O secularismo e a introversão da mente moderna

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“Lá dentro está o nosso futuro! Lá dentro… está o nosso destino!”
Kevin Flynn (Tron: the Legacy, 2011)1
“A mente dele se move num círculo perfeito, porém reduzido. Um círculo pequeno é exatamente tão infinito quanto um círculo grande; mas embora seja exatamente tão infinito, não é tão grande.”
G. K. Chesterton (Ortodoxia)

Essa era a fé e a loucura de Kevin Flynn, dono da megacorporação tecnológica ENCOM, quando ele criava Clu, uma espécie de clone digital de si mesmo encarregado de criar o sistema perfeito no interior da Grade, um universo paralelo gerado digitalmente. Flynn acreditava ser possível levar a perfeição desse universo para o mundo externo, devido às infinitas possibilidades que ele oferecia: “uma fronteira digital para remodelar a condição humana”. Mas enquanto eles trabalhavam um milagre aconteceu: seres vivos digitais (ISO’s) emergiram dentro desse universo, alterando completamente os planos de Flynn. Agora ele desejava proteger os ISO’s com a ajuda de Clu e de Tron, o protetor dos “usuários”, uma versão digital do amigo e colega de Flynn, Alan Bradley que foi transportada do antigo sistema (do primeiro filme, Tron, de ) para o novo sistema.

Clu não é capaz de compreender isso, no entanto. Os ISO’s lhe parecem imperfeições no sistema; são vivos, imprevisíveis, violam regras, como se fossem vírus. Então, para prosseguir na criação do seu mundo perfeito, ele reprograma Tron tornando-o seu escravo, realiza um genocídio (o “expurgo”) exterminando quase todos os ISO’s e arquiteta um plano para atravessar a fronteira digital rumo ao mundo exterior com um exército de programas, com o fim de dominar a terra. É claro que isso implicaria na destruição do mundo. Para impedi-lo, Flynn esconde-se com o disco mestre e Quorra, a única sobrevivente da raça dos ISO’s; e com o fechamento do portal ele fica aprisionado na Grade.

Vinte anos depois do desaparecimento de Flynn, seu filho Sam é atraído por Clu para dentro da Grade, para forçar Flynn a se manifestar e assim tomar-lhe o disco mestre. Clu consegue capturar o disco por um momento, e após reunir seus exércitos diante do portal ele faz um discurso inflamado anunciando aos programas que juntos eles irão “maximizar a eficiência do sistema”, e que “um novo mundo, a nossa vitória, e o nosso destino” estariam lá fora, para além da fronteira digital. Mas com a ajuda de Quorra, de seu pai Flynn, e de Tron, que no último momento relembra a sua programação original e luta contra Clu, Sam consegue recuperar o disco mestre e voltar com Quorra para o mundo real, enquanto Flynn entrega sua vida destruindo Clu e seu exército de programas.

Um dos últimos diálogos do filme é a conversa entre Flynn e Clu, depois da “regeneração” de Tron e pouco antes da escapada de Sam e Quorra para o mundo real. Clu invoca a promessa de Flynn, de que juntos eles mudariam o mundo, e brada em alta voz que levou o sistema ao seu potencial máximo; e expressa sua revolta com Flynn por desistir de buscar o mundo perfeito. Flynn confessa a sua falha: a perfeição é inalcançável e incognoscível. O mundo perfeito que ele desejava construir artificialmente era um erro; mas como ele só descobriu isso depois de criar Clu, não foi capaz de transmitir tal conhecimento a ele. Flynn pede perdão a Clu, mas é ignorado, e Flynn é obrigado a se sacrificar para apagar Clu, sua imagem digital, e destruir o seu exército de programas.

