A Escritura e a tradição hermenêutica

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Uma coisa é falar em tradição oral como fonte de revelação ao lado da Escritura, outra, bem diferente, é falar da tradição como consenso da igreja antiga, ou seja, como compreensão comum dos que mantiveram a fé bíblica ao longo dos séculos. Estamos nos referindo ao entendimento que pode ser rastreado na história dos cristãos que criam na autoridade suprema e exclusiva das Sagradas Escrituras. Tal entendimento deveria representar no mínimo o que o sinal amarelo do semáforo significa para um motorista.

O conceito de tradição como uma fonte autorizada de conhecimento teológico, ao lado e além das Escrituras, é um resíduo da heresia gnóstica no catolicismo romano. Foram os gnósticos os primeiros a sustentar o acesso a um pretenso conhecimento secreto e especial que não teria sido documentado. Essa visão criava uma hierarquia espiritual na igreja, onde os “perfeitos” tinham conhecimentos privilegiados. De semelhante modo, no catolicismo romano, a hierarquia eclesiástica se apresenta como depositária de uma suposta mensagem apostólica não escriturada.

Irineu (século II) respondeu aos gnósticos sustentando a autoridade e suficiência da Escritura, mas salientou a existência de um modo legítimo de interpretar os textos sagrados, uma forma reconhecida de ler a Bíblia dentro da comunidade da fé. Isso é o que chamamos de “tradição hermenêutica”. Ela não concorre com a autoridade da Bíblia, mas, antes, concorre para a autoridade da Bíblia, pois evita a proliferação de um relativismo hermenêutico despropositado. Temos aqui um critério de validação do conhecimento bíblico ou, pelo menos, um parâmetro para motivar o reexame de nossas primeiras conclusões.

O fato de não concordarmos com o catolicismo quando ele reivindica a infalibilidade do papa e dos concílios não deveria ensejar uma rendição ao subjetivismo interpretativo. Esse subjetivismo, que favorece ao relativismo predominante em nosso tempo, não é uma libertação de toda tradição, mas, antes, é a aceitação acrítica do pensamento moderno e racionalista que sustenta a autonomia atemporal do homem.

Alister McGrath explica a posição adotada pelos reformadores:
    

A Reforma magisterial estava extremamente consciente da ameaça de individualismo e procurou evitar essa ameaça enfatizando a interpretação tradicional da igreja para as Escrituras sempre que essa interpretação era considerada correta. A crítica doutrinária foi dirigida contra áreas em que a prática ou teologia católica parecia extrapolar ou contradizer as Escrituras. Uma vez que a maioria dessas interpretações se desenvolveu na Idade Média, não é de surpreender que os reformadores se referissem ao período de 1200–1500 como uma ‘era de decadência’ ou um ‘período de corrupção’, que tinham a missão de reformar. Também não é surpreendente que vejamos os reformadores apelando para os patriarcas da igreja primitiva como intérpretes em geral confiáveis das Escrituras (MCGRATH, 2007, p. 202).   

Não prestigiamos uma interpretação pessoal e isolada das Escrituras, antes, nós queremos “compreender, COM TODOS OS SANTOS, qual seja a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade e conhecer o amor de Cristo, que excede todo entendimento”, para que sejamos “cheios de toda a plenitude de Deus” (Efésios 3.18,19) (ênfase do autor).

Não podemos negar dois milênios de história cristã. Se a igreja, por exemplo, estivesse errada em assuntos como a Trindade, as duas naturezas de Cristo e a inspiração da Bíblia, então, não teria existido continuidade legítima do cristianismo em praticamente dois mil anos. Obviamente, isso seria inaceitável, pois seria uma declaração de fracasso do projeto divino.

Certas seitas e denominações que não encontram antecedentes históricos respeitáveis para o seu ensino evidenciam com o fato a sua condição herética. O termo heresia significa “partido”, em oposição ao todo, enquanto “apostasia” significa “desvio”, indicando uma quebra de continuidade. Não se pode dar um salto acrobático do último apóstolo para os dias de hoje. Por esse motivo, são inaceitáveis certas novidades como a ordenação recente de mulheres ao ministério ou a ideia contemporânea de que homossexualismo não é pecado.

Jesus disse que o Espírito Santo guiaria os crentes a toda a verdade (João 16.13). Imaginar que algo possa ser descoberto hoje sem qualquer referência na história cristã anterior é negar a presença e obra do Espírito na igreja.

A tradição hermenêutica e a confiabilidade dos manuscritos bíblicos
O iluminismo foi um movimento racionalista que marcou o início da modernidade. Os iluministas julgavam como irracional qualquer perspectiva contrária àquela que defendiam. A verdade, porém, é que os iluministas reduziam a razão a uma única forma, à razão matemática, abstrata e dedutiva. A razão, porém, possui várias manifestações, sendo cada uma adequada a uma área do conhecimento ou a uma dimensão da realidade.

