A forma literária do Evangelho e a perspectiva teológica de acordo com Marcos

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Introdução

Neste artigo, propõe-se discutir “A forma literária do Evangelho e a perspectiva teológica de acordo com Marcos”. Refere-se a uma pesquisa que procura pensar sobre a forma literária do Evangelho do primeiro século. O Evangelho é uma forma literária que foi utilizada por Marcos, Mateus, Lucas e João.

De certa forma, o Evangelho de Marcos é anônimo, pois não vemos nenhuma evidência dizendo que fora escrito por ele, como se vê em algumas cartas do Novo Testamento, que apresenta claramente a sua autoria. Por exemplo, nas epístolas paulinas observamos, no início de cada carta, Paulo se apresentando como o autor da escrita (Rm 1.1). Porém, ao interpretarmos o Evangelho, temos que ir atrás de outras fontes para sabermos sobre as características gerais da escrita deste gênero. É visto, também que Marcos se adaptou a um estilo literário de sua época para se comunicar com a igreja do primeiro século e ajudá-los contra as opressões que viviam sobre os romanos. Não apenas isso, mas iremos também argumentar sobre o significado do gênero literário.

Todo texto é escrito em uma forma literária. Por exemplo, um poema não será lido da mesma forma que uma história narrativa, e muito menos lerá um Evangelho da mesma forma que uma carta do Novo Testamento, pois elas possuem estruturas de escritas e objetivos diferentes um do outro. Sendo assim, compreender o que é uma forma literária irá ajudar na compreensão clara do conteúdo do autor ao se comunicar para os seus leitores.

Evangelho é um gênero literário, um “gênero do Novo Testamento é dedicado à caracterização da pessoa e da vida de Jesus […]” (RYKEN, 2017, p. 65). Uma das questões mais importantes ao analisar o Evangelho é compreender que esse estilo de escrita reflete aspectos do ambiente literário greco-romano. A forma de escrita tem certas semelhanças com a literatura biográfica conhecida daquele período.

  1. Análise de gênero

Gêneros são tipos de literatura específicas. A Bíblia contém muitos gêneros literários em sua composição. A finalidade desses gêneros textuais era atender o propósito da mensagem e o estilo literário mais utilizado na época. Cada tipo tem sua própria regra de interpretação e para fazer uma leitura correta, é preciso conhecer cada um deles.

Na Bíblia podemos observar uma mistura de gêneros literários, como, por exemplo, lei, narrativa, poesias, sabedoria, profecia, Evangelhos e epístolas. A diferença entre esses gêneros literários está na sua forma particular dos textos. A poesia utiliza ritmo, paralelismo etc. Os Evangelhos utilizam ensinos, parábolas e narrativas. Osborne declara que “o gênero funciona como uma valiosa conexão entre o texto e o leitor” (OSBORNE, 2018, p. 229). Para compreender um texto de uma forma clara é preciso estudá-lo com certas expectativas, isto é, entendê-lo no seu próprio gênero. Analisar um gênero é saber algo que está relacionado com a comunicação.

“O estudo dos gêneros textuais não é novo e, no Ocidente, já pelo menos vinte e cinco séculos, se considerarmos que sua observação sistemática se iniciou em Platão” (MARCUSCHI, 2020, p. 147). Portanto, é visto que gêneros literários não é algo moderno, pois, na antiguidade, já se falava a respeito deles. Ainda segundo Marcuschi,

A expressão “gênero” esteve, na tradição ocidental, especialmente ligada aos (gêneros literários, cuja análise se inicia com Platão para se firmar com Aristóteles, passando por Horácio e Quintiliano, pela Idade Média, o Renascimento e a Modernidade, até os primórdios do século XX. Atualmente, a noção de gênero já não mais se vincula apenas à literatura, como lembra Swales (1990, p. 30), ao dizer que “hoje, gênero é facilmente usado para referir uma categoria distintiva de discurso de qualquer tipo, falado ou escrito, com ou sem aspirações literárias”. É assim que se usa uma noção de gênero textual em etnografia, sociologia, antropologia, retórica e na linguística. É nesta que nos interessa analisar a noção de gênero. (MARCUSCHI, 2020, p. 147; versão Kindle).