À parte das interessantes metáforas religiosas que aparecem no filme, com referências ao budismo e ao cristianismo,2 salta aos olhos a contradição entre Flynn e Clu, seu “outro” artificial. Clu é para Flynn uma revelação de seu erro em ignorar a perfeição da vida, que já estava diante dele, procurando substituí-la por um sistema racional perfeito e previsível. Do ponto de vista de Clu, vida era imperfeição. E foi assim que o próprio Flynn descobriu em suas esperanças de levar a humanidade “para dentro” (literal ou metaforicamente) da Grade uma relação pervertida com a realidade – ele confessa que Clu é ele mesmo, em sua busca pela perfeição, “destruindo o que estava bem diante de mim”. E chega a dizer a Sam: “controle, ordem, perfeição… eu vivia em um mundo de espelhos”. O sistema “perfeito” criado por Clu era a contradição da vida e da liberdade, e projetava-se para fora da Grade como um sistema mortal que ao invés de remodelar a condição humana, a extinguiria completamente. E Clu foi derrotado pela união de Tron, o protetor dos usuários, Sam, o usuário, Quorra, a vida, e Flynn, o criador de Clu e da Grade que se sacrifica num ato de abnegação.

A história toda ilustra muito bem o problema que animará nossa exposição, que é introversão do pensamento moderno resultante de certas concepções de racionalidade, e a questão sobre a capacidade do humanismo secular de manter-se imune a essa introversão. Nos termos de nosso blockbuster: o que, afinal de contas, leva a imagem teórica de si criada pelo sujeito a deixar de servir a seu “usuário”, e a tentar colonizar o universo da existência para torna-lo um “sistema perfeito” e “totalmente sob controle”? E porque o “usuário” pratica essa contradição consigo mesmo? O que o faz crer que seu futuro e destino estão lá dentro, no interior da Grade?

Racionalidade
A ideia de racionalidade é dependente das noções irmãs de norma e liberdade. Não importa se empregamos o termo para descrever uma qualidade dos seres humanos, i.é, a participação naquilo que os antigos chamaram de logos, ou “razão” no sentido universal, ou se nos referimos de forma menos ambiciosa a uma capacidade de julgamento e cálculo prático característica dos seres humanos, ou se consideramos a racionalidade como uma propriedade exibida pelos produtos culturais do homem, sejam eles abstratos ou concretos tais como, arrazoados, provas científicas, técnicas, artes ou ritos. Em qualquer caso, a racionalidade envolverá a adesão livre (liberdade) a uma forma ordenada de pensar (norma) sobre o mundo.

Em outros termos, racionalidade sempre envolve coerência intencional: se o que se segue guarda uma relação de continuidade necessária com seu precedente, e se sabemos que o que precede tem ser ou realidade, podemos ter segurança de que o que se segue também tem ser ou realidade, que o que se segue está em unidade com o precedente. E se desejamos permanecer no real, precisamos responder positivamente a essas relações de continuidade.

Assim, buscar a ratio é expor as raízes das coisas e efetivamente segui-las até o solo profundo da realidade, seja essa compreendida como objetiva e independente do observador, seja ela compreendida como subjetiva e idêntica com o observador. A racionalidade é uma posição interessada, e seu interesse é a unidade intencional da consciência humana com a realidade.

Naturalmente é possível falar em “racionalidades”, reconhecendo que o modo como as relações de coerência são estabelecidas e os pontos de partida assumidos como reais variam regionalmente (entre diferentes ciências, ou diferentes atividades humanas, talvez) e, num sentido mais forte, que eles talvez variem culturalmente como se alega entre historicistas de todas as matizes; ou talvez que variem linguisticamente, biologicamente, neurologicamente, ou economicamente, segundo o gosto e a imaginação do intérprete. Mesmo nesses casos, no entanto, assume-se que cada racionalidade envolve seu próprio sistema de regras, consistente ou não, que se mantém incomensurável em termos dos outros sistemas – a não ser, é claro, quando se deseja traçar regras para uma metarracionalidade, o que nos levaria ao parágrafo anterior.

