A doutrina divisiva e unitiva do batismo no Espírito Santo

2
10414

Uma doutrina que une e divide

Explicar a doutrina do batismo no Espírito Santo é uma tarefa simultaneamente gloriosa e inglória. É gloriosa porque, biblicamente falando, essa é uma doutrina que serve para unir a Igreja em seu testemunho e serviço a Cristo. Ao mesmo tempo é inglória porque, historicamente falando, ela é uma das doutrinas que mais tem dividido a Igreja, especialmente desde a chegada do movimento pentecostal moderno no início do século vinte. Não só isso, mas a resposta à pergunta “O que é o batismo no Espírito Santo?” tem servido quase como um divisor de águas entre cristãos de origens e convicções pentecostais e seus demais irmãos evangélicos.

Por isso, ao buscarmos compreender melhor essa doutrina, precisamos considerar tanto as suas interpretações divergentes na história recente da Igreja como também expor o testemunho bíblico nesse particular. Ao final, desejamos concluir com algumas aplicações práticas e relevantes para o ensino e o testemunho da Igreja.

O testemunho histórico

Como bem resume Sam Storms,2 o debate histórico acerca do batismo no Espírito Santo pode ser organizado a partir da seguinte pergunta: “A vida cristã é caracterizada por um único estágio ou dois estágios distintos?” Em outras palavras, o batismo no Espírito Santo é uma experiência de iniciação para todos os crentes quando da sua conversão a Cristo, ou ela é uma experiência subsequente à conversão a Cristo, de aprofundamento espiritual, para alguns cristãos somente?
   
De acordo com a primeira tese, o “batismo no Espírito Santo” é simultâneo e praticamente igual à experiência de regeneração e conversão. Ou seja, o fenômeno do batismo no Espírito ocorre na vida de todos os cristãos no momento do seu novo nascimento em Cristo Jesus. Dentro dessa interpretação – defendida pela maioria das vertentes protestantes e evangélicas – a única divergência diz respeito à consciência desse fenômeno na vida do cristão convertido. Enquanto alguns defendem que o batismo no Espírito é uma experiência inconsciente ou até subconsciente, outros já defendem que trata-se de uma realidade consciente e fortemente experimental.3

Do outro lado, existe uma enorme variedade de interpretações acerca do que seria a experiência distinta e subsequente à conversão chamada de “batismo no Espírito”. Dentre elas, podemos destacar as principais:

1. Uma ala do puritanismo reformado, da qual Martyn Lloyd-Jones foi herdeiro, defendeu que a experiência do batismo no Espírito seria sinônima ao “selo do Espírito” mencionado pelo apóstolo Paulo em Efésios 1.13. Tal experiência representaria uma segurança direta, íntima e profunda da salvação em Cristo, por intermédio do testemunho interno do Espírito Santo, acompanhada de poder para o testemunho e o serviço cristão. É importante observar nessa interpretação que não existe um vínculo necessário dessa experiência com os dons carismáticos citados por Paulo em 1Coríntios 12-14.

2. Uma segunda interpretação advém dos escritos e ensinos de John Wesley, o famoso pregador do avivamento metodista na Inglaterra. Segundo Wesley, era possível para o cristão experimentar o que ele chamou de “inteira santificação” – uma experiência instantânea e subsequente à conversão, em que o coração do crente regenerado é extirpado de toda motivação ou inclinação pecaminosa ainda nesta vida. Por mais que o cristão dotado dessa experiência pudesse errar e cometer alguns atos falhos, a inteira santificação o isentaria da motivação ou intenção de cometer esses delitos. Ainda segundo Wesley e alguns dos seus discípulos, era necessário que o cristão regenerado buscasse esse estágio avançado de inteira santificação – um aprimoramento do amor por Deus e pelo próximo –, o que muitas vezes era chamado de “batismo no Espírito Santo”.

3. Uma terceira linha de interpretação originou-se no movimento Keswick de santidade, primeiro na Inglaterra e depois nos Estados Unidos da América. Esse movimento manteve o conceito wesleyano dos dois estágios na vida cristã, mas rejeitou a definição do batismo no Espírito como uma purificação interna das motivações e inclinações pecaminosas do coração. Em seu lugar, os adeptos desse movimento definiram tal experiência como uma capacitação de poder espiritual visando o serviço e o ministério cristão fiéis. A ênfase, portanto, passou da purificação do pecado do coração para o poder do serviço cristão.

