O livro X das Confissões de Santo Agostinho começa com a seguinte oração:
Conhecer-te, ó conhecedor de mim, conhecer-te tal como sou por ti conhecido.
Essa oração é, acima de tudo, a expressão de um desejo. Desejo por algo que nós homens não temos: o pleno conhecimento de Deus. É verdade que de algum modo conhecemos a Deus. Mas isso não quer dizer que o conheçamos do mesmo modo que ele nos conhece, i.e., plenamente. Nosso conhecimento é parcial, o conhecimento de Deus é pleno. Se por um lado, não conhecemos a Deus plenamente, por outro, não há nada em nós ou fora de nós que Deus não conheça. E não foi Santo Agostinho quem primeiro disse isso, mas o apóstolo Paulo, em 1Co 13.12: “Porque agora vemos como por um espelho, de modo obscuro, mas depois veremos face a face. Agora conheço em parte, mas depois conhecerei plenamente, assim como também sou plenamente conhecido (grifo meu)”.
O “apóstolo dos gentios” disse que, no presente estado de vida (“agora”), conhecemos em parte, “como por um espelho”. Ora, ver por meio de um espelho não é ver diretamente, mas através de algo. Por exemplo, uma coisa é olhar diretamente para o sol, outra bem diferente é olhar para o sol que está refletido nas margens de um rio. Em ambos os casos, o que vemos é o sol. A diferença está no modo como nós o vemos. O mesmo vale para o conhecimento que temos de Deus, pois não o conhecemos do mesmo modo que um dia o conheceremos, i.e., plenamente. Contemplar sua face, tal como ela é, é ainda uma promessa que aguardamos com esperança. Portanto, conhecer a Deus de forma plena não é uma realidade para aqueles que vivem no mundo.
Em contrapartida, o mesmo não pode ser dito acerca de Deus, que nos vê e conhece plenamente. Nada do que somos ou venhamos a ser escapa ao seu olhar. Ele nos conhece de um modo que nem mesmo nós nos conhecemos. Com isso podemos afirmar que não conhecemos plenamente nem a nós mesmos. Uma vez que Deus conhece algo sobre nós que ainda não conhecemos, passamos a depender duas vezes da revelação divina. Duas vezes porque Deus não revela apenas o que dele podemos agora conhecer, mas também algo que somos e que jamais descobriríamos por nós mesmos. Pois como saberíamos que Deus nos conhece plenamente se ele não nos descortinasse realidades de nosso ser que permaneceriam completamente desconhecidas para nós? Não foi por menos que Calvino, em sua Instituição da Religião Cristã, ao falar sobre o conhecimento de Deus, começou fundamentando a tese de que o conhecimento de Deus e o de nós mesmos são “realidades inseparáveis”.
Podemos, então, concluir que o desejo pelo conhecimento pleno de Deus é também um desejo pelo pleno conhecimento de nós mesmos. Como esse conhecimento de nós mesmos ainda não é possível, busquemos o que, por enquanto, é possível: “conhecer em parte”. E se de fato quisermos conhecer em parte quem e o que nós realmente somos, precisamos, então, conhecer em parte quem e o que Deus realmente é. Ora, para que Deus seja conhecido assim, é necessário crer em Jesus, o Cristo. Ele é o maior e mais verdadeiro conhecimento que podemos ter de Deus (Jo 14.7-11). A propósito, Alister McGrath, professor de teologia histórica na Universidade de Oxford, sugere que há duas declarações do Novo Testamento que não podemos perder de vista, quando pensamos sobre a maior revelação que agora podemos ter de Deus. A primeira é a declaração de que Cristo é “o resplendor da glória de Deus e a expressão exata de seu ser” (Hb1.3); a outra é a declaração de que Cristo é “a imagem do Deus invisível” (Cl 1.15). Com essas duas passagens, McGrath mostra o caráter pessoal da revelação de Deus por meio de Jesus Cristo em contraste com a impessoalidade da revelação natural, i.e., o conhecimento que se pode ter de Deus a partir das coisas criadas (Rm 1.20). Em suma, Cristo, uma pessoa em carne e osso, é a máxima revelação que podemos ter de Deus. Vale a pena encerrar essa reflexão, recordando as palavras de Lutero — que durante muitos anos foi frade agostiniano —, mencionadas por Alister McGrath em Paixão pela verdade (São Paulo, Shedd Publicações, 2007, p. 33):
Deus não quer ser conhecido a não ser por intermédio de Cristo; nem pode ele ser conhecido de qualquer outro modo. Cristo é o descendente prometido a Abraão; nele, Deus cumpriu todas as suas promessas. Portanto, somente Cristo é o meio, a vida, e o espelho pelo qual vemos Deus e conhecemos sua vontade. Por meio de Cristo, Deus declara seu favor e misericórdia para conosco. Em Cristo, vemos que Deus não é um mestre irado e um juiz, mas sim um pai gracioso e bondoso, que nos abençoa, isto é, que nos salva da lei, do pecado, da morte, e de todo o mal, e nos oferece a justiça e a vida eterna mediante Cristo. Este é um conhecimento certo e verdadeiro de Deus; uma persuasão divina que não falha, mas retrata Deus mesmo numa forma específica, à parte da qual não há nenhum Deus (grifo meu).