Normalmente não descrevemos como imorais pessoas que reproduzem padrões de pensamento ou de ação claramente irracionais – especialmente se tememos que elas apenas sigam uma ou outra forma incomensurável de racionalidade. Mas os que consideram a racionalidade uma ou a virtude tipicamente humana tendem a se sentir ultrajados pela irracionalidade, como aquilo que não se deve ser, aquilo que é inferior e talvez indigno da condição humana. Pois há um elemento de dever na ideia de racionalidade; um elemento deôntico. Espera-se que o arrazoado mantenha o discurso e o pensamento amarrados ao real por laços firmes, suficientes; admite-se que o desinteresse possa conduzir à perda desses laços com o real. E assim revela-se sob a moralidade da razão uma paixão pela verdade.

A bem da verdade, na falta da Verdade com “V” maiúsculo tentamos nos satisfazer com a verossimilitude, mas ainda assim porque supomos uma relação de parentesco entre a Verdade e a verossimilitude – como o patriarca Bíblico Jacó, que aceitou Lia mas queria mesmo era Raquel…

Mas para evitar as reações alérgicas típicas diante do odor forte do termo “Verdade”, vamos retornar ao termo “realidade” que também empregamos há pouco. Não porque este último seja menos problemático, mas porque inclui em seu campo de sentidos uma referência imediata à nossa experiência ordinária, pré-reflexiva. Quando falamos em “Verdade” pensamos logo na proposição verdadeira; mas quando falamos em realidade, pensamos logo nas contas a pagar que vencem amanhã, e que nenhum sofisma fará desaparecer.

Mas falávamos sobre a paixão pela verdade, e sobre o sentimento de dever diante da realidade. Ora, tudo isso mostra que a verdade não está completamente dada à consciência; mesmo que seja acessível, precisa ser reconhecida, alcançada e incorporada. Aceitar a realidade é tornar-se verdadeiro, real, autêntico; mas é possível não aceita-la, não realizar o movimento em sua direção. A racionalidade não se inclui, portanto, entre os aspectos do mundo que obedecem à necessidade natural sendo nisso imunes à contradição. No campo das leis naturais, não há “liberdade” no sentido próprio, não analógico, porque não há a possibilidade da autonegação ou da autocontradição; como se, por exemplo, o movimento subitamente decidisse se realizar ignorando as leis de Newton. Mesmo o homem não pode contradizer as leis do movimento, senão apenas emprega-las em seu favor. Não é possível criar um movimento fisicamente “falso”, nem uma reação química “falsa”, nem um metabolismo biológico “falso”.

Mas sem dúvida há genuínos raciocínios falsos. O homem certamente pode recusar o movimento para a realidade e negá-la, donde a positivação das leis lógicas ocorre no campo da liberdade, e não no da necessidade natural. Se o pensamento obedecesse à necessidade natural não haveria possibilidade de falso pensamento, nem de erro de raciocínio, nem mau ou bom argumento; pois todo pensamento seria expressão involuntária e automática da natureza. Não é possível, portanto, racionalidade sem liberdade do sujeito diante de seu objeto de cognição. Racionalidade, significado e dever são noções ininteligíveis sem a ideia de liberdade humana.3

Ora, a norma do pensamento coerente é lógica, porque o pensamento não avança sem o discernimento da identidade e da exclusão. Relações de identidade e de exclusão nos indicam se o que se segue se relaciona ou não se relaciona com o que precede. Mas até mesmo as relações lógicas se prostram diante de um interesse superior que lhes dá cor e propósito: a realidade. Com isso se estabelecem dois critérios de racionalidade: coerência lógica (ou intrassistêmica) e coerência ontológica (ou extrassistêmica, ou translógica).4 A coerência lógica se mostra na forma do pensar e determina a sua estruturação interna, e a coerência ontológica se mostra na relação de paixão e liberdade que o pensar tem com a realidade. Os dois critérios constituirão em nosso argumento os elementos de uma deontologia da racionalidade.