Podemos observar que gênero literário não é algo moderno, mas antigo, a respeito do que grandes pensadores falaram sobre isso. Gênero literário é uma categoria de composição literária. Classificações em grupos dos diversos tipos de obras literárias que existem. “Gênero literário refere-se à categoria ou ao tipo de escrito caracterizado por determinada(s) forma(s) e conteúdo ou um dos dois” (ZUCK, 2020, p. 147). As obras literárias têm tipos de literatura e identificar qual o tipo de gênero literário que está sendo lido ajuda a fazer distinção entre uma obra poética, narrativa, Evangelhos e assim por diante.

Gêneros literários reúnem conjuntos de obras que apresentam características análogas de forma e conteúdo, por exemplo, narrativa histórica, biografias, poemas, cartas, e assim por diante. Esse termo se estende em diversos subgêneros, isto é, qual tipo de estilo literário está sendo desenvolvido no texto? Caso seja uma obra narrativa, ela pode ser desdobrada como história de resgate, história de homicídio, poemas ou hinos. Portanto, cada gênero literário contém sua forma de conteúdo. Gênero refere-se às características de um escrito que geram certas expectativas nos leitores e que os dispõem a tratar um dado escrito de maneira concreta. Sendo assim, gênero literário é a maneira de informar um assunto.

O Evangelho é uma biografia que apresenta o estilo da vida de Jesus, realmente do jeito que ele viveu, e essa experiência é narrada no Evangelho. Ryken chama isso de “o realismo dos evangelhos” (RYKEN, 2017, p. 124). Os acontecimentos que estão em torno de Jesus transmitem um sentido de realismo, ou seja, acontecimentos, indivíduos, diálogos, discursos e encontros. Sendo assim, de que forma Cristo, o personagem central do Evangelho, é retratado? Podemos afirmar que o autor do Evangelho não registrou todas as informações da vida de Jesus, porém, listou os eventos mais importantes da vida de Cristo enquanto ele esteve entre o seu povo. Portanto, Evangelhos são coleções de ditos, compilações da vida e do ministério de Jesus. O gênero como Boas-Novas no contexto Romano tem suas importâncias.

Qual o significado de boas-novas? Essa expressão tem sido importante no primeiro século, principalmente no contexto romano, pois esse termo era utilizado para expor as vitórias dos imperadores e as datas comemorativas, como, por exemplo, aniversário. Evangelho tem um significado importante e isso envolve sua compreensão no ambiente no qual está sendo escrito.

A palavra Evangelho, no tempo do Novo Testamento, tinha um uso importante. Conforme Raymond E. Brown,

No tempo do NT, euaggelion (“boa notícia”, que traduzimos por “evangelho”) não se referia a um livro ou escrito, mas a uma proclamação ou mensagem. Isso é compreensível com base no contexto do termo. Palavras correlatas eram usadas no grego não-cristão para boas-novas, especialmente anúncios de vitória em batalhas; no culto imperial, o nascimento e a presença do imperador constituíam boas-novas para o mundo romano. Na LXX, as palavras correlatas a euaggelion de boas-novas, especialmente da vitória de Israel ou da vitória de Deus. Mais amplamente, pode abranger a proclamação das ações gloriosas de Deus em favor de Israel (BROWN, 2019, p. 171-72).

No Evangelho vemos Deus em ação por meio do seu Filho Jesus Cristo. O Antigo Testamento encerra-se com o livro do profeta Malaquias e inicia o Novo Testamento com o Evangelho de Mateus. De Malaquias até Mateus, existe um intervalo de quatrocentos anos chamado de silêncio, ou o testemunho silencioso, um período que Deus não pronunciou sua voz e não usou nenhum profeta para anunciar sua palavra. O gênero literário do Evangelho pode ser considerada uma biografia teológica.

Os gêneros literários têm uma forma, função e estilo de comunicar um conteúdo. Portanto, os gêneros textuais de acordo com o pensamento do autor, expressam seu estilo teológico. Evangelho não significa apenas boas notícias, mas biografias teológicas.

“Marcos foi o primeiro a usar o termo “evangelho” (euangelion) para essas poderosas biografias de Jesus (1.1,15)” (OSBORNE, 2019, p. 1). A tradição oral sobre Jesus foi algo importante durante os anos do cristianismo. Esse gênero literário caracterizou o movimento dentro do judaísmo do Segundo Templo.

