo”. Na seção 2 falarei mais sobre os problemas dessa ideia. Por ora, é suficiente destacar o fato amplamente ignorado de que, a rigor, apenas os liberais e parte dos conservadores defendem (e com graus variados de entusiasmo) algo que pode ser chamado de capitalismo. A assim chamada extrema-direita foi quase sempre avessa a ele, e muitas vezes com argumentos semelhantes aos da esquerda.

O achatamento de todas essas diferenças em um critério unidimensional é um dos responsáveis pela negligência desses fatos, levando à falsa ideia de que o liberal e o conservador são apenas nazistas moderados. É necessário entender que, dada a ausência de unidade de fins na direita, não pode haver simetria entre direita e esquerda. Enquanto nesta há uma unidade positiva, naquela há apenas uma unidade negativa: o que há em comum entre todas as direitas é apenas o fato de que se opõem à esquerda; mas o fazem pelas razões mais díspares e incongruentes entre si. O liberal se opõe à esquerda por ver nela um atentado ao valor supremo da liberdade individual; o conservador se opõe à esquerda por ver aí uma tentativa de subversão da ordem moral (ou espiritual) da sociedade; os fascismos se opõem à esquerda por verem nela um atentado ao espírito nacional ou racial em prol de uma ordem que transcende a da nação. Além disso, cada um desses motivos pode ser (e é), com o mesmo grau de coerência, apontado por seus respectivos defensores, não só contra a esquerda, mas também contra as demais direitas. Por conseguinte, ainda que adotemos a classificação convencional para dizer quem é direitista, não é justo nem sensato atribuir à direita uma unidade; o que existe é uma irredutível pluralidade de direitas.

Se não há, porém, unidade positiva alguma entre as direitas, resta explicar por que tantos têm dificuldade de perceber isso. Se a classificação convencional faz parecer que existe uma unidade que não existe, ela só pode ser uma ficção ideológica. Nesse caso, tudo se explica uma vez que tenhamos descoberto a quem convém tal ficção. Os fatos expostos no parágrafo anterior deixam claro que não há, para as várias direitas, nenhum interesse em atribuir a si mesmas uma unidade que seus próprios posicionamentos impedem de reconhecer como legítima. Portanto, a resposta é que a atribuição de uma unidade positiva a todas as direitas convém à esquerda.

Os motivos dessa conveniência são de fácil compreensão. Antes de tudo, é uma postura internamente coerente para um esquerdista: a igualdade econômica é, para ele, uma motivação central da luta política. Com base nessa prioridade, faz sentido que ele considere todos os que se opõem à sua meta como estando unidos de um mesmo lado, a saber, o lado de lá, o outro time. Daí a ver nesse outro time uma unidade de interesses escusos e uma defesa (aberta ou velada, consciente ou não) do inimigo supremo – o rico, o burguês, o capitalista etc. – a distância a ser percorrida é bem pequena.

Além disso, e em grande parte por causa disso, quase todas as ideologias de esquerda incluem alguma forma de teoria de luta de classes, para a qual é indispensável que os interesses econômicos e os conflitos construídos a partir deles ocupem o primeiro plano. É por isso que Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) dão início ao seu Manifesto comunista declarando que “A história de todas as sociedades, até os nossos dias, tem sido a história das lutas de classes”.11 Ao menos em seus momentos mais retóricos, quase todo esquerdismo tende a reducionismos desse tipo. Por conseguinte, a negação da unidade positiva das direitas é fatal à consistência interna de quase todas as ideologias de esquerda, e psicologicamente constrangedora para as poucas restantes. Sem essa unidade, a primazia da luta de classes fica bastante abalada, bem como a própria imagem que a esquerda faz do mundo e de seu próprio papel nele.

Esse fato sugere que não há possibilidade de um pensamento de esquerda que não seja inelutavelmente reducionista. Se há uma esquerda menos reducionista, ela o é à custa de sua coerência interna. Contudo, é necessário esclarecer que o reducionismo não é de modo algum uma exclusividade da esquerda. A tentação de ver o mundo como algo semelhante a um jogo de futebol se apresenta, sob diferentes formas, a toda posição política concebível. Afinal, como disse o filósofo Paul Ricoeur (1913-2005), “toda ideologia é simplificadora e esquemática”.12

Na política, como fora dela, o simplismo é inimigo da verdade. Reconhecer suas manifestações em cada caso e se precaver contra elas é um dos desafios do cristão que busca compreender a dimensão política da realidade. A polarização convencional entre direita e esquerda é uma das manifestações mais amplamente difundidas do simplismo posto a serviço de uma agenda política apóstata. A popularidade de tais simplificações é um indício da dificuldade envolvida na tarefa de superá-las, e a popularidade desse esquema específico é um indício da onipresente força cultural da esquerda.

2. Capitalismo e socialismo

Na seção anterior, utilizei os termos “capitalismo” e “socialismo”, que também são bastante presentes nos debates políticos, geralmente designando os dois polos de uma oposição tão fundamental quanto “direita” e “esquerda”. Dada a importância dessas palavras e seu enorme potencial para gerar confusões e mistificações, convém discuti-las de modo mais aprofundado.