Pensemos nos dois critérios como Tron e Clu: juntos, eles devem ajudar Flynn a construir o sistema. Clu busca a perfeição, e Tron protege os usuários. Clu olha para “dentro”, e Tron olha para “fora”, por assim dizer. Clu tem mais poder do que Tron, mas Tron defende um valor superior ao de Clu, e ambos dependem de Flynn, em última instância. E o que Flynn faz de si mesmo, no fim das contas, determinará o destino de Clu.

Coerência Performativa
A relação do pensamento com a realidade é parcialmente externa ao próprio pensamento. E isso é evidente, a não ser que o pensamento não tivesse nenhuma outra substância, por assim dizer, que não fossem as relações lógicas, suas velhas conhecidas; mas nesse caso tudo seria identidade e Parmênides já teria solucionado o mistério do mundo. Para aqueles menos otimistas quanto às realizações da filosofia antiga o mundo parece bem mais interessante: cheio de identidade, mas também de diferença. O que há interessante no pensar é o espanto: nossa surpresa diante da diferença entre o que espero de X e o que X me mostra indica que o pensamento não existe fechado em si mesmo. Ele é naturalmente poroso, invadido o tempo todo por coisas diferentes, estranhas, que teimam em bater nas portas da nossa mente e cedo ou tarde entram sem serem convidadas.

A relação do pensamento com a realidade é uma expressão da relação do homem com a realidade, relação essa tematizada pelo pensamento. A racionalidade tem assim um fundo extático, translógico, extrassistêmico, num certo sentido; ela existe a serviço de uma relação original que se sustenta para além das abstrações teóricas. Ela poderia ser ilustrada aqui como uma ponte: seus cabos de aço a mantém inteira e coerente, mas suas pontas estão sobre as margens, e margem é o que não é ponte, e que está lá com ou sem ponte; a margem é diferente da ponte.

Como se pode recuperar essa relação original? Como se pode saber a realidade, já que ela sempre se estende para além do pensamento? Aqui os limites do pensamento são atingidos, quando entramos no terreno das condições de possibilidade. A existência da relação com a realidade é uma condição de possiblidade para a validade de Jure de qualquer racionalidade, imagem de mundo ou arrazoado coerente, o que nos leva a descrever a coerência ontológica como uma condição transcendental da racionalidade. E isso instaura nosso primeiro dilema: mesmo que seja possível mostrar, não é possível justificar com o pensamento as suas condições de possibilidade; isso equivaleria a uma petitio principii.

Talvez não se possa mesmo ir tão longe, mas não precisamos nos dar por vencidos aqui. Se desejamos dar qualquer uso prático à noção de coerência ontológica, será preciso transformá-la em um critério manipulável, ou ao menos inventar um critério de aproximação. Ponte e margem podem ser coisas diferentes e até separadas, mas se ao sair da ponte meus pés alcançassem a margem eu me daria por satisfeito!

Para não repetir aqui os erros de filósofos muito melhores do que nós, seria sábio dar um princípio mais humilde para este empreendimento. Digamos que, ao invés de demonstrar a continuidade entre o arrazoado sobre o mundo e o mundo, ou provar que a minha concepção de racionalidade é “a” concepção verdadeira – o que talvez seja impossível, mas não necessariamente – procuremos tão somente estabelecer as condições mínimas para que tal continuidade exista.

Nesse caso, o que procuramos não é encontrar a explanação única e incorrigível sobre a natureza da coerência ontológica, e sim eliminar as explicações que se postam para além do limite da plausibilidade.

Essas condições mínimas, naturalmente, precisarão ter elas mesmas uma forma logicamente coerente, a fim de que sejamos capazes de julgar sua plausibilidade. E aqui somos alcançados pela irmã menos graciosa da Verdade: a verossimilhança. Não é possível escapar dela, no entanto, desde que admitamos a existência de uma diferença entre pensamento e ser, lógico e não-lógico, ponte e margem. Ainda que seja uma diferença-na-unidade, o momento de diferença sempre escapará à identidade e à exclusão. A lógica não deu, não dá e jamais dará conta desse fenômeno esquisitíssimo.