De acordo com Dunn,

Um dos principais desenvolvimentos nos primeiros quarenta e tantos anos de cristianismo foi a transição da tradição oral sobre Jesus para o evangelho escrito. Para a história do cristianismo, a importância desse desenvolvimento dificilmente poderá ser exagerada. Estamos falando do estabelecimento de um novo gênero no âmbito da literatura antiga, o “Evangelho”, ou, mais precisamente, o Evangelho cristão. Ainda mais importante foi que esse novo gênero definiu e distinguiu tanto quanto caracterizou o novo movimento dentro do judaísmo do Segundo Templo como nenhum outro desenvolvimento o fez (DUNN, 2017, p. 73).

A forma literária é uma arte pelo fato de que os autores escolheram determinadas passagens, ritmo da narração nos pequenos movimentos de um diálogo, e composições para transmitir um conteúdo, na qual são encontradas nas estruturas do texto.

Antes dos Evangelhos terem sido escritos, eles eram uma proclamação oral dos ensinamentos e da ressurreição de Jesus Cristo. Porém, a palavra Evangelho adquiriu um sentido único conforme os anos. Kermode e Alter argumentam,

[…] a palavra evangelho é encontrada no plural, indicando que as pessoas já não pensavam nos quatro meramente como versões diferentes de um evangelho, mas como quatro Evangelhos. Certamente havia mais do que quatro, mas apenas quatro foram acolhidos e é deles, e não das obras apócrifas sobreviventes que levam o nome de evangelhos, que derivamos nossa acepção do que seja um evangelho (ALTER; KERMODE, 1997, p. 404).

Todos os materiais dos quatros Evangelhos foram transmitidos no interior da comunidade de fé, e vistos na perspectiva do Senhor ressuscitado. Os escritores dos Evangelhos são bem criativos ao desenvolver seu estilo literário.

  1. Perspectiva teológica de acordo com Marcos

Os Evangelhos têm suas estruturas teológicas de acordo com o pensamento de cada autor, por exemplo, a expressão katá (κατά), que significa de acordo com, como visto anteriormente. Cada assunto teológico é argumentado de acordo com o pensamento do próprio autor. Ele não apenas registra momentos da vida de Jesus Cristo, mas articula teologia enquanto escreve. O Evangelho de Marcos é o menor e mais sólido dos quatros Evangelhos. Em cada perícope de sua obra, ele apresenta quem de fato é Jesus Cristo.

O termo Evangelho é usado pelos escritores de uma forma proposicional. Outra questão muito interessante é sobre a preposição “katá” (κατά) que aparece nos Evangelhos. A tradição antiga atribuía o Evangelho a Mateus, mas não necessariamente a autoria dele, sendo assim, a expressão “de acordo com” (tradução da preposição katá) que antecede o nome dos evangelistas não significa necessariamente autoria. O normal em grego para se identificar o autor de uma obra seria usar o simples caso genitivo no nome ou no artigo definido para nomes como o de Mateus.

A palavra “de acordo com”, tradução da preposição katá, pode também se referir à autoria do texto ou indicar que Marcos, Mateus, Lucas e João como os responsáveis pelo conteúdo e forma de cada versão do Evangelho, por isso, que na Bíblia em grego do Novo Testamento os Evangelhos começam com as preposições katá.

De acordo com Pennington,

Essa discussão se sobrepõe significativamente ao capítulo anterior e à questão do significado do euangelion e dos sobrescritos para os nossos quatro evangelhos, porque a titulação desses relatos como “O Evangelho segundo…” inevitavelmente criou uma expectativa para o que estava prestes a ser ouvido, lido e experimentado. Para marcos, isso é mais óbvio com suas palavras iniciais: “O começo do evangelho sobre/de Jesus Cristo”. Palavras de abertura de Mateus – “o livro da gênese de Jesus Cristo…” – identificam seu trabalho como literário (e não apenas uma coleção de aforismos ou ditos) e, especialmente, evocam uma conexão forte e óbvia com o livro de Gênesis e as porções genealógicas do Antigo Testamento. No prólogo muito mais técnico de Lucas (1.1-4), ele chama sua própria descrição de narrativa ordenada (diegesisI). A impressionante abertura de João – No princípio, era o Verbo – desperta seu próprio conjunto de associações, tanto com o início da Sagrada Escritura, na criação em Gênesis 1.1, quanto com a profunda e importante tradição filosófica grega referente ao Logos (logos) […]. Esse título de “Evangelho” torna-se a “palavra mestra” abrangente que cria um rico conjunto de expectativas (PENNINGTON, 2019, p. 39-40).