4. Chegamos, enfim, à visão do pentecostalismo clássico acerca do batismo no Espírito, melhor representada em nosso tempo pela declaração de fé das Assembleias de Deus. Segundo os artigos 7 e 8 da Declaração de Verdades Fundamentais do Conselho Geral das Assembleias de Deus: “Todos os crentes tem o direito e devem ardentemente esperar e sinceramente buscar a promessa do Pai, o batismo no Espírito Santo e com fogo, segundo a ordem do nosso Senhor Jesus Cristo. Essa era a experiência normal de todos na igreja cristã primitiva. Com ele vem a capacitação poderosa para a vida e o serviço, a concessão dos dons e seu uso no trabalho do ministério. Tal experiência é distinta e subsequente à experiência do novo nascimento. (…) O batismo de crentes no Espírito Santo é testemunhado pela evidência física inicial do falar em outras línguas conforme a capacitação do Espírito Santo.”4 Como bem observado por Sam Storms, os três elementos cruciais desse entendimento do batismo no Espírito são sua subsequência à conversão – podendo ocorrer pouco ou muito tempo após o novo nascimento –, sua condicionalidade – a saber, a necessidade de uma busca ativa e pessoal pela experiência – e sua evidência inicial necessária, a saber, a manifestação do dom de línguas.5,6

5. Finalmente, o movimento carismático contemporâneo, disseminado pelas diferentes vertentes do protestantismo histórico, também adotou a visão dos dois estágios na vida cristã característica das interpretações descritas acima do batismo no Espírito. Ao mesmo tempo, os expoentes desse movimento rejeitaram qualquer noção de condicionalidade ou evidência inicial necessária do dom de línguas. Em linhas gerais, a ênfase recaiu sobre a capacitação para o serviço cristão por meio de uma nova visitação do Espírito Santo sobre a vida do cristão regenerado.7

À luz de todas as interpretações distintas desse fenômeno, será que temos que escolher entre um lado e outro? Será que precisamos escolher ou o lado do estágio único ou o lado do estágio duplo na vida cristã?

Ao examinarmos em seguida o testemunho bíblico, cremos que há uma terceira opção possível. Cremos que o batismo no Espírito Santo é uma metáfora que descreve o novo nascimento – isto é, a “imersão” de todos os cristãos verdadeiramente regenerados na vida do Espírito Santo. Portanto, todos os que são verdadeiramente convertidos a Cristo e habitados pelo Espírito Santo são “batizados no Espírito”.8  Contudo, existem múltiplas experiências subsequentes à conversão de preenchimento e capacitação para o testemunho e o serviço cristão mediante a busca pelo Espírito e o derramamento do Espírito sobre nós.9 Em suma, só existe um único batismo inicial no Espírito Santo comum a todos os cristãos, mas existem múltiplos preenchimentos do Espírito.10

A evidência bíblica

No Novo Testamento existem apenas 7 referências ao “batismo no Espírito Santo” que podemos classificar da seguinte forma:

1. A promessa (Mt 3.11; Mc 1.8; Lc 3.16; Jo 1.33). As quatro primeiras referências ao batismo no Espírito Santo são paralelas entre si e dizem respeito à promessa feita por João Batista a respeito daquele que o sucederia e o superaria em seu ministério: “Eu os batizo com água para arrependimento. Mas depois de mim vem alguém mais poderoso do que eu, tanto que não sou digno nem de levar as suas sandálias. Ele os batizará com o Espírito Santo e com fogo.” (Mt 3.11) No contexto histórico da sua pregação, a promessa de João Batista diz respeito claramente à vinda e à obra de Jesus Cristo, quando ele derramaria sobre toda a sua Igreja a bênção prometida e tão aguardada do Espírito Santo.11 O mais importante a observar aqui é a natureza provisória do batismo de arrependimento praticado por João Batista. O que ele ensinou e realizou serviu de passo transitório entre as promessas do Antigo Testamento a respeito do derramamento universal do Espírito Santo sobre todo o povo de Deus e o seu cumprimento na vida e na obra de Jesus Cristo.12 Logo, não há como estabelecer a distinção absoluta entre um batismo inicial na vida cristã para o arrependimento e um batismo subsequente no Espírito com poder a partir da pregação de João Batista. Como o próprio João testemunhou, ele não tinha a envergadura espiritual para realizar as duas coisas, nem tampouco era a sua responsabilidade fazê-lo. Contudo, com a chegada de Jesus Cristo, ambas as coisas seriam possíveis, pois sua morte, ressurreição e ascensão tornaria possível o derramamento pleno das bênçãos prometidas da Nova Aliança – inclusive o derramamento do Espírito ou “batismo no Espírito” – sobre aqueles que se convertessem ao Evangelho com arrependimento e fé.13