Costumo dizer que o capitalismo não existe. Naturalmente, não é uma negação a ser levada a sério de modo absoluto. No entanto, ao enunciá-la eu pretendo dizer algo verdadeiro, em contraposição a alguns usos equivocados do termo que se fazem com muita frequência. Nesta seção levantarei quatro ressalvas a eles. Ao criticá-los, os usos equivocados correlatos do termo “socialismo” também deverão ficar claros, embora a explicação nesses casos possa ser menos desenvolvida.

2.1. O falso pressuposto de que vivemos em um mundo capitalista

Convém iniciar essa discussão pelo senso comum, como já foi feito na primeira seção. A Wikipédia anglófona define o capitalismo nos seguintes termos:

O capitalismo é um sistema econômico em que o comércio, a indústria e os meios de produção são controlados por proprietários privados com o objetivo de obter lucros em uma economia de mercado. As características centrais do capitalismo incluem acumulação de capital, mercados competitivos e trabalho assalariado. Em uma economia capitalista, tipicamente os preços mediante os quais se oferecem ativos, mercadorias e serviços são determinados pelas partes envolvidas em uma transação.13

Essa definição está bastante próxima do conceito mais difundido de capitalismo: indústria, comércio e meios de produção são possuídos e controlados por indivíduos que pretendem lucrar com isso, competem entre si, pagam seus empregados e acumulam dinheiro sem restrições. E os preços das coisas são determinados pelas partes envolvidas nas transações – em outras palavras, por vendedores e compradores. Está claramente implicado nessa descrição um papel nulo ou bastante limitado para o Estado na esfera econômica, seja como regulador ou produtor. Na verdade, o artigo acrescenta já no parágrafo seguinte: “O grau de competição, os papéis da intervenção e da regulação e o escopo da propriedade pública variam entre os diferentes modelos de capitalismo.” Entretanto, é fácil ver que, se o papel do Estado for significativo, a definição dada no início já não vale mais. Dizendo de outro modo, a participação do Estado na economia deve ser reduzida o suficiente para que sua omissão não prejudique a pertinência da definição fornecida.

A questão posta por essas considerações é a seguinte: podemos dizer que capitalismo é sinônimo de liberalismo econômico? Se a resposta for negativa, fica mais difícil dizer a que se refere o termo, pois essa identificação parece natural tanto para os detratores do livre mercado quanto para muitos de seus mais ardorosos defensores. Ela pode ser problematizada, sem dúvida, mas ainda não encontrei um autointitulado anticapitalista que simpatize com o liberalismo econômico, nem um crítico deste último que aceite a pecha de amigo do capitalismo. Esse fato precisa ser levado em conta por qualquer análise que pretenda dissociar as duas ideias. Embora o termo seja, em teoria, passível de outras definições, essa associação é mais forte que tais artifícios. Parece, portanto, que devemos nos inclinar a uma resposta afirmativa à pergunta do início do parágrafo.

Contudo, isso levanta outro problema. Ignora-se quase sempre que a palavra “capitalismo” foi cunhada pela esquerda do século XIX para designar o sistema governado por seus inimigos. A imensa popularização do termo, que se perpetuou sem nenhuma distorção significativa em relação ao seu sentido original, é mais um grande indicativo da força cultural da esquerda no Brasil e no Ocidente em geral. Assim como o próprio esquema convencional de classificação das ideologias, discutido na seção anterior, a conceituação de capitalismo sempre serviu ao modo esquerdista de ver o mundo. Ao mesmo tempo, quem fala em socialismo quase sempre tem em mente uma situação ausente que, quando muito, se concretizará no futuro e da qual só se podem ver agora exemplos imperfeitos em alguns países. A realidade concreta, ao contrário, é vista como capitalista, já que, por definição, o capitalismo é o que existe nos regimes modernos onde o socialismo não triunfou.

Essa maneira de pensar é bastante comum na esquerda, conquanto haja exceções históricas notáveis. Apesar disso, ela não é compatível com a ideia do capitalismo como sinônimo de (ou inevitavelmente associado a) liberdade econômica. Olhando em volta, é fácil ver que nos países considerados capitalistas há graus muito discrepantes de liberdade econômica, efetiva ou pretendida. E as variações não ocorrem apenas entre países, mas também entre gestões e entre programas partidários. Não há motivo para surpresa nisso, pois existem visões políticas de quase todos os tipos militando em cada país democrático, e as disputas de poder político repercutem na orientação econômica de um país. O mesmo ocorre, aliás, em regimes socialistas, dos quais o caso chinês é o mais óbvio.14 Em parte alguma há um exemplo de perfeito liberalismo econômico, nem de perfeito controle estatal da economia.

Por conseguinte, a lógica da associação entre capitalismo e liberalismo econômico (e entre socialismo e controle estatal ou “social” da economia) deveria levar à conclusão de que estamos em um mundo de economia mista, no qual cada lado luta para fazer prevalecer seu ideal, mas raramente com alto grau de sucesso. Em especial, o Brasil de hoje passaria a ser visto como uma espécie de meio-termo entre capitalismo e socialismo.15 Essa concepção faz justiça à realidade, mas cria problemas para quem está confortavelmente habituado a reclamar de todos os males do país e do mundo como resultantes do capitalismo. Afinal, um dos maiores álibis do socialismo nas disputas retóricas é sua inexistência concreta: ele não veio, ou então foi implantado de modo tão distorcido que se tornou irreconhecível. Uma visão mais realista do assunto evitará o falso pressuposto de que o status quo é capitalista. É o primeiro erro a que leva o mau uso do termo, e que todos fariam bem em evitar.

