Há pouco acabei de ver os resultados de duas enquetes sobre a essencialidade dos cultos públicos. As enquetes foram feitas no meu Instagram e no programa “Os Pingos nos Is”, da Jovem Pan. Interessante foi perceber que, em ambas, a esmagadora maioria dos que votaram disse que deseja os cultos presenciais. Na verdade, parece que os cristãos querem cultuar ao Senhor com cuidado e precaução, diferente daqueles que, guiados por militância, transformaram o que creem em percepção política.
Agora, vale a pena ressaltar que entendo que restrições são importantes, e que não sou a favor de aglomerações. Contudo, não vejo problemas da igreja se reunir com público reduzido, até porque, seguindo os protocolos, o risco de contaminação por parte dos fiéis é mínimo. Aliás, é mister salientar, que em 2020 praticamente todas as igrejas das mais variadas denominações fecharam suas portas de forma voluntária. A igreja que eu pastoreio, por exemplo, foi uma das primeiras no Rio de Janeiro a convidar os seus membros a permanecerem em casa por um período, o que se deu até o mês de junho. Todavia, hoje a angústia, a dor e o sofrimento exigem que o povo de Deus se reúna em oração e para ouvir a Palavra de Deus.
“Ah”, dizem alguns, “mas se a questão é orar e cantar, por que vocês não podem fazê-lo em casa?” Ora, a resposta a isso é simples:
O culto não é um lugar onde somente se ora e canta. Quem faz tais afirmações desconhece de forma clara o que significa a igreja de Cristo. Ademais, do ponto de vista das Escrituras o culto é público e presencial. Basta olhar para a Palavra de Deus e perceber isso, o que nos leva ao entendimento de que não existe a possibilidade de culto on-line, muito menos ceia ou mesmo batismo on-line. Mesmo porque, a ceia do Senhor sempre foi ministrada no ajuntamento dos crentes, bem como o batismo, que é uma confirmação pública celebrada pelo povo de Deus. Junta-se a isso que os regenerados pelo Espírito Santo, unidos a Cristo, querem e desejam conectar-se em relacionamentos saudáveis e profícuos na communio sanctorum. Além disso, na reunião pública dos eleitos de Deus consolamos e somos consolados, amamos e somos amados, cuidamos e somos cuidados, isto sem falar, é claro, na ministração da Palavra de Deus, que quando pregada, injeta nos corações dos aflitos esperança.
“Ah! Não concordo! Jesus por acaso não disse que onde estiverem dois ou três reunidos em seu nome ele estaria?”
Pois é, boa parte dos evangélicos tem por hábito desenvolver doutrinas fundamentadas em versículos isolados. Ora, um princípio exegético e hermenêutico é que “texto fora do contexto é como mero pretexto”, e o pretexto é a base para o surgimento de heresias. Aliás, digo mais, estabelecer uma afirmação doutrinária ou elaborar um corpo de doutrinas fundamentados em textos isolados, fora do seu contexto, é um erro grave, e que por si só traz consequências funestas a igreja de Cristo. Para piorar a situação, os que agem desta forma, além de “assassinar” o texto bíblico, levam àqueles que os leem ou ouvem a uma visão absolutamente equivocada do ensino das Escrituras.
Um exemplo claro disso é a interpretação que alguns tem feito sobre Mateus 18:20 que diz: “Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles.”
Segundo esses irmãos, o texto afirma que qualquer grupo de duas ou três pessoas ao se reunirem em nome de Jesus podem ser caracterizados Igreja, o que se justifica, em tempos de pandemia. Mas, será que a interpretação feita por esses irmãos está certa? Será que o texto usado pelos que advogam essa premissa, pode à luz do contexto ser interpretado desta maneira? Penso que não, até porque, textos isolados, extraídos do contexto podem produzir heresias.
Bruce Shelley[1], contrapondo-se a essa ideia, afirma que alguns em nosso tempo tem tido uma visão da igreja distorcida pelo individualismo, e que o individualismo tem contribuído para a construção do mito de que onde estiverem dois ou três reunidos em nome do Senhor, ali é a igreja.