Eis então a nossa condição mínima: nenhuma formulação sobre a natureza da realidade poderá inviabilizar a coerência ontológica.

Trata-se, obviamente, de uma condição muito pouco exigente; ela só torna implausível uma contradição – isso não a tornaria meramente uma versão complicada da coerência lógica?

O olhar atento mostrará que não. É claro que a nossa condição mínima incorpora em si mesma o reconhecimento da diferença entre lógico e não-lógico, diferença essa tanto logicamente inteligível quanto logicamente irredutível. Ela é, portanto, logicamente interessada – pois deseja ser logicamente coerente. Mas, além disso, a nossa condição é também onto-logicamente interessada, extrassistemicamente interessada – pois deseja servir ao princípio de realidade acima de tudo, unindo liberdade e paixão pela verdade. E esses interesses a tornam deontologicamente consistente – virtuosa, digamos assim.

No mais, essa condição é bastante óbvia: apenas admite que nenhuma explicação do mundo pode manter-se de pé destruindo suas condições de possibilidade. Poderíamos com alguma licença chamar isso de “coerência transcendental”, mas para evitar um excesso de aproximação do Kantianismo que obscureceria a natureza particular de cada visão de racionalidade, vamos chama-la de “coerência performativa”.

Temos então o seguinte:

Toda concepção de racionalidade que implique a negação teórica ou prática de suas condições ontológicas de possibilidade pode ser considerada auto-performativamente incoerente e, por conseguinte, implausível.

Incoerências Performativas
Em seu famoso artigo The Eclipse of Thought,5 Michael Polanyi descreve um caso clássico de incoerência performativa: a crise da liberdade de pensamento que atingiu a Europa no século XX. Depois de observar que não pode haver significado sem liberdade intelectual, e que apenas a liberdade intelectual teria condições de questionar sua própria validade, Polanyi enfrenta diretamente esse problema: como é possível que o elevadíssimo grau de liberdade individual obtido sob o influxo do iluminismo, envolvendo ao final do século XIX o direito de cruzar fronteiras livremente na Europa, de duvidar e expressar ideias e de confrontar diretamente a opressão religiosa na cultura, tenha se degenerado tão profundamente em amplas porções do Velho Mundo?

Assim entramos no século vinte como se em uma era infinitamente promissora. Poucas pessoas notaram que estávamos andando em um campo minado, embora as minas tenham sido todas preparadas e cuidadosamente colocadas à plena luz do dia por pensadores bem conhecidos de nossa própria época. Hoje sabemos quão falsas eram as nossas expectativas. Todos aprendemos a traçar o colapso da liberdade no século vinte aos escritos de certos filósofos, particularmente Marx, Nietzsche e seus ancestrais comuns, Fichte e Hegel. Mas a história que ainda aguarda ser contada é a de como saudamos como libertadoras as filosofias que destruiriam a liberdade.6

Polanyi enuncia sua explicação para as causas desse processo bem no princípio de seu argumento: “A partir de um estudo cuidadoso da história do pensamento em nosso próprio tempo é possível ver que a liberdade de pensamento destruiu a si mesma quando o pensamento levou até às últimas consequências uma concepção autocontraditória de sua própria liberdade”.7 

Haveria, portanto, uma contradição interna na doutrina da liberdade. Segundo Polanyi, essa contradição teria sido freada no mundo Anglo-Americano por uma “relutância instintiva” em seguir as premissas filosóficas de forma consistente, relutância essa baseada no caráter religioso de sua forma de liberalismo.8 Esse caráter, e as restrições especulativas e morais por ele induzidas estavam ausentes “nas partes da Europa onde o liberalismo foi baseado no Iluminismo Francês”, de modo que nesses lugares a consistência foi muito maior. Assim, ataques a noções de “verdades eternas como a Liberdade, a Justiça, etc.” como os que aparecem explicitamente no Manifesto Comunista receberam amplo suporte cultural9 na Europa central e oriental.

