Um ponto de partida interessante para analisar a visão otimista que Wesley tinha sobre a graça de Deus é sua carta de 14 de maio de 1765, endereçada a seu amigo John Newton. Nessa carta, Wesley apresenta convergências e divergências com o sistema calvinista. A princípio, ele afirma que não difere de Calvino “um fio de cabelo” (WESLEY, 2015, vol. 27, p. 427). O contexto é sobre a doutrina da justificação, a respeito da qual Wesley estava convencido de que essa obra divina só poderia ser operada pela graça por meio da fé. A fim de esclarecer qualquer mal-entendido sobre sua opinião, Wesley menciona na carta o sermão 17: “Circuncisão do Coração”, pregado em 1º de janeiro de 1733 (WESLEY, 2015, vol. 27, p. 428). Nesse sermão, podemos ver que sua opinião se aproximava da de Calvino também com relação aos efeitos do pecado original no homem não regenerado, como ele mesmo testificou: “[…] o homem natural […] está vivo para o mundo e morto para Deus” (WESLEY, 1985, vol. 1, p. 401). E: “Estamos convencidos […] de que não podemos ajudar a nós mesmos; que sem o Espírito de Deus nada podemos fazer senão acrescentar pecado a pecado” (WESLEY, 1985, vol. 1, p. 403). Nesse caso, podemos apontar que, antes de falar sobre o otimismo da graça, Wesley afirmou um pessimismo antropológico.
A afirmação de que o homem não pode salvar a si mesmo pode ser visto em vários outros textos de Wesley, como seu sermão 38: “Pecado Original” (WESLEY, 1985, vol. 2, p. 170-85). Em seu livro “The doctrine of original sin: according to Scripture, reason, and experience” [A doutrina do pecado original: de acordo com a Escritura, a razão e a experiência] (WESLEY, 1757) e o sermão 43: “O caminho da salvação nas Escrituras” (WESLEY, 1985, vol. 2 p. 152-69), além de muitos outros. Se, por um lado, Wesley concordava com Calvino sobre as doutrinas do pecado original e da justificação, por outro, ele afirmava na carta que discordava da predestinação e da santificação, visto que professava a doutrina da perfeição cristã (WESLEY, 2015, vol. 27, p. 427). É precisamente nesse último caso que Wesley sugere sua visão otimista da graça. Enquanto Calvino mantinha um pessimismo soteriológico, ou seja, de que o homem regenerado permanece preso ao pecado, Wesley fala de uma poderosa graça santificadora que promove “a salvação de todo pecado e o amor a Deus com um coração indiviso” (WESLEY, 2015, vol. 27, p. 428 — itálicos do autor). Em outro texto, o sermão 107: “Na vinha de Deus”, Wesley até elogia o reformador alemão Martinho Lutero por suas contribuições à doutrina da justificação, mas tece uma crítica contundente a ele em relação à sua fraqueza em relação à doutrina da santificação, dizendo: “Quem escreveu mais habilmente do que Martinho Lutero sobre a justificação somente pela fé? E quem era mais ignorante da doutrina da santificação, ou mais confuso em suas concepções dela?” (WESLEY, 1986, vol. 3, p. 505).
O ponto é que, para Wesley, a graça de Deus é tão poderosa para salvar da condenação eterna quanto dos efeitos temporais do pecado nesta vida. É poderoso em trazer mudanças relacionais (na justificação) e ontológicas (na santificação). Funciona por nós e em nós. Por conta disso, Wesley não pode admitir que o pecado seja uma necessidade ou obrigação na vida do cristão. Assim, ele explica no sermão 17:
Uma fé [salvadora] como esta [transmitida pela graça] não pode deixar de mostrar evidentemente o poder de Deus que a inspira, libertando seus filhos do jugo do pecado e “purificando suas consciências de obras mortas”; fortalecendo-os para que não sejam mais constrangidos a obedecer ao pecado em seus desejos; por isso, em vez de “ceder seus membros a ela, como instrumentos de injustiça”, eles agora “se entregam” inteiramente “a Deus, como aqueles que estão vivos dentre os mortos” (WESLEY, 1984, vol. 1, p. 406).
Em sua carta, Wesley reforça essa crença e acrescenta que a graça de Deus não apenas auxilia nas práticas morais de santidade, mas em todas as nossas ações, dando “extrema clareza de ter um desígnio, um desejo, um amor e perseguir um fim de nossa vida em todas as nossas palavras e ações” (WESLEY, 2015, vol. 27, p. 428 — itálicos do autor).
Finalmente, a graça de Deus torna possível para o homem nascido de novo fazer boas obras. É nesse ínterim que podemos entender Wesley em relação às obras de misericórdia e seu envolvimento com várias agendas sociais de sua época (i. e., abolição da escravatura, questões de assistência médica, uso adequado do dinheiro, direitos prisionais, cuidado dos pobres e vulneráveis etc.). A teologia de Wesley favoreceu a noção de realizar boas obras, reconhecendo que as pessoas salvas foram preparadas para fazê-las de antemão. Em suas “Explanatory notes upon the New Testament” [Notas explicativas do Novo Testamento], Wesley comenta sobre o texto de Ef 2.10, afirmando que este versículo “prova tanto que a salvação é pela fé, como que a fé é dom de Deus” e que todos os crentes devem praticar boas obras, “embora não sejam justificados por elas” (WESLEY, 1983, [s.p]). Em seu breve comentário sobre o texto paulino em questão, Wesley afirma tanto sua visão antropológica pessimista quanto sua visão otimista da graça.
O pessimismo antropológico de Wesley foi importante por duas razões: em primeiro lugar, para enfatizar a incapacidade humana para as coisas espirituais, isto é, a perda do livre-arbítrio e a depravação total do ser humano não regenerado. Isso o afasta de Pelágio e de João Cassiano, heresiarcas que discordaram da doutrina do pecado original agostiniana. E, em segundo lugar, para colocar a graça de Deus como central na via salutis (caminho para a salvação) ou ordo salutis (ordem da salvação), eliminando, assim, qualquer pelagianismo e semipelagianismo. Nesse sentido, podemos não apenas afirmar que sua visão soteriológica é otimista, mas também testemunhar que é charicêntrica (centrada na graça).
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Referências bibliográficas:
WESLEY, John. Explanatory notes upon the New Testament (Grand Rapids: Baker Book House, 1983). vol. 2. Reprint of 1755 edition.
_____________. Letter to John Newton, May 14, 1765. In: The works of John Wesley. Letters III (1756-1765). Bicentennial Edition. (Nashville: Abingdom Press, 2015). p. 426-9. vol. 27.
_____________. Sermon 107 – On God’s vineyard. In: The works of John Wesley. Bicentennial Edition. (Nashville: Abingdom Press, 1986). p. 503-17. vol 3.
_____________. Sermon 17 – Circumcision of the Heart. In: The works of John Wesley. Bicentennial Edition (Nashville: Abingdom Press, 1984). p. 398-414. vol. 1.
_____________. Sermon 38 – Original Sin. In: The works of John Wesley. Bicentennial Edition (Nashville: Abingdom Press, 1985). p. 170-85. vol. 2.
_____________. Sermon 43 – The Scripture way of salvation. In: The works of John Wesley. Bicentennial Edition (Nashville: Abingdom Press, 1985). p. 152-69. vol. 2.
_____________. The doctrine of original sin according to Scripture, reason and experience (Bristol: E. Farley, 1757).
Texto fantástico! Os Calvinistas que ainda acreditam que somos pelagianos estou muito mal informados. Cremos que a graça opera em todo o tempo na vida humana. Maravilhoso!