2. O cumprimento (At 1.5; 11.16). As duas referências seguintes ao batismo no Espírito testificam do cumprimento da promessa feita anteriormente por João Batista. O próprio Senhor Jesus disse: “Pois João batizou com água, mas dentro de poucos dias vocês serão batizados com o Espírito Santo.” (At 1.5) O referente específico da promessa supracitada claramente é o Dia de Pentecostes – o evento-chave que marcaria a transição na história da redenção e da própria Igreja – relatado no capítulo 2 de Atos dos Apóstolos. Tal evento foi único e irrepetível – tanto quanto o nascimento de uma criança – pois representou o nascimento da igreja neotestamentária quando do derramamento do Espírito Santo por Jesus Cristo sobre aquele primeiro grupo de discípulos reunidos em Jerusalém. Dito isso, não podemos fazer da experiência dos apóstolos presentes naquele dia na transição dos tempos uma experiência normativa para nós – ou seja, nascer de novo primeiro para depois ser revestido de poder pelo Espírito para o testemunho e o serviço cristão. A experiência normativa para nós encontra-se naqueles que ouviram o Evangelho pregado pelo apóstolo Pedro no Dia de Pentecostes, arrependeram-se dos seus pecados, creram na mensagem e receberam o dom (“batismo”) do Espírito Santo.14,15

Isso fica mais claro no testemunho de Pedro acerca da conversão de Cornélio e dos da sua casa quando da pregação do Evangelho e do derramamento do Espírito sobre eles: “Quando comecei a falar, o Espírito Santo desceu sobre eles como sobre nós no princípio. Então me lembrei do que o Senhor tinha dito: ‘João batizou com água, mas vocês serão batizados com o Espírito Santo’. Se, pois, Deus lhes deu o mesmo dom que nos tinha dado quando cremos no Senhor Jesus Cristo, quem era eu para pensar em opor-me a Deus?” (At 11.15-17) De acordo com o relato de Pedro acima, o mesmo dom que Cristo concedeu aos apóstolos e discípulos no princípio quando eles creram foi derramado sobre os gentios quando eles também creram no Evangelho. Especificamente, o que João Batista e Jesus haviam prometido, o Senhor cumpriu – tanto na vida dos judeus convertidos ao Evangelho no Dia de Pentecostes quanto na vida dos gentios a partir da conversão de Cornélio e dos da sua casa. Em suma, o que havia sido prometido, o “batismo no Espírito Santo”, foi concedido justamente quando estes creram no Evangelho com arrependimento e fé.

3. O padrão (1Co 12.12-13). A última referência ao “batismo no Espírito” corrobora o padrão proposto acima. De acordo com o apóstolo Paulo: “Ora, assim como o corpo é uma unidade, embora tenha muitos membros, e todos os membros, mesmo sendo muitos, formam um só corpo, assim também com respeito a Cristo. Pois em um só corpo todos nós fomos batizados em um único Espírito: quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um único Espírito.” (1Co 12.12-13).

Apesar da linguagem de Paulo apontar naturalmente para a experiência do batismo no Espírito compartilhado entre todos os cristãos, existem várias interpretações distintas desse texto.16 Uma possibilidade é que Paulo descreve aqui uma “segunda bênção” ou segundo estágio na vida cristã (i.e. o batismo no Espírito e o beber do Espírito) compartilhado por todos os cristãos em Corinto, mas não por todos os cristãos em geral. Porém, o contexto da passagem milita contra essa visão, pois Paulo aqui fala da experiência comum de todos os membros do corpo de Cristo (i.e. “todos nós”), independente das diferentes experiências e dons espirituais, o que serve de correção do orgulho espiritual da “elite carismática” na igreja em Corinto.17

Outros defendem que Paulo descreve aqui não a inclusão dos cristãos no corpo de Cristo por meio do batismo comum no Espírito, mas sua capacitação para a vida e o serviço no corpo de Cristo por meio de um batismo no Espírito subsequente à conversão. Contudo, será que podemos separar uma coisa da outra? Paulo cogitaria a possibilidade de um cristão pertencente ao corpo de Cristo que não fosse capacitado para o serviço no corpo de Cristo? Não é isso mesmo que ele defende versículos antes ao afirmar que o Espírito Santo é comum a todos os cristãos e age por meio de todos para o bem de todos, se bem que de formas diferentes?18 Logo, à luz do contexto, parece-nos incoerente e desnecessário inserir uma distinção aqui entre os que são e os que não são capacitados para servir no corpo de Cristo mediante uma “segunda bênção” na vida cristã.