De certa forma a madeira nesses lugares estava mais seca, por assim dizer, do que no mundo Anglo-Americano, mas isso por si só não explicaria o enorme turbilhão que envolveu a Europa em suas guerras e totalitarismos. Polanyi recorre aqui à ampla evidência documentária sobre o crescimento e a militância do niilismo na inteligência Europeia como o pavio que iniciou o incêndio.10 Um exemplo particularmente claro é o dos personagens niilistas representados na literatura Russa do final do século XIX, como o Raskolnikov de Dostoievski. Esse tipo de personagem, seja em suas versões “individualistas” ou nas “revolucionárias” é descrito ali até aos detalhes psicológicos, e os efeitos civilizacionais de sua influência são quase profeticamente antecipados por Dostoievski.

O argumento de Polanyi é como um todo de grande interesse, mas seu ponto principal fornece o paradigma da contradição performativa: não se trata apenas da contradição lógica presente em uma visão autocontraditória de liberdade, mas da contradição ontológica e extrassistêmica nela implicada. E essa contradição ontológica, quando seguida consistentemente, levou a uma contradição real, ou seja, a uma autodestruição. A contradição do pensamento com o ser acontece literalmente como uma performance, como ato, caracterizando-se por isso como incoerência performativa.

Paradoxalmente, portanto, a consistência lógica, intrassistêmica, transmutou-se em uma lógica da morte, na exata medida em que represou a paixão pela realidade nos limites de uma paixão pelo pensamento consistente, pela mera identidade abstrata. E a inconsistência lógica representada na “relutância instintiva” Anglo-Americana preferiu ceder à sedução do real esvaziando seus anseios por consistência. Digamos que na Europa Oriental Clu obteve a sua vitória: o homem foi absorvido pelo sistema, e o sistema provocou a destruição do mundo e depois de si mesmo. Mas no mundo livre Tron se interpôs, e o interesse pelo homem real impediu o sistema de alcançar “seu potencial máximo”.11

A tese de Polanyi tem importância especial por ser enraizada na história, mas seu valor se manteria mesmo que ela fosse apenas um experimento mental; ela destaca uma hierarquia na estrutura da racionalidade: Tron deve ser forte o suficiente para derrotar Clu. Em nossos termos: ao contrário do que normalmente se pensa, é o elemento mais incerto, e não o elemento mais certo da racionalidade o que precisa ser dominante. Pois o elemento mais certo, a coerência lógica intrassistêmica, pode facilmente ser posto em contradição com a realidade e produzir sua negação. E o elemento mais incerto, que é a relação concreta com o real, pode ser facilmente ignorado em nome da consistência. A racionalidade se mostra, assim, frágil e sutil; algo em sua constituição faz com que sua fraqueza seja a sua força, e seu orgulho, a sua Nemesis. Como sempre, Chesterton se expressa aqui de modo magistral:

O homem comum sempre foi sadio porque o homem comum sempre foi um místico. Ele aceitou a penumbra. Ele sempre teve um pé na terra e outro num país encantado. Ele sempre se manteve livre para duvidar de seus deuses; mas ao contrário do agnóstico de hoje, livre também para acreditar neles. Ele sempre cuidou mais da verdade do que da coerência. Se via duas verdades que pareciam contradizer-se, ele tomava a duas juntamente com a contradição.12