2.2. A primazia imerecida da economia

O segundo erro é mais fundamental que o primeiro, e se relaciona a algo que foi mencionado na seção 1: afirmei ali, limitando-me a registrar o fato, que nem todo opositor da esquerda o é por amor ao capitalismo. Para avançar na discussão, é necessário entender esse fato.

A palavra “capitalismo” surgiu vários séculos mais tarde que o termo “capitalista”, e foi criada para designar o sistema governado pelo burguês. Esse uso do termo pressupõe um modo específico de enxergar e interpretar a sociedade, evidenciando que seu autor atribui ao aspecto econômico uma importância fundamental. Há nisso uma lição a ser aprendida. Se o termo “capitalismo” foi inventado pela esquerda para descrever aquilo a que ela se opõe, o “direitista” que se proclama defensor do capitalismo está aceitando os termos do adversário e, de certa forma, vestindo a carapuça. Sempre que o usuário da palavra não tiver consciência da carga semântica embutida nela, as distorções intrínsecas às cosmovisões esquerdistas poderão se manifestar em seu próprio discurso, a despeito de sua intenção de se opor a elas.

Uma das convicções centrais que dão sentido ao termo “capitalismo” é a do primado do aspecto econômico. Essa absolutização indevida da economia é um dos traços mais amplamente difundidos dos posicionamentos políticos de esquerda, e se reflete com frequência em suas prioridades práticas. Diante disso, é natural que a defesa entusiasmada do capitalismo (seja lá o que for que se queira dizer com isso) se manifeste entre aqueles que não são antiesquerdistas o bastante, isto é, os que compartilham em algum grau dessa mesma absolutização. Os opositores mais radicais e autoconscientes da esquerda se negarão com muita naturalidade a se enquadrar nos critérios que ela usa para definir a luta política.

Por isso, os liberais tendem a ser defensores mais empolgados do capitalismo que os conservadores: em comparação com aqueles, estes últimos se preocupam mais com problemas morais e culturais, que veem (com razão, creio eu) como mais básicos que os puramente econômicos. Para os liberais, como para os esquerdistas, a economia tende a ocupar o primeiro plano, e uma consequência disso é que tanto uns quanto outros deixam de ver as amplas afinidades que têm entre si fora do âmbito estritamente econômico. Elas começam em um berço comum na Revolução Francesa e na adesão ao secularismo e terminam com frequência em itens bastante específicos como a legalização do aborto e das drogas ou as boas-vindas a um eventual governo mundial.

Sendo assim, minha segunda objeção é que o conceito de capitalismo, sobretudo quando visto em oposição fundamental ao socialismo, coloca o aspecto econômico em primeiro plano e tende a varrer para debaixo do tapete todos os outros elementos envolvidos na disputa política, muitos dos quais revelariam afinidades impressionantes entre supostos inimigos mortais.

2.3. A exacerbação da luta de classes

Em parte pelo que acabo de explicar, o uso da palavra “capitalismo” para designar o mundo ocidental de hoje acarreta uma unidimensionalização perniciosa da realidade. Essa tendência serve a um propósito retórico e ideológico específico que não ajuda a entender melhor o mundo. Em especial, há usos do termo “capitalismo” que só fazem sentido à luz da ideia da luta de classes.

Devo reconhecer que essa conexão não é onipresente, embora seja comum o bastante para merecer menção neste ensaio. Como afirmei em 2.2, muitos que defendem o liberalismo econômico não hesitam em chamá-lo de capitalismo, e um dos meios pelos quais fazem essa defesa passa justamente pela negação de um conflito fundamental entre os interesses dos patrões e os dos empregados – ou seja, a negação da luta de classes.16  Além disso, o significado preciso e as implicações da luta de classes nem sempre foram consenso na própria esquerda, havendo casos extremos de pensadores de forte influência marxista, como o francês Jean Jaurès (1859-1914),17  para os quais esse conceito nunca teve grande importância prática. Uma das grandes divergências internas do marxismo nas primeiras décadas do século XX girou em torno disso, com os assim chamados “revisionistas” sendo acusados pelos “ortodoxos” de negar, na teoria ou na prática, a importância da luta de classes.

Os atenuantes que acabo de citar provam duas coisas. A primeira é que, embora a palavra “capitalismo” seja usada quase sempre para expressar uma visão de mundo em que a luta de classes tem um papel proeminente, não é impossível usá-la com outras acepções, como fazem os liberais. A segunda é que as tensões históricas do marxismo em torno da questão só mostram que nem as ideologias mais polarizadoras podem deixar de fazer concessões à realidade. A esquerda nunca conseguiu definir de modo claro, sem contradições nem reducionismos, a relação entre os valores de classe e os valores humanos universais. De qualquer modo, as versões mais polarizadoras do marxismo e seus descendentes são agora mais fortes do que naquele tempo, e hoje há muitas pessoas que não conseguem pensar fora do velho mantra da luta de classes.