Há ainda quem defenda que Paulo descreve aqui um batismo pelo Espírito para a salvação, distinto de um batismo por Jesus com poder para o serviço cristão.19 Tal interpretação não convence por dois motivos. Primeiro, gramaticalmente falando, o texto não apoia essa interpretação. A expressão original do grego “no Espírito” (en pneumati) descreve a esfera ou o instrumento pelo qual o cristão foi batizado, não o agente que batiza. Isso, porque, em todos os textos que já examinamos, é sempre Jesus quem batiza no/com o Espírito Santo. Portanto, não existem duas pessoas (Jesus e o Espírito) que batizam com duas finalidades diferentes (poder e salvação), mas um único que batiza (Jesus) com o Espírito para a salvação e inclusão no seu Corpo, que é a Igreja.

Finalmente, há alguns que defendem que Paulo descreve aqui duas experiências distintas em um único versículo – tanto a conversão (batismo no único Espírito; 1Co 12.13a) como a capacitação para o serviço (beber do único Espírito; 1Co 12.13b). Contudo, o paralelismo da passagem sugere que as duas metades desse versículo falam da mesma experiência e do mesmo grupo de pessoas. Em outras palavras, Paulo aqui empregou duas metáforas expressivas – o “batismo” (imersão) no Espírito e o “beber” do Espírito – para descrever aquela experiência que nos une como membros do único corpo de Cristo, a saber, a nossa salvação comum em Cristo pela ação sobrenatural do Espírito Santo. No contexto da passagem, é isso que deve sustentar e nortear a identidade, o testemunho e o serviço da Igreja – nossa confissão comum de Cristo e nossa experiência comum no Espírito.20

Batizado no Espírito, e agora?

Cristãos de origens e convicções pentecostais talvez se perguntem: “Ora, se o batismo no Espírito descreve a experiência comum de todos os cristãos quando da sua conversão a Cristo, o que resta fazer após isso? Não há nada que devemos buscar de Deus e do Espírito após a conversão?” Muito pelo contrário, ainda há muito que os cristãos podem e devem fazer no tocante à busca pelo Espírito Santo, mesmo após o novo nascimento em Cristo.

Até aqui, examinamos apenas a evidência bíblica a respeito do batismo no Espírito, uma experiência instantânea, coincidente com a conversão, universal (i.e. comum a todos os crentes), irrepetível e permanente. Contudo, as Escrituras também descrevem a “plenitude” ou o “preenchimento” do Espírito Santo, uma experiência contínua e crescente de submissão ao Espírito e apropriação da vida no Espírito. Ser “cheio” ou “pleno” do Espírito aponta para uma influência intensa, íntima e progressivamente crescente do Espírito na vida cristã. Tal experiência pode ser negligenciada e abandonada e, após algum tempo, ser experimentada novamente, em múltiplas ocasiões, ao longo da vida cristã.21

De acordo com Sam Storms, há duas maneiras de alguém ser “cheio do Espírito”. Primeiro, existem textos bíblicos que descrevem pessoas como sendo “cheias do Espírito Santo”, como se fosse uma condição ou qualidade consistente de caráter cristão, uma disposição moral resultante em maturidade cristã.22 Essa é a condição ideal de todo cristão, ser permanentemente cheio do Espírito. Mas, segundo, existem outros textos que descrevem pessoas sendo “cheias com o Espírito Santo”, capacitando-as para desempenhar uma tarefa especial ou equipando-as para um serviço ou ministério duradouro.23 Em certas ocasiões, uma pessoa pode ser “preenchida” com uma concessão imediata e especial de poder espiritual para uma tarefa importante e urgente. Logo, alguém que já é cheio do Espírito Santo pode experimentar um preenchimento adicional do Espírito.24 Em outras palavras, não importa quanto alguém já tenha experimentado do Espírito, há sempre mais a ser desfrutado.25 O mais incrível é que, na maioria dessas ocasiões, não há uma indicação clara de que essas pessoas pediram para serem preenchidas ou capacitadas pelo Espírito. Foi uma obra soberana de Deus em suas vidas, na medida em que elas caminhavam em obediência e submissão ao Senhor.26

Como bem resume mais uma vez Sam Storms:

Ser ‘cheio com o Espírito’ é diferente de ser ‘batizado no Espírito’. Há um único batismo, mas existem múltiplos preenchimentos. Em nenhum texto do Novo Testamento somos ordenados a sermos batizados no Espírito Santo. Não existe apelo algum para fazer algo a fim de ser batizado [no Espírito]; não existe exortação nem imperativo. Por outro lado, somos ordenados a sermos preenchidos pelo Espírito Santo (Ef 5.18). Portanto, é possível ser batizado no Espírito Santo, experimentar a habitação permanente do Espírito Santo, mas não ser preenchido pelo Espírito Santo. Finalmente, ser ‘cheio do Espírito Santo’ significa refletir uma maturidade de caráter; é a condição ideal de todo crente. Ser ‘cheio com o Espírito Santo’ representa uma unção de poder, pureza, proclamação e louvor.”27

Considerações finais

À luz das evidências bíblicas, cremos que as Escrituras exigem que apliquemos a terminologia do “batismo no Espírito Santo” exclusivamente à experiência da conversão e universalmente à conversão de todos os crentes verdadeiros. Ao mesmo tempo, esse uso específico do termo “batismo no Espírito Santo” de forma alguma restringe a ação do Espírito Santo ao momento da conversão.

Portanto, os nossos irmãos protestantes tradicionais e os evangélicos em geral estão corretos em afirmar que todos os cristãos genuínos receberam o batismo no Espírito Santo no momento da sua conversão. Contudo, eles estão errados se e quando negarem a realidade e a necessidade de experiências subsequentes com o Espírito ao longo da carreira cristã. Por outro lado, os nossos irmãos carismáticos e pentecostais estão corretos em afirmar a realidade e a importância de experiências com o Espírito Santo subsequentes à conversão que capacitam, iluminam e transformam a vida do crente. Porém, eles estão errados em chamar essa experiência de “batismo no Espírito Santo”.28

No fim das contas, será que faz tanta diferença assim argumentar sobre o referente específico do termo “batismo no Espírito Santo”? Será que não estamos usando palavras e termos diferentes para descrever experiências semelhantes, verdadeiras e bíblicas?

Por um lado, devemos ser zelosos em respeitar e preservar o sentido bíblico de expressões bíblicas tais como o “batismo no Espírito”. Não fazê-lo não só acarreta num descuido com o testemunho bíblico, mas pode resultar em desdobramentos imprevistos e indesejáveis. Somos responsáveis não só pelas nossas formulações e definições teológicas, mas também pelas suas repercussões. Ensinar que o “batismo no Espírito” representa um segundo estágio na vida cristã exclusivo apenas para alguns cristãos que o buscam e cumprem com as condições necessárias para alcançá-lo pode acarretar tanto em um elitismo espiritual daqueles que se julgam maiores detentores e possuidores do Espírito, como também em uma noção fictícia de que a salvação vem pela graça, mas a capacitação para o testemunho e o serviço cristão vem pelo nosso esforço e empenho. Todo cuidado é pouco para evitarmos as armadilhas do orgulho espiritual em relação a outros irmãos na fé ditos “menos espirituais”, ou “menos cheios do Espírito”, e no tocante ao nosso próprio serviço a Deus.

Por outro lado, por mais que alguém insista em usar a expressão “batismo no Espírito” de forma diferente daquela defendida aqui, é importante reconhecer que não estamos questionando a legitimidade de experiências com o Espírito Santo após a conversão. Mesmo a imprecisão teológica humana não é capaz de desqualificar a ação sobrenatural do Espírito Santo na vida de cristãos genuinamente convertidos ao Evangelho.29 Seria melhor que todos nós concordássemos em usar a expressão bíblica “batismo no Espírito Santo” com o mesmo significado. Contudo, na ausência de tal concordância, não deixemos de buscar todos uma comunhão maior com o Espírito e uma capacitação maior do Espírito para fazermos a obra de Deus neste mundo.