Trabalhando a partir de um standpoint completamente diferente de Polanyi a Escola de Frankfurt estudou a mesma patologia do pensamento. Max Horkheimer a denominou razão instrumental em uma obra de título surpreendentemente semelhante à de Polanyi: The Eclipse of Reason. A razão instrumental seria a forma pragmática de pensamento que perdeu seus laços críticos com a realidade tornando-se heterônoma, capturada e instrumentalizada por um projeto cultural de dominação do homem e da natureza. No ocidente moderno a razão instrumental atinge o seu clímax em Auschwitz, quando o homem foi totalmente absorvido por uma lógica de morte. Intrassistemicamente a razão instrumental se apresenta impecável e irrefutável; mas em sua relação com a realidade se mostra contraditória e autodestrutiva, insurgindo-se contra a liberdade humana. E é por sua coerência lógica e dogmática que ela se torna refratária à correção crítica e cega ao uso ideológico.13

Não há ratio sem passio; mas a paixão da razão pode ser introvertida ou extrovertida. E isso caracteriza toda contradição performativa: a introversão da paixão epistêmica. Aqui, também, está a “imoralidade” e o “moralismo” da contradição performativa: ela não mais se interessa pelo real, mas se interessa excessivamente por sua própria integridade, girando a liberdade e a paixão sobre si mesma. Ela se torna “libertina” e antinômica, quando o assunto é a relação como o mundo das coisas vivas, mas extremamente “ascética” e até “santarrona” quando o assunto é ir às últimas consequências na busca da coerência com o sistema teórico.

Por isso ela é deontologicamente deficitária e, em um sentido último, irracional. Falta-lhe aquela virtude que permita a abertura humilde diante da alteridade e a proteja da obsessão com a identidade lógica intrassistêmica. E essa falta de virtude torna o pensamento um escravo de si mesmo, Incurvatus in se.

Ainda a Incoerência Performativa: na Política
Como sempre, a história se repete. Charles Taylor tem repetidamente apontado a contradição da liberdade como um dos mais graves problemas da cultura ocidental. Um artigo importante de Taylor a respeito, que vou comentar aqui, é Atomism (Atomismo) – um termo realmente perfeito para sintetizar a discussão.14

Taylor descreve “atomismo” como uma característica das teorias de contrato social e outras cuja pressuposição básica é a visão da sociedade como “em algum sentido constituída por indivíduos para o cumprimento de fins primariamente individuais”.15 A primazia dos direitos individuais se encontra no próprio centro dessa tradição, segundo a qual nenhum indivíduo tem obrigações de pertencimento, mas apenas direitos; o “contrato” é estabelecido para viabilizar a realização dos direitos, de modo que assim obrigações são adquiridas. Autonomia individual é, portanto, a priori, e obrigações comunitárias seriam a posteriori.

Para conferir plausibilidade a essa interpretação dos direitos, o atomismo precisa afirmar algum tipo de autossuficiência do indivíduo16 – chegamos, portanto, a uma determinada visão do Self, e a uma antropologia.

De acordo com Taylor, atribuímos direitos aos homens porque eles exibem certas capacidades dignas de respeito, sendo na verdade impossível racionalmente atribuir esses direitos desconsiderando completamente essas capacidades. Ele toma como exemplo particular a capacidade da liberdade, e levanta a questão:

Se não podemos atribuir direitos naturais sem afirmar a dignidade de certas capacidades humanas, e se esta afirmação tem outras consequências normativas (ou seja, que deveríamos estimular e nutrir essas capacidades em nós mesmos e em outros), então qualquer prova de que essas capacidades só podem se desenvolver em sociedade ou em uma sociedade de certo tipo é uma prova de que devemos pertencer ou sustentar a sociedade ou este tipo de sociedade. Mas então […] a afirmação da prioridade dos direitos será impossível; pois afirmar os direitos em questão é afirmar as capacidades e, uma vez que a tese social seja verdadeira no que tange a essas capacidades, implicará para nós uma obrigação de pertencer.17

Nesse caso, portanto, as obrigações para com a sociedade não seriam o resultado adicional de um contrato, mas obrigações inerentes à existência humana completa. O contrato político não funda as obrigações morais; só os ingênuos tomarão a constituição como fundamento para o nexo social.