Não pretendo negar que sejam comuns os conflitos de interesse entre patrões e empregados. Mas nego que o motor da história consista nisso. Afinal, também podem existir (e existem) conflitos de interesse entre quaisquer dois grupos de seres humanos postos em relação mútua – pais e filhos, homens e mulheres, governantes e governados, comerciantes e clientes, mestres e alunos, gerentes e subalternos, sindicalistas e funcionários não-sindicalizados, etc. Nada prova que alguma dessas categorias de conflitos seja mais fundamental que as demais, e tampouco que os conflitos sejam mais fundamentais que outras formas de relacionamento social.18  A absolutização indevida de uma categoria específica traz duas consequências danosas à apreensão da realidade social: a perda de vista dos interesses em comum entre as classes e a falsa oposição entre os interesses dos revolucionários e os da elite econômica.

2.3.1. A perda de vista dos interesses em comum entre as classes

O discurso da luta de classes ignora todos os interesses em comum que possam existir entre ricos e pobres. Tal comunidade começa pelo fato de que todos os envolvidos em uma empresa, do patrão ao faxineiro, têm interesse no sucesso dela, e prossegue em muitas outras áreas mais ou menos alheias às relações econômicas, nas quais todos têm interesses em comum na qualidade de cidadãos, de pais de família etc.

Uma das reclamações mais recorrentes ao longo da história dos movimentos socialistas, em especial os de orientação marxista, é que os proletários cujos interesses eles julgam representar não têm “consciência de classe”, ou seja, não sabem o que é melhor para si mesmos e se apegam à ilusão de que têm interesses em comum com seus patrões. Decorre daí a importância da educação (ou doutrinação) no marxismo, que nisso mantém uma tradição herdada do iluminismo. Porém, não se deve excluir sumariamente a possibilidade de os “proletários” terem bons motivos para pensar assim, embora isso leve à conjectura (muito mais plausível) de que o marxismo é que vive de colocar os homens uns contra os outros. Uma vez assumido que o direito de decidir o que é melhor para o povo cabe a um punhado de indivíduos ideologicamente iluminados e reunidos sob um determinado partido, não há meios consistentes de evitar a justificação de qualquer tipo de barbaridade.19

2.3.2. A falsa oposição entre os interesses dos revolucionários e os da elite econômica

A segunda consequência é que, uma vez assumido o primado da luta de classes, é fácil inferir daí uma suposta oposição entre os interesses da classe econômica mais privilegiada e os de qualquer um que reivindique para si a posição de representante dos interesses do povo. A ligação das duas ideias é, aliás, parte essencial da invariavelmente autolisonjeira cosmovisão do militante de esquerda. Trata-se, porém, de uma falsa associação. Mais de cem anos atrás, o escritor inglês G. K. Chesterton (1874-1936) expressou isso muito bem em um de seus romances, durante uma conversa sobre um levante anarquista:

Você fala de multidões e classes operárias como se elas fossem o nó da questão. Está contaminado por uma ideia eterna e idiota: se a anarquia vier, virá dos pobres. Por quê? Os pobres foram rebeldes, mas anarquistas, nunca! Mais do que os outros, têm interesses em que haja um governo decente. O pobre realmente se enraíza em sua terra. O rico, não; pode embarcar num iate para a Nova Guiné. Algumas vezes os pobres se opuseram aos maus governos; os ricos sempre se opuseram a qualquer governo. Os aristocratas foram sempre anarquistas.20

O trecho acima é manifestamente literário e talvez um pouco chocante; não é à toa que seu autor é considerado o mestre do paradoxo. Mas seu cerne não é mera pantomima literária: há aí mais verdade do que pode parecer à primeira vista. O economista austríaco Rudolf Hilferding (1877-1941), um dos pensadores mais interessantes da história do marxismo, percebeu muito bem o quanto os interesses do “capital financeiro” são contrários ao liberalismo econômico21  e favoráveis a um Estado forte e monopolizador. Em consequência disso, Hilferding também viu que o triunfo dessa modalidade de “capitalismo” tornaria mais fácil a transição para o socialismo. Ele só não extraiu daí a conclusão de que é perfeitamente legítima e lógica a aliança (ainda que parcial e provisória) entre os grandes banqueiros e empresários e os socialistas, pois isso seria fatal à coerência interna de sua ideologia. Mas não há boas razões para rejeitar essa hipótese a priori.