Uma vez que Deus se revelou progressivamente no tempo, nós não podemos desconsiderar a história ao interpretar a Bíblia. Antes, devemos levar em conta não só a história que foi registrada na Bíblia, mas também a história do registro bíblico.

Há pessoas que, influenciadas pelo iluminismo, reivindicam uma autonomia em relação à história. Elas querem interpretar a Bíblia sem conferir o resultado com o passado. Não percebem que não pode ser verdade o que não encontra continuidade ou antecedente dentro do cristianismo.

Se não tivesse existido uma tradição de leitura sacra, nós não teríamos sequer traduções confiáveis da Bíblia. As Escrituras hebraicas, por exemplo, só usavam consoantes. As vogais, não sendo escritas, eram conhecidas pela prática da leitura em sucessivas gerações. As disputas existentes até hoje sobre a pronúncia do nome de Deus no Antigo Testamento devem-se ao fato de os judeus não o mencionarem por excesso de reverência. Isso ocasionou o esquecimento das vogais do tetragrama divino.

Dentro do raciocínio aqui desenvolvido, nós cremos não só na inspiração dos autógrafos (manuscritos originais) da Bíblia, mas cremos que os manuscritos copiados existentes (apógrafos) também foram guardados providencialmente por Deus de acordo com o sentido dos originais. Não crer nisso é fazer Deus parecer contraditório, supondo que ele tenha inspirado infalivelmente os autores da Escritura para depois não preservar os textos pela sua providência. É limitar a ação miraculosa de Deus ao passado.

Alguns historiadores, depois da descoberta recente de manuscritos bíblicos julgados mais antigos, constataram pequenas variantes em relação ao texto que vínhamos usando para as nossas traduções (chamado “texto recebido”). A partir desse fato, eles puseram em dúvida a autenticidade de todas as traduções clássicas. Tais historiadores não perceberam que esses textos mais “antigos” não eram lá tão antigos. O texto que usamos, exatamente por ter sido considerado fiel aos originais pela igreja antiga, foi copiado e recopiado. A constante possibilidade de ter um exemplar mais novo fez com que os irmãos se descuidassem de guardar os exemplares mais antigos. Alguns textos que foram recentemente encontrados em locais específicos representam cópias imperfeitas. Tais cópias mereceram o cuidado de serem guardadas apenas porque, pelo fato de não serem tidas por fiéis, não foram mais recopiadas ao longo do tempo.

A Confissão de Fé De Westminster (I.8) conclui com razão:

O Velho Testamento em Hebraico (língua nativa do antigo povo de Deus) e o Novo Testamento em Grego (a língua mais geralmente conhecida entre as nações no tempo em que ele foi escrito), sendo inspirados imediatamente por Deus, e pelo SEU SINGULAR CUIDADO E PROVIDÊNCIA conservados puros em todos os séculos, são, por isso, autênticos, e assim em todas as controvérsias religiosas a Igreja deve apelar para eles como para um Supremo Tribunal.

Podemos ter certeza que a Palavra de Deus foi conservada pelo Deus fiel!

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Referências Bibliográficas:

MCGRATH, Alister E. Teologia Histórica. São Paulo: Cultura Cristã, 2007.
A CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER. São Paulo: Cultura Cristã, 1994.

GLAUCO BARREIRA MAGALHÃES FILHO
Bacharel e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará; Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará; Livre Docente em Filosofia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú; Doutor em Ministério pela Faculdade de Teologia Metodista Livre; Pós-Graduado em Teologia Histórica e Dogmática pela Faculdade Entre Rios do Piauí; Professor de Hermenêutica da Universidade Federal do Ceará (Graduação, Mestrado e Doutorado); Pesquisador do NERPO/UFC (Núcleo de Estudos de Religião, Política e Cultura) – Grupo de Pesquisa cadastrado no CNPQ; Diretor do Instituto Pietista de Cultura (IPC); Coordenador do Curso de Direito da Fametro; Pastor da Igreja Batista Moriá em Fortaleza-Ce. Autor dos seguintes livros: O imaginário em as crônicas de Nárnia (Mundo Cristão), Lições das crônicas de Nárnia (Abba Press), Teologia e imaginário (Editora Refexão), Teologia do fogo (Moriá ed.), Manifesto contra o mundanismo (Moriá ed.), Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição (Del Rey), Hermenêutica jurídica clássica (Conceito Editorial), Teoria dos valores jurídicos (Mandamentos) e A essência do Direito (Rideel).
Blog: cristianismoeuniversidade.blogspot.com.br
E-mail: glaucobarreira@yahoo.com.br

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