Para os primeiros cristãos esse título passou a referir-se a uma narrativa sobre Jesus Cristo. Ao analisar a tradição escrita dos manuscritos existem evidências de autoria, seja no começo ou no final do livro, por exemplo, nas cartas paulinas. O modo que os escribas usavam para descrever isso era por meio do genitivo que trazia a ideia de posse, ou seja, foi Paulo que escreveu, ele é o próprio originador. O escritor é o autor da carta e esta carta pertence a ele, é a sua identidade.

Os Evangelhos nunca dizem “de Marcos ou de João”, eles preferem a expressão grega katá e essa pequena evidência demonstra uma consciência na igreja primitiva de que aquele material era de Cristo, isto é, Jesus era o conteúdo daquele material. Os Evangelhos são apresentados de acordo com diferentes autores. Sendo assim, é um Evangelhos, uma mensagem, um Jesus Cristo, mas ela é apresentada de acordo com diferentes autores, por isso temos os quatros Evangelhos canônicos.

Larry W. Hurtado, reconhece a importância que os evangelistas fizeram de registrar ambientes geográficos que Jesus andou,

Uma terceira característica de todos os quatro Evangelhos canônicos, muito mais importante do que alguns estudiosos parecem reconhecer, é o modo como eles estabelecem seus relatos sobre Jesus dentro de um contexto histórico, cultural e geográfico específico (HURTADO, 2012, p. 352).

Cada autor mostra Jesus na Judeia romana (Palestina) e cada perspectiva das ações de Jesus são ricas e detalhadas. Por exemplo, a mulher samaritana em João 4 é uma cena formidável. O foco não está apenas na teologia do texto, mas no comportamento de Jesus com uma mulher em uma região específica (Samaria). Situar Jesus Cristo em contexto histórico, geográfico e cultural específico, é importante.

Jesus não é um personagem simples de uma região humilde, mas uma pessoa importante que teve impactos em regiões específicas. Em cada região é vista a forma que Deus agiu através da vida de Cristo. Deus está agindo em todos os evangelhos, Deus não está ausente, ele está perto e agindo.

No primeiro versículo do Evangelho de Marcos (Mc 1.1), é vista a forma com que ele apresenta seu conteúdo. Esse verso pode ser considerado o título da obra marcana, e no decorrer de seu Evangelho, os argumentos são estruturados com os termos que se iniciam. O título declara que toda a narrativa que se segue é o início da história que continua no tempo e audiência do autor. Termos como Evangelho, Cristo, Filho de Deus e Reino, são importantes para a forma com que Marcos estrutura sua obra, como também, seu pensamento teológico. “Os escritos da Antiguidade normalmente começam com uma dedicação formal descrevendo o propósito do livro ou com uma linha de abertura tratando do primeiro assunto discutido” (EDWARDS, 2018, p. 51).

O Evangelho de Marcos começa com uma afirmativa da natureza e do contudo do livro. Refere-se a um Evangelho, uma proclamação de boas notícias de triunfo e libertação.

No início da escrita de Marcos (Mc 1.1), vemos a forma como ele apresenta seu propósito. As palavras de abertura são: Ἀρχὴ τοῦ εὐαγγελίου Ἰησοῦ Χριστοῦ Υἱοῦ Θεοῦ (Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, o Filho de Deus). De acordo com Leon Morris, “Foi assim que tudo começou, ele está dizendo, e o que começou ele define como evangelho” (MORRIS, 2009, p. 113).

A palavra “princípio” (αρχή) que significa começo, aparece em Gênesis 1.1 e João 1.1, e Marcos escolhe essa expressão para mostrar a atividade de Deus na história. De acordo com James R. Edwards,

Marcos sem dúvida a escolheu como um lembrete da atividade de Deus na história: no princípio Deus criou o mundo; assim, também, a era do evangelho é manifesta quando o Filho de Deus se torna um ser humano em Jesus Cristo (EDWARDS, 2018, p. 51).