Quando começamos a prestar atenção nessa possibilidade, alguns fatos começam a fazer sentido. Por exemplo, em 1981 foi realizada a Third International Conference of Institutions for Christian Higher Education,22  evento que tratou do marxismo de uma perspectiva cristã e acadêmica, e à qual compareceram palestrantes com graus bastante variados de afinidade por ele. Mais tarde, foi publicado um livro com as participações do evento.23 O autor mais simpático ao socialismo é John Perkins, partidário da teologia da libertação e envolvido com “teologia negra”. Seu texto, que é intelectualmente o mais fraco do livro, possui sete páginas,24  das quais um total de duas linhas é dedicado a críticas ao comunismo e quase todo o restante ataca o “capitalismo”. Mas o importante para o presente contexto é que Perkins era também o único participante do evento que contava com o apoio oficial da Fundação Ford.25

Esse é apenas um exemplo dentre muitos que apontam para o interesse dos “grandes capitalistas” em apoiar e financiar aqueles que, segundo sua própria teoria, são seus maiores inimigos. E isso ajuda a entender outro fato pertinente e pouco conhecido: quem acessar sites e blogs mantidos por conservadores americanos descobrirá que eles não se consideram defensores dos interesses dos ricos, e que seus maiores inimigos não são os comunistas, e muito menos os pobres, mas sim indivíduos e entidades bilionários que gravitam em torno de governos e organismos internacionais. Esses inimigos costumam apoiar não só o intervencionismo estatal na economia, mas também vários programas muito caros à nova esquerda, como os movimentos gays, a legalização do aborto e das drogas, as ações afirmativas, etc.

O uso da palavra “capitalismo” sem a consciência da frequente comunhão de interesses entre os grandes ricos e a militância socialista traz consigo o sumiço de todo um lado da realidade política. Uma das vítimas locais de tais compreensões é Demétrio Magnoli, um esquerdista moderado e bastante sensato em vários de seus posicionamentos, mas que viu na implementação das cotas raciais pelo governo Lula a prova de uma “crise do pensamento de esquerda”26  no Brasil, com base em parte no argumento de que as cotas são apoiadas pela Fundação Ford.27  E tudo isso porque lhe parece inverossímil que os grandes ricos apoiem algum programa de esquerda.

2.4. A confusão de categorias econômicas, políticas e culturais

A quarta objeção que faço ao uso da palavra “capitalismo” é que ela leva com facilidade à confusão quanto à relação entre economia, política e cultura. O termo é usado algumas vezes para descrever tão somente uma determinada configuração econômica, ou os traços essenciais a um conjunto delas. Em outras situações, porém, ele pode adquirir um sentido bem mais amplo, designando instituições políticas e sociais, bem como valores morais e culturais vigentes em uma sociedade cuja economia é considerada capitalista. É assim que muitos pretendem, por exemplo, que palavras como “consumismo”, “individualismo” ou “democracia” designem qualidades intrínsecas ao “capitalismo”.

Tais associações não são sempre problemáticas, mas passam a sê-lo quando envolvem reducionismo. A ideia marxiana da superestrutura, por exemplo, destina-se a fazer crer que as condições econômicas de uma sociedade determinam, de algum modo, a configuração de todo o resto. Há sempre uma tendência reducionista, com graus diversos de concretização, no discurso e na reflexão teórica de escolas, partidos e doutrinas comprometidos com a absolutização da economia. Esse é um vício compartilhado pelos setores majoritários do socialismo e do liberalismo político. O pressuposto por trás disso é, em última análise, materialista. Quem não se dispõe a enveredar por esse caminho faz bem em questionar a validade desse pressuposto.

Contudo, o reducionismo, já abordado na seção 2.2, não é o único problema. Afinal, é possível combater conscientemente o economicismo e ainda endossar os erros de categoria ligados ao conceito de “capitalismo”, seja para combatê-lo, seja para defendê-lo. D. A. Carson observa28  que muitas vezes falta sutileza nas discussões sobre democracia, ignorando-se as mutações do conceito e da realidade ao longo da história e suas variantes nos diversos países. Um cuidado semelhante deveria existir com relação ao conceito de “capitalismo”. Se essa recomendação fosse seguida, as discussões em torno do tema seriam bem menos retóricas. Em especial, muitas das falsas associações entre categorias políticas, culturais e econômicas seriam prontamente vistas como falaciosas, e seria também mais fácil fazer justiça aos momentos de verdade restantes nas associações mais corriqueiras.

Não há espaço aqui para discorrer de modo amplo sobre as razões pelas quais convém evitar essa confusão de categorias, mas exporei a que julgo a mais importante. É natural que ideologias que supervalorizam a economia vejam tudo o mais como decorrente dela. Em consequência disso, seus adeptos não verão sua própria missão como uma simples reforma econômica, e sim como uma transformação integral da realidade humana. Além disso, verão tudo aquilo que reprovam na sociedade atual como efeito do sistema econômico que combatem. Em especial, o próprio fato de terem menos poder do que gostariam será interpretado como uma consequência das injustiças do presente sistema. Daí à rejeição das limitações que esse sistema impõe ao seu poder a distância é muito pequena. Combinado com uma ênfase coletivista, esse fator leva com demasiada facilidade ao radicalismo político e a diversas modalidades de violência.

Dizendo de outro modo, a busca de uma unidade fundada no aspecto econômico, uma vez refletida no vocabulário, leva a uma confusão conceitual entre categorias econômicas e políticas que, por sua vez, abre as portas para a legitimação do combate à democracia e ao estado de direito.29  Afinal, se o esquerdista radical defende a instauração de uma “ditadura do proletariado”, só pode ser porque vê a democracia representativa e o estado de direito como facetas um tanto hipócritas do “sistema capitalista”, os quais ajudam a perpetuar a opressão econômica e, portanto, não merecem sua lealdade.