___________________________
1O presente estudo foi apresentado primeiramente no dia 18.06.2016 na Igreja Cristã Nova Vida – Catedral (Rio de Janeiro, RJ) como parte do curso “O Pentecostal Reformado”, ministrado em parceria com o Bispo Walter McAlister, com o apoio do Instituto Bispo Roberto McAlister de Estudos Cristãos. Para mais informações, acesse: www.ibrmec.com.br/opentecostalreformado.php
2
O breve resumo a seguir segue o esboço histórico oferecido por Sam Storms em “What is Baptism in the Spirit, and when does it happen?” [O que é o Batismo no Espírito e quando ele ocorre?] publicado em Tough Topics: Biblical Answers to 25 Challenging Questions (Crossway: Wheaton, IL, 2013), p.252-275. Esse material também está disponível na forma de dois artigos no blog do próprio autor: http://www.samstorms.com/all-articles/post/baptism-of-the-holy-spirit—part-i; http://www.samstorms.com/all-articles/post/baptism-of-the-holy-spirit—part-ii; acessado em 16.06.2016. A argumentação histórica a seguir depende, em grande parte, da análise de H.I. Lederle, Treasures Old and New: Interpretations of ‘Spirit-Baptism’ in the Charismatic Renewal Movement. Peabody, MA: Hendrickson, 1988, conforme a indicação bibliográfica do próprio autor.
3Um bom exemplo da tese do batismo consciente e experimental no Espírito quando da conversão a Cristo é o testemunho de conversão do famoso pregador do Primeiro Grande Avivamento, George Whitefield, conforme relatado em seu diário pessoal. Para um exemplo da tese do batismo inconsciente ou subconsciente no Espírito, confira a obra de John Stott, Batismo e Plenitude do Espírito Santo: o mover sobrenatural de Deus. São Paulo: Vida Nova, 2007.
4Tradução própria do texto disponível em http://ag.org/top/Beliefs/ Statement_of_Fundamental_Truths/sft.pdf, acessado em 09.11.2016.
5Tough Topics, p.256-257. É importante ressaltar que nem todos os teólogos afiliados a essa denominação pentecostal clássica aderem aos pontos descritos acima. O exemplo mais importante e relevante é o do estudioso neotestamentário Gordon Fee que, apesar de afiliado às Assembleias de Deus, questionou todos os pontos acima referentes à subsequência, condicionalidade e evidência física inicial do dom de línguas. Cf. Gordon Fee, “Baptism in the Holy Spirit: the issue of Separability and Subsequence.” Pneuma 7, no. 2 (Fall 1985): 87-99. Para um tratamento mais recente e completo desse e de outros pontos importantes, confira a excelente obra de Gordon Fee, Paulo, o Espírito e o Povo de Deus. São Paulo: Vida Nova, 2015.
6Com base nas observações de Gordon Fee, Sam Storms aponta para as razões possíveis que levaram ao desenvolvimento da visão pentecostal clássica acerca do batismo no Espírito Santo. Os primeiros participantes do movimento pentecostal moderno estavam profundamente insatisfeitos com a letargia e frieza espiritual do cristianismo nominal das denominações históricas no início do século 20 nos EUA. O desejo por uma busca renovada por Deus e pelo Espírito resultou em novas experiências espirituais profundas, genuínas e dramáticas – muitas delas marcadas por uma nova apreciação do amor, da santidade e do poder sobrenatural de Deus. Tais experiências evidentemente ocorreram muito tempo depois da conversão daquela gente. Por fim, esses crentes formaram um grupo com uma experiência à procura de uma teologia que explicasse tal fenômeno. Ao voltarem para as Escrituras – principalmente para o testemunho do livro de Atos dos Apóstolos –, muitas dessas pessoas simplesmente identificaram sua experiência com o “batismo no Espírito Santo” do Dia de Pentecostes. Cf. Storms, op. cit., p. 263.
7Existe uma última tese defendida pelos expoentes da Renovação Católica Carismática, isto é, a visão sacramental do batismo no Espírito. Segunda essa linha, a criança recém-nascida é infusa com o Espírito Santo quando do seu batismo na Igreja Católica Romana. O Espírito Santo permanece em estado dormente, tal qual a semente plantada sob a terra, até que no momento oportuno ele desperta na vida da criança batizada e manifesta-se em poder para o testemunho e serviço cristão. Cf. Storms, op. cit., p.257.
8cf. Rm 8.9; 1Co 12.1-3,12-13.
9cf. Lc 11.13; Ef 5.18.
10Em linhas gerais, esse é o mesmo argumento apresentado por John Stott, op. cit., p.21-77.
11cf. At 1.5; 2.17-21 (Jl 2.28-32); 2.33.
12
cf. Is 32.15; 44.3; Jr 31.31-34; Ez 36.26-27; 39.29; Jl 2.28-32; Jo 7.37-39; At 1.5; 2.38-39.