O termo “princípio”, que é utilizado por Marcos tem seu objetivo em mostrar que o Evangelho tem uma autoridade, isto é, autoridade de quem o Evangelho se origina, a saber, o próprio Deus, na qual é o autor e originador de tudo o que existe. Portanto, “princípio”, é uma forma de indicar o cumprimento da Palavra eterna de Deus. “Para Marcos, a introdução de Jesus não é menos grandiosa que a criação do mundo, pois, em Jesus, uma nova criação está à mão” (EDWARDS, 2018, p. 51).

De acordo com o pensamento marcano, o Evangelho é a história da salvação, entretanto, esse termo Ευαγγέλιο tem uma relação tanto com o Antigo Testamento, quanto com o pensamento entre os gregos. Ainda segundo Edwards,

O termo euagelion, tanto no Antigo Testamento quanto na literatura grega, era comumente usado para relatos de vitórias no campo de batalha. Quando os filisteus derrotaram as tropas de Saul no monte Gilboa, “enviaram mensageiros por toda a terra dos filisteus para proclamar a notícia (euangelizesthai) […] no meio do seu povo”31.9; veja também 2Sm 1.20; 18.19,20; 1 Cr 10.9). o mensageiro que trouxe esse relato era o portador da “boa notícia” (2Sm 4.10; 18.26). o termo, entre os gregos, também era usado para a vitória na batalha, como também para outras formas de boas notícias. Em 9 a.C., na década do nascimento de Jesus, o aniversário de César Augusto (63ª.C. – 14 d.C.) foi aclamado como euangelion (pl.). uma vez que César Augusto era aclamado como um deus, seu “aniversário assinalava o início das Boas-Novas para o mundo” (EDWARDS, 2018, p. 52).

No Novo Testamento, “Ευαγγέλιο”, é uma boa notícia em Jesus Cristo, e não há outra mensagem (boas novas) além dessa que seja importante. Em Jesus Cristo as boas novas tanto de Deus, quanto das ações e dos ensinos de Cristo são expostas, sendo assim, o Evangelho é uma pessoa, Jesus Cristo o Filho de Deus. O Evangelho tem seu começo em Deus. “Marcos está escrevendo sobre algo que o próprio Deus fez. E é Jesus quem nos conta as boas notícias de Deus” (MORRIS, 2009, p. 113-14).

Conforme Udo Schnelle, “O Evangelho de Marcos tem uma orientação teocêntrica […]” (SCHNELLE, 2017, p. 515). Deus (gr. Θεός) ocorre 48 vezes em Marcos, ou seja, isso serve para mostrar o aspecto central do pensamento marcano. Ainda segundo Udo Schnelle,

No campo semântico Θεός domina a expressão βασίλειο του Θεού (“Reino/domínio de Deus”); importante são, além disso, uιός του θεού (“Filho de Deus”, 4 vezes). Marcos esclarece a seus ouvintes/leitores que somente o Filho de Deus Jesus Cristo está autorizado a anunciar o Evangelho de Deus sobre o cumprimento do tempo e a proximidade do domínio de Deus. (SCHNELLE, 2017, p. 515).

É vista a forma com que Marcos começa sua estrutura teológica. Como prólogo do Evangelho cabe a função de um texto programático na abertura. No primeiro versículo do Evangelho de Marcos é visto uma grande relação entre as palavras, ou seja, uma relação entre a mensagem e o mensageiro. Conforme Schnelle,

A expressão com o genitivo, Ἰησοῦ Χριστοῦ uἱοῦ Θεοῦ (“Jesus Cristo, Filho de Deus”), não só deixa o protagonista da narrativa aparecer como o anunciador e o conteúdo do Evangelho, mas uma caracterização insuplantável instala o horizonte no qual é entendido a afirmação de que Jesus é o Cristo e o Filho de Deus (SCHNELLE, 2017, p. 515).

Essa ênfase está no fato de que Jesus Cristo prega como o Filho de Deus, o Evangelho de Deus, proximidade do Reino de Deus. A expressão Evangelho (Ευαγγέλιο) está no genitivo, e isso é para mostrar onde está a origem do conteúdo, Jesus Cristo. O termo ευαγγέλιο του Θεού (Evangelho de Deus; Mc 1.14) não é apenas o conteúdo do anúncio de Jesus Cristo, mas ευαγγέλιο Ἰησοῦ Χριστοῦ (Mc 1.1) é, também, o ευαγγέλιο του Θεού.