Brota daí a ambiguidade muitas vezes presente no discurso político de esquerda, mesmo nos casos menos radicais: o mesmo termo “capitalismo” é usado para designar, ora uma configuração econômica tida como liberal (em geral, aliás, de modo equivocado), ora as instituições políticas, sociais e culturais vigentes. Sem dúvida há casos em que esse uso das palavras revela simples confusão mental de indivíduos honestos. Contudo, há também casos em que a confusão é promovida de modo intencional, e serve ao propósito de ocultar projetos de poder que não receberiam o mesmo apoio se fossem declarados sem disfarces.

A aceitação irrefletida do uso corrente do termo “capitalismo” para descrever nossa sociedade nos priva da capacidade de resistir de modo firme a tais artifícios, e assim, inadvertidamente, nos leva a colaborar com o triunfo cultural e político de ideologias com as quais muitos de nós de fato não desejamos compactuar. Esse erro basilar deve ser resistido se não quisermos correr o risco de, no intento de denunciar abusos do poder financeiro, ajudar alguns a corroer as bases da própria democracia. O termo “capitalismo” presta-se com demasiada facilidade ao papel de alimentar bodes expiatórios.

3. Esclarecimentos e considerações finais

Se o espaço permitisse, haveria mais a ser dito sobre outros termos que padecem de maus usos semelhantes, como democracia, ideologia, progresso, reação, revolução, justiça social, conservadorismo, liberalismo, individualismo, coletivismo, totalitarismo, laicismo etc. Contudo, não devo encerrar esta exposição sem fazer um esclarecimento ao leitor sobre o que pretendo e o que não pretendo promover com a argumentação das seções precedentes. Um bom atalho para isso consiste em refletir de modo breve sobre as seguintes palavras do filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), dado o forte paralelo entre as minhas intenções e as dele:

A obra intelectual aspira, frequentemente em vão, a esclarecer um pouco as coisas, enquanto a do político, ao contrário, geralmente consiste em confundi-las mais do que já estavam. Ser da esquerda, assim como ser da direita, é uma das infinitas maneiras que o homem pode escolher para ser um imbecil: na verdade, ambas são uma forma de hemiplegia moral. Além disso, a existência desses qualificativos contribui muito para falsificar mais ainda a “realidade” do presente, já falsa por si só, porque as experiências políticas a que cada uma corresponde giraram cento e oitenta graus, como demonstra o fato de que hoje as direitas prometem revoluções e as esquerdas propõem tiranias.30

Existem duas maneiras de entender essas declarações. Como frequentemente acontece, a mais fácil é a errada: equivocar-se-á quem tomá-las como um incentivo à insurreição contra todas as definições, todos os posicionamentos e todos os compromissos. No contexto do presente ensaio, convém combater os rótulos de modo a que ninguém se deixe enganar por eles. Mas, ao fazer isso, não pretendo dar munição aos que se comprazem em fugir das definições firmes. Todos conhecem os velhos chavões comuns no meio evangélico, como “não sou de direita nem de esquerda, e sim de Cristo”. Há certo valor em tal postura, mas é fácil ver que, por trás de uma máscara de equilíbrio, caráter conciliador e superioridade intelectual ou espiritual, ela pode ocultar (e muitas vezes oculta) um simples desejo covarde de não desagradar ninguém ou, pelo menos, um desinteresse oriundo da pura ignorância.

Diante disso, é necessário enfatizar duas verdades. A primeira é que posturas evasivas desse tipo, ao contrário do que proclamam seus possuidores, não eliminam os dualismos. Apenas substituem os existentes por outros: entre equilibrados e desequilibrados, entre os tolos que aceitam rótulos e os sábios que os rejeitam. E, como em outros casos analisados neste ensaio, os novos dualismos também servem ao propósito de elogiar implicitamente seus adeptos. A segunda é que nada garante a utilidade de tais posturas na compreensão da realidade política. Quem se põe acima de todas as definições e correntes políticas pode muito bem continuar não entendendo nada de algumas delas, ou mesmo de todas. Assim, não há razões sérias para promover um agnosticismo em matéria de conceituação política, e tampouco uma imparcialidade absoluta em termos de posicionamento político. É nessa perspectiva que devem ser entendidos tanto a citação de Ortega transcrita acima quanto o espírito deste ensaio.

Há um sentido em que a postura do cristão precisa, de fato, fugir às categorias impostas por correntes políticas alheias às verdades do cristianismo. Afinal, os critérios e prioridades dessas correntes estão sempre, de alguma forma, apoiados em uma cosmovisão fundamentalmente equivocada. Da mesma forma, se recusamos um posicionamento ao lado dos sunitas ou dos xiitas, ninguém pode reclamar que estamos em cima do muro. A distinção entre sunitas e xiitas é uma divisão interna do islamismo, e não faz sentido para quem não é muçulmano. Os cristãos podem ter razões para considerar um desses grupos melhor que o outro sob algum critério, mas jamais poderão se identificar com ele em um sentido absoluto sem que deixem de ter uma cosmovisão autenticamente cristã.