13Atos 2.33,38: “Exaltado à direita de Deus, ele recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e derramou o que vocês agora veem e ouvem. (…) Arrependam-se, e cada um de vocês seja batizado em nome de jesus Cristo para perdão dos seus pecados, e receberão o dom do Espírito Santo.”
14cf. At 2.38
15Defensores do batismo no Espírito Santo como uma “segunda bênção” ou segundo estágio na vida cristã costumeiramente citam outros três episódios no livro de Atos dos Apóstolos, além do Dia de Pentecostes, para fundamentar sua posição: a experiência dos samaritanos (At 8), dos da casa de Cornélio (At 10) e dos discípulos batizados pelo apóstolo Paulo em Éfeso (At 19). Como trataremos do caso da casa de Cornélio na seção acima, teceremos alguns breves comentários aqui sobre os outros dois episódios no livro de Atos.
O caso dos doze discípulos batizados por Paulo em Éfeso é o mais simples de ser explicado (At 19.1-7). Naquela ocasião, quando de passagem por Éfeso, Paulo deparou-se com alguns homens que conheciam somente o batismo provisório e preparatório de arrependimento ensinado por João Batista. Eles sequer haviam ouvido falar da existência do Espírito Santo – uma possível referência ao Dia de Pentecostes (At 19.2). Ou seja, eles sequer tinham experimentado a “primeira bênção” do Espírito mediante a conversão ao Evangelho de Jesus Cristo. Tanto que Paulo imediatamente passou a falar-lhes sobre Jesus e os batizou em seu nome, após o qual receberam o Espírito Santo (At 19.4-6). Portanto, o texto narra o estágio inicial da vida cristã daqueles discípulos quando da sua conversão a Cristo pelo poder do Espírito, e não um segundo estágio de capacitação com poder.
O caso da conversão dos samaritanos ao Evangelho e do seu recebimento posterior do Espírito é, de longe, o mais difícil de ser explicado (At 8.4-24). Contudo, a natureza peculiar desse relato por si só deve conduzir à cautela quanto à sua normatividade para a vida cristã. Em outras palavras, temos aqui um caso excepcional e único no Novo Testamento que foge à regra ilustrada e descrita no restante da Bíblia. No caso, os samaritanos são o único grupo descrito na Bíblia como tendo crido no Evangelho antes de terem recebido o dom do Espírito Santo, mediante a imposição de mãos dos apóstolos Pedro e João (8.14-17).
Várias interpretações existem acerca desse episódio. Como já mencionamos, esse é um texto clássico para os defensores da “segunda bênção” ou do segundo estágio da vida cristã. Contudo, o texto sequer relata uma primeira experiência do Espírito quando da sua conversão ao Evangelho que seria sucedida por uma segunda experiência de poder no Espírito. É justamente isso que torna o texto tão excepcional e de difícil interpretação!
Alguns alegam que o Espírito foi retido dos samaritanos enquanto eles não recebessem a imposição de mãos dos apóstolos. Contudo, tal condição não é normativa na experiência de outros recipientes do “batismo no Espírito” (cf. Cornélio em At 10.44-46; 11.15-17). Outros alegam que os samaritanos não haviam recebido os dons do Espírito até a chegada dos apóstolos, apesar do texto não indicar isso claramente. Por fim, alguns ainda questionam a legitimidade da conversão dos samaritanos antes da chegada de Pedro e João. Porém, o texto deixa claro a submissão deles à Palavra pregada por Filipe, tanto que os apóstolos não tiveram que complementar a pregação do Evangelho aos samaritanos antes que eles recebessem o dom do Espírito.
A interpretação mais provável – apesar de não ser isenta de dificuldades – é de que Deus soberanamente e intencionalmente adiou o derramamento do Espírito Santo sobre os samaritanos até a chegada dos apóstolos Pedro e João com o propósito de impedir a perpetuação da divisão histórica entre judeus e samaritanos dentro da igreja primitiva. Ou seja, esse episódio representa um caso excepcional por conta de circunstâncias excepcionais. Deus orquestrou assim o derramamento do Espírito sobre os cristãos samaritanos, diante dos pilares judeus da Igreja cristã vindos de Jerusalém (Pedro e João), com a intenção de impedir o questionamento da experiência cristã dos samaritanos e a subsequente acepção deles do restante da comunhão cristã. Cf. Storms, op. cit., p.267-271; Stott, op. cit., p.33-36.
16A seguinte análise segue de perto a exposição de Sam Storms, op. cit., p.258-261.