Para Marcos esse anúncio é teológico. A confissão cristológica da comunidade não é uma contradição, o domínio de Deus que está vindo diz respeito tanto ao conteúdo do Evangelho como são as ações e as palavras de Jesus Cristo, na qual para Marcos Jesus Cristo não é apenas uma figura da história, mas o Filho de Deus crucificado, morto e ressuscitado. Cristo é o conteúdo do Evangelho, cujo autor é Deus.

Jesus Cristo é o conteúdo do Evangelho e no decorrer dos próximos versículos (2 e 3), é visto uma cotação de Êxodo, Isaías e Malaquias, que servem para mostrar a ênfase que o autor está dando na história de Jesus Cristo. De acordo com Robert Alter e Frank Kermode, “Esses três versículos traçam uma extensão temporal muito maior do que a vida narrada de Jesus” (ALTER e KERMODE, 1997, p. 439). Marcos apresenta Jesus como o Filho de Deus no versículo 1. Essa afirmação aparece mais uma vez no versículo 9, na qual é designado como Filho amado pela voz divina, ou seja, pela voz do próprio Deus. De acordo com Schnelle,

No Evangelho de Marcos, o próprio Deus define sua relação com Jesus. A voz celestial em Mc 1,11 (“Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo”) e 9,7 (“Este é meu Filho amado; ouvi-o!”) qualifica, legitima e autoriza Jesus diante dos ouvintes/leitores do evangelho e do mundo inteiro (SCHNELLE, 2017, p. 517).

Marcos estrutura muito bem seu Evangelho com esse argumento, comprovando o relacionamento entre o Filho Jesus, com o Pai, Deus. O primeiro versículo serve como cabeçalho para o restante do capítulo.

No Antigo Testamento, em Gênesis 1.1, Deus começa com o princípio, na qual desde os tempos antigos Deus sempre esteve em ação fazendo algo pelo seu povo. Em Marcos 1.1, o texto começa com o princípio, Deus continua fazendo algo pelo seu povo na pessoa do Filho, Jesus Cristo. No início da obra de Marcos é apresentado um título, ou seja, uma introdução sobre a pessoa de Cristo para os leitores. Esse título é a introdução do seu Evangelho, e nessa introdução Marcos articulou seu pensamento teológico.

Considerações finais

A presente pesquisa inclinou-se ao título a forma literária do Evangelho e a estrutura teológica de acordo com Marcos. Evangelho é uma forma literária que eram utilizados pelos romanos para anunciar o aniversário dos imperadores e as suas conquistas no sentido político. Essa forma literária da época não fornecia necessariamente detalhes biográficos completos sobre as personagens de que tratavam, apenas eram incluídos alguns relatos importantes à narrativa da sua história.

Apesar dessas semelhanças, há diferenças suficientes para se propor que o Evangelho de Marcos constitui um gênero singular em relação as escritas romanas da época e em relação aos outros evangelistas no sentido de suas estruturas teológicas e linguísticas.

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Referências 

Alter, Robert. A arte da narrativa bíblica. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

____; Kermode, Frank. Guia literário da Bíblia. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1997.

Brow, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2019.

Dunn, James D.G. Jesus, Paulo e os Evangelhos. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.

Edwards, James R. O comentário de Marcos. São Paulo: Shedd Publicações, 2018.

Hurtado, Larry W. Senhor Jesus Cristo: Devoção a Jesus no Cristianismo Primitivo. Santo André: Academia Cristã/Paulus, 2012.

Marcuschi, Luiz A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008.

Morris, Leon. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2009.

Osborne, Grant R. Marcos. São Paulo: Vida Nova, 2019.

Pennington, Jonathan T. Lendo os Evangelhos com Sabedoria: Uma introdução narrativa e teológica. Rio de Janeiro: Central Gospel, 2019.

Ryken, Leland. Formas Literárias da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2017.

____. Para ler a Bíblia como literatura. São Paulo: Cultura Cristã, 2017.

Schnelle, Udo. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2017.

Zuck, Roy B. A interpretação Bíblica: Meios de descobrir a verdade da bíblia. São Paulo: vida Nova, 2020.

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