Esse princípio também se aplica no terreno da política, tanto na luta concreta quanto na epistemologia. É importante que saibamos evitar a tirania das palavras, não necessariamente deixando de usá-las,31 mas usando-as de modo que expressem a verdade de modo consciente e intencional. Devemos lembrar que o problema último não está nas palavras, e sim no coração do homem, que é mais enganoso que todas as coisas (Jeremias 17.9). Por isso, não é saudável supor que nos livraremos do risco de errar apenas porque evitamos certos termos, e tampouco que a invenção de termos novos é suficiente para nos aproximar da verdade. Basta que saibamos que os termos usados colocam em evidência certos fatos e relações ao mesmo tempo em que ocultam certos outros. Usá-los sem ter consciência do que se faz é um meio seguro de ficar aquém da verdade. Ao cair nessa armadilha verbal, tornamo-nos portadores de uma ideologia falsa por excesso de simplificação.

As palavras são úteis quando as dominamos, e deixam de sê-lo quando elas nos dominam – ou, o que é ainda pior, quando alguém nos domina através delas. De um modo ou de outro, isso é o que acontece quando (e na medida em que) não submetemos nossa compreensão da realidade ao senhorio de Cristo. O reconhecimento de Deus como Criador e Soberano da dimensão política da realidade e de suas leis é o único caminho seguro para nos levar à verdade sobre o assunto, pois qualquer outra coisa será idolatria. A mudança em nosso uso das palavras só pode ser proveitosa se ocorrer como consequência desse compromisso fundamental.