17Como bem apontado por Sam Storms, mesmo que Paulo estivesse descrevendo aqui em 1Co 12.13 uma “segunda bênção” ou segundo estágio na vida cristã chamado de “batismo no Espírito”, isso poria fim à necessidade da evidência física do falar em línguas como sinal necessário dessa experiência, visto que nem todos em Corinto exercitavam esse dom. (1Co 14.5)
181Co 12.4-11.
19Alguns estudiosos pentecostais contemporâneos argumentam que o protestantismo tradicional e os evangélicos em geral tem priorizado o papel soteriológico do Espírito Santo com base nos escritos de Paulo às custas do restante da evidência neotestamentária, especialmente nos escritos de Lucas em seu Evangelho e nos Atos dos Apóstolos, que tratam da capacitação sobrenatural dos cristãos para o testemunho e o serviço pelo poder do Espírito Santo (cf. William W. Menzies & Robert P. Menzies, No Poder do Espírito: fundamentos da experiência pentecostal. São Paulo: Vida, 2002). Ao avaliarmos toda a evidência da Escritura sobre este ou qualquer outro tema, devemos ter o cuidado de não homogeneizar o testemunho dos diferentes autores bíblicos em suas ênfases distintas. Tampouco devemos priorizar a ênfase de um autor bíblico acima de outro. No tocante ao batismo no Espírito Santo, cremos que Paulo e Lucas concordam sobre esta experiência única e comum a todos os cristãos quando da sua conversão a Cristo, conforme exposto na seção acima (cf. At 1.5; 2.38; 1Co 12.12-13). Contudo, como veremos adiante, não cremos que isso encerre a questão do papel contínuo e crescente do Espírito Santo na vida e no serviço da Igreja. Nisso, cremos que Paulo e Lucas também estejam de acordo, pois ambos tratam da necessidade da busca contínua do Espírito, inclusive no tocante à capacitação com poder e dons espirituais para o serviço e testemunho cristão. (cf. Lc 11.13; Gl 3.1-5; Ef 5.18; 1Co 12-14). Em suma, concluímos que tanto Lucas como Paulo apontam para a ação plena do Espírito Santo na vida da Igreja – desde a conversão a Cristo até a capacitação para o serviço a Cristo – embora um autor bíblico possa enfatizar uma parcela dessa ação mais que outro.
20Cf. 1Co 12.1-13.
21Storms, op. cit., p.262.
22cf. Lc 4.1; At 6.3,5; 11.24; 13.52.
23cf. Lc 1.15-17; At 9.17.
24O exemplo mais marcante é o de Estêvão, alguém descrito como sendo cheio do Espírito e, mais tarde, sendo preenchido com o Espírito para testemunhar corajosamente do Evangelho perante os seus perseguidores para, em seguida, enfrentar o martírio (cp. At 6.3; 7.55).
25cf. Lc 1.41,67; At 4.8,31; 7.55; 13.9.
26Storms, op. cit., p.262.
27Op. cit., p.262-263.
28Sam Storms. http://www.samstorms.com/all-articles/post/baptism-of-the-holy-spirit—part-i. Acessado em 16.11.2016.
29Um outro exemplo disso é a eleição incondicional e a salvação exclusiva pela graça de Deus de cristãos genuínos que discordam das doutrinas da graça expostas e defendidas pela tradição reformada. Ao nosso ver, não é preciso concordar com a doutrina da eleição segundo a tradição reformada e calvinista para ser um eleito de Deus – embora seria melhor ser um eleito em concordância com tais doutrinas. Em outras palavras, não é preciso ter a teologia certa e perfeita para merecer a sua eleição para a salvação. Ou será que precisamos merecer tal eleição para a salvação mediante uma formulação teológica perfeita? Isso não parece condizer com a própria doutrina da eleição incondicional defendida pelos reformadores protestantes!

2 COMENTÁRIOS

  1. Excelente!!! Um ponto de vista que visa resguardar a unidade do corpo de Cristo, o qual é formado por cristãos tradicionais e carismáticos (num sentido amplo, envolvendo todas as correntes). Ainda que defendamos pontos de vistas diferentes, isso jamais deveria promover divisão entre nós, e muito menos arrogância espiritual. Pois, nada obstante nossas divergências, nossa experiência com Cristo é legítima. Portanto, cresçamos tanto na graça quanto no conhecimento de Cristo e sejamos mais tolerantes e amáveis com aqueles que divergem de nós.

  2. Se porventura alguém sentir essa alegria e começar a falar em outras línguas, se a pessoa perceber que aquilo não é nem dele e nem do diabo, como proceder se a pessoa tiver vontade de falar mais e mais aquela língua? Se o indivíduo não estiver num ambiente de culto, que não incomodaria ninguém. A pessoa faria o que? Calaria ou falaria?
    Amo suas explicações…Deus lhes abençoe!

DEIXE UM COMENTÁRIO

Please enter your comment!
Please enter your name here