Pois é, para estes Mateus 18:20 é a prova inequívoca de que para constituir uma igreja basta somente duas ou três pessoas se reunirem em nome de Cristo. Só que, como falei anteriormente, todo texto precisa ser lido dentro do contexto, até porque, o entendimento do contexto é essencial para a compreensão do significado do texto.
Bruce L. Shelley afirma que, no contexto, o Senhor Jesus ensina que se o nosso irmão pecar contra nós, devemos procurá-lo em particular e tentarmos a reconciliação (v.15). Se não quiser atender, pediremos a um ou dois indivíduos que nos acompanhem para que toda palavra se estabeleça, pelo depoimento de duas ou três testemunhas (v.16). Se mesmo assim recusar-se a ouvir, Cristo diz então: Dize-o a Igreja e se recusar a ouvir também a igreja, considere-o gentio e publicano. (v 17).
Por pavor, preste atenção: Os dois ou três mencionados no texto não são considerados como igreja, que é identificada como um corpo maior, reunido localmente, de modo que lhe possam contar o acontecido, e o indivíduo desviado possa dar-lhe atenção.
Augustus Nicodemus é contundente em afirmar que o texto não concede base para que dois ou três em nome do Senhor se separem da igreja resolvendo assim fazer sua própria igrejinha informal ou seguir carreira solo como cristãos.[2]
Essa passagem particular faz uma clara distinção entre o pequeno grupo de cristãos e a igreja (local).
Vale a pena ressaltar que, segundo o contexto, o verso 20 sugere que Jesus está no meio de duas ou três testemunhas não para congregar-se, mas, para decidir a veracidade ou falsidade de declarações feitas nas tentativas de reconciliar as diferenças entre os crentes.
Isto posto, usar esse versículo para justificar a ausência de cultos, afirmando que duas ou três pessoas reunidas em nome de Cristo constitui uma igreja, é um grave erro exegético.
O versículo comumente usado pelos militantes para justificar a ausência de reuniões públicas na pandemia não pode fundamentar a premissa por eles defendida. Ademais, uma igreja local se caracteriza por outros fatores.
Jonathan Leeman[3], por exemplo, afirma que o que constitui uma igreja local é um grupo de cristãos que se reúnem regularmente em nome de Cristo para confirmar e supervisionar legitimamente a participação uns dos outros em Jesus Cristo e seu reino, mediante a pregação do evangelho e a prática dos sacramentos.
Leeman afirma que isso se dá mediante a pregação, da ministração do batismo e da ceia do Senhor, como também a aplicação da disciplina. A questão é que os niilistas eclesiásticos odeiam todo e qualquer tipo de organização, rejeitando assim tudo que possa lembrar um tipo de instituição. Para piorar a situação, preferem dar ouvidos aos conselhos distorcidos de militantes.
O reformador francês João Calvino, ao contrário de muitos pastores, ensinava a suprema importância e a necessidade de o cristão estar unido à Igreja visível.[4] Calvino entendia que o cristão, como filho adotado de Deus, pertence ao Corpo universal de Cristo, mas exterioriza essa sua ligação à Igreja invisível ao unir-se à Igreja visível. Calvino também deixa claro que essa união se dá pela confissão de fé, pelo exemplo de vida, pela participação nos sacramentos.
Realmente vivemos tempos difíceis, contudo, apesar da complexidade da situação a igreja continua sendo lugar de consolo, fé e esperança e mais do que nunca essencial àqueles que sofrem as dores desta pandemia.
Soli Deo Gloria!
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[1] A Igreja: Povo de Deus – Bruce L. Shelley – Editora Vida Nova
[2] Os desigrejados – Augustus Nicodemus Lopes – http://tempora-mores.blogspot.com.br/2010/04/os-desigrejados.html
[3] Membresia na Igreja – Jonathan Leeman – Editora Vida Nova
[4] O Conceito de membresia em João Calvino – http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=502