________________________
1
A obra foi lançada no Brasil pela editora Contraponto (Rio de Janeiro, 2010).
2Como se pode ver, há várias semelhanças entre Klemperer e seu contemporâneo inglês George Orwell (1903-1950), escritor bem mais famoso e também interessado na relação entre linguagem e totalitarismo.
 3KLEMPERER, Victor, Os diários de Victor Klemperer: testemunho clandestino de um judeu na Alemanha nazista, 1933-1945 (São Paulo: Companhia das Letras, 1999), p. 442.
 4Esse é o motivo pelo qual dedico algum espaço a esse esquema no presente ensaio, embora haja também acadêmicos que o endossam; cf., por exemplo, Norberto BOBBIO, Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política (São Paulo: Unesp, 1995), p. 119. Por isso, passo a me referir a ele usando a expressão “classificação convencional”, ou outras equivalentes.
 5Disponível em http://www.politicalcompass.org/. Acesso em 2 de março de 2014.
6Um esquema bidimensional semelhante, embora não idêntico, é apresentado por Franklin FERREIRA no artigo “Totalitarismo, o culto do Estado e a liberdade do evangelho” (Teologia Brasileira, n. 29, 2014). Dsponível em http://161.35.55.174/teologiadet.asp?codigo=392. Acesso em 8 de julho de 2014.
 7A pertinência dessa semelhança também é ressaltada e defendida por FERREIRA, op. cit.
8Cf. o estudo de Marlene LARUELLE, Aleksandr Dugin: A Russian Version of the European Radical Right?, disponível em http://www.wilsoncenter.org/sites/default/files/OP294.pdf. Acesso em 4 de abril de 2014.
9
Cf. o pungente testemunho pessoal prestado por Gustavo Corção (1896-1978) em seu livro A descoberta do outro (São Paulo: Agir, 1944) sobre os círculos revolucionários que frequentou na década de 30, antes de sua conversão ao catolicismo: “Fiquei então convencido, nesse tempo, de que o mundo estava torto, intencionalmente torto, por malícia humana, para benefício exclusivo da detestada classe burguesa. […] Encontrei amigos velhos e conheci novos. […] Formamos logo um grupo conspirador onde havia um pouco de tudo o que fosse revolucionário: leninistas, trotskistas e fascistas. […] De excitação em excitação, e certos de que todo o mal estava na direção burguesa baseada ou na mais-valia ou na mentira vital, a maior parte do grupo não fazia questão da doutrina. A mim, devo confessar que o materialismo histórico nunca me pareceu suficientemente claro. Dessa displicência surgiam discussões porque os outros não podiam suportar essa espécie de agnosticismo revolucionário, e três ou quatro rostos ansiosos de catequese viravam-se para mim. E lá vinha o Manifesto, a sociedade sem classes e tudo mais. Mas pouco se me dava o materialismo histórico: o que eu queria era o fígado do burguês. Nesse ponto havia uma instantânea concordância. E assim ficávamos, até altas horas, espancando esse judas ausente, com entremeios de anedotas inéditas.” O capítulo “O viúvo viu a ave”, que contém esses trechos, está disponível em http://permanencia.org.br/drupal/node/86. Acesso em 8 de julho de 2014.
10Tal conclusão brota naturalmente, por exemplo, da leitura de The Founders, o primeiro volume da trilogia Main Currents of Marxism, de Leszek KOLAKOWSKI (Oxford: Clarendon Press, 1978), focado sobretudo no século XIX; cf. especialmente o capítulo X, “Socialist ideas in the first half of the nineteenth century as compared to Marxian socialism” (p. 150-191).
11MARX, Karl e ENGELS, Friedrich, Manifesto do Partido Comunista. Rio de Janeiro: Cátedra, 1987, p. 27.
12Citado por Jonas MADUREIRA em Afinal, o que é “totalitarismo”? Disponível em http://jonasmadureira.com/2009/12/07/afinal-o-que-e-totalitarismo/. Acesso em 30 de maio de 2014.
13Capitalism, disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Capitalism. Acesso em 7 de junho de 2014. Tradução minha.
14Sobre o funcionamento do Estado chinês e alguns efeitos de suas disputas internas de poder, ver CHAO, Jonathan, “Function and the role of the state: the place of religion and education (a case study: China)”, in VANDER STELT (org.), John C., The Challenge of Marxist and Neo-Marxist Ideologies for Christian Scholarship (Sioux Center: Dordt College Press, 1982, p. 187-209). Gary NORTH, em Marx’s Religion of Revolution: Regeneration through Chaos (Tyler: Institute for Christian Economics, 1989, p. 200-231), fornece um interessante exemplo adicional ao tratar do histórico das oscilações no grau de liberdade econômica da União Soviética.
15Convém acrescentar, nesse contexto, que o Brasil não tem nenhuma tradição forte de liberalismo econômico, e esse é apenas um dos motivos pelos quais é tremendamente impróprio associar a assim chamada “direita” brasileira às vertentes clássicas do conservadorismo ou do liberalismo político. Em nosso país, via de regra, a visão da “direita” sobre economia não é muito menos estatista que a da esquerda.
16Um exemplo disso pode ser encontrado em vários momentos da obra pública de Rodrigo Constantino, um dos mais famosos economistas liberais da imprensa brasileira atual.
17Um bom resumo de seu pensamento e sua relação com outras correntes marxistas pode ser encontrado no volume 2 (The Golden Age) de KOLAKOWSKI, op. cit., p. 447-467.
18O filósofo neocalvinista holandês Herman Dooyeweerd (1894-1977) expressou a mesma ideia ao criticar o conceito de classes sociais vigente no socialismo do século XIX: para ele, as relações sociais “podem exibir um caráter de mútua neutralidade, de confronto, livre cooperação, antagonismo, competição ou luta” Cf. A New Critique of Theoretical Thought, vol. 3 (Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1957), p. 177, citado em DOOYEWEERD, Herman, Roots of Western Culture: Pagan, Secular, and Christian Options (Toronto: Wedge, 1979), p. 201-202.
19A doutrina leninista da “vanguarda do proletariado” é um exemplo histórico bastante típico, tanto no discurso quanto nas consequências mais concretas, do que esse elitismo igualitário pode fazer. Vladimir Lênin (1870-1924) também foi o pensador marxista mais explícito em sua denúncia do caráter burguês da “ideologia” dos operários não submetidos ao Partido.
20CHESTERTON, G. K., O homem que foi Quinta-feira: um pesadelo (São Paulo: Círculo do Livro, 1976), p. 132.
21Por essa razão, entre outras, o uso do termo “neoliberalismo” para descrever a economia globalizada promovida por esses ricos é outro dos grandes equívocos que convém evitar.
22Ocorrida em Sioux Center, Iowa, de 13 a 20 de agosto de 1981.
23VANDER STELT, John C. (org.), op. cit.
24Ibid., p. 104-110.
25Ibid., p. 264.
26MAGNOLI, Demétrio, O grande jogo: política, cultura e ideias em tempo de barbárie. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p. 247.
27“A política de cotas raciais surgiu nos Estados Unidos como reação conservadora aos movimentos pelos direitos civis e propagou-se, entre ativistas negros, sob o patrocínio de instituições do establishment como a Fundação Ford” (ibid., p. 244).
28Cf. a discussão em CARSON, D. A., Cristo e cultura: uma releitura (São Paulo: Cultura Cristã, 2012), p. 111-116.
29É importante deixar claro que não estou dizendo que todos os absolutizadores da economia fazem isso, e sim que, uma vez assumidos seus pressupostos, não há meios coerentes de manter as portas bem fechadas contra essa possibilidade.
30ORTEGA Y GASSET, José, A rebelião das massas (São Paulo: Martins Fontes, 2007), p. 25-26. Essas palavras foram escritas originalmente em 1937.
31Em especial, as palavras discutidas aqui podem ser (e têm sido) usadas com sentidos descritivos e científicos bem definidos, conquanto não isentos de divergências interpretativas. Não é meu objetivo impugnar os debates sérios nessa área. O propósito deste ensaio é denunciar usos que ocultam a verdade em vez de revelá-la, e isso acontecerá com tanto maior frequência quanto mais retóricos e ideológicos forem. Um esforço autenticamente científico envolvendo esses termos não ignorará as questões levantadas aqui.

6 COMENTÁRIOS

  1. Excelente texto Sr. Andr‚ Venâncio, texto um tanto extenso repleto de informaçäes e conhecimentos precisos sobre política e a relação desta com a Cosmovisão Cristã…
    ótimo texto!

  2. Importante e perspicaz artigo. Lançou luzes preciosas sob essa questão semântica e ideológica sob uma perspectiva cristã de forma praticamente inaudita. Iniciei, aqui, boas reflexäes. parabéns ao autor.

DEIXE UM COMENTÁRIO

Please enter your comment!
Please enter your name here