Taylor prossegue para mostrar que essa capacidade (a liberdade) é completamente dependente de uma sociedade complexa para emergir e se manter. A interpretação libertária (de que não se pode julgar moralmente a liberdade individual) da liberdade só pode ser contraditória, portanto, na medida em que torna possível a contradição e a destruição da sociedade que habilita o homem a ter a capacidade da liberdade. A mera afirmação de um direito envolve em si mesma o reconhecimento de uma obrigação de pertencer.

Agora, um ponto muito importante: a tradição Hobbesiana de descrever o estado de natureza como um impulso para a realização de desejos (um nivelamento das capacidades humanas ao nível de outros seres sencientes) acaba por gerar uma interpretação dos direitos individuais como o direito de satisfazer desejos e necessidades afetivas, e também a ilusão de que até as capacidades que dependem da vida social complexa (ao contrário das capacidades biológicas) são inatas e geram direitos. Isso nos ajuda a entender muito do que é feito hoje em termos de direitos humanos. No campo da legislação sobre sexualidade, por exemplo. Se você tem um desejo, ou uma necessidade afetiva, então tem um direito.

Depois de uma discussão mais detalhada sobre a dependência da liberdade em relação à sociedade, Taylor responde à questão:

Em outras palavras, o indivíduo livre ou o agente moral autônomo pode apenas adquirir e manter a sua identidade em certo tipo de cultura, com algumas facetas e atividades a que me referi brevemente. Mas essas e outras da mesma importância não vêm à existência espontaneamente a cada instante sucessivo. Elas são mantidas por instituições e associações que requerem estabilidade e continuidade e, frequentemente, também, apoio da sociedade como um todo […] O meu argumento é de que o indivíduo livre do Ocidente apenas é o que é em virtude de toda a sociedade e da civilização que o trouxe à existência e que o nutre […].18  O ponto crucial aqui é este: desde que o indivíduo livre pode apenas manter a sua identidade no interior de uma sociedade/cultura de certo tipo, ele precisa se preocupar com a forma dessa sociedade/cultura como um todo.19

Taylor não poderia ser mais claro. Muito simplesmente, atomismo é impossível. Não há um self autossuficiente, nem há direitos que se apliquem atomisticamente. O eu individual forte depende de uma comunidade forte, e os direitos individuais emergem inelutavelmente conectados a obrigações comunitárias, a deveres de pertencimento e responsabilidade moral, a valores. Nenhum desejo ou alegada necessidade afetiva pode ser alienado de seu significado comunitário antes de ser juridicamente considerado.

Consequentemente, não se podem criar direitos legais com base em ideais utópicos de liberdade humana, sem considerar cuidadosamente a relação dos indivíduos com as comunidades e sem atentar para os laços pessoais e morais que sustentam os indivíduos e os próprios direitos.

No fundo, bem na base de tudo, entra a questão da identidade do indivíduo, que Taylor coloca muito bem:

A tese esboçada acima sobre as condições sociais da liberdade é baseada na noção, em primeiro lugar, de que a liberdade desenvolvida requer certa compreensão do self, na qual as aspirações à autonomia se tornam concebíveis; e, em segundo lugar, que essa autocompreensão não é alguma coisa que possamos sustentar por nós mesmos, mas que nossa identidade é sempre parcialmente definida na conversação com outros ou través da compreensão comum que subjaz às práticas da nossa sociedade. A tese é de que a identidade do indivíduo autônomo, autodeterminado, requer uma matriz social que, através de uma série de práticas reconheça o direito à decisão autônoma e que clame pela voz individual na deliberação sobre a ação pública. O debate entre atomistas e seus oponentes vai bem fundo, portanto; ele toca a natureza da liberdade e, além disso, o que significa ser um sujeito humano; o que é a identidade humana, e como ela é definida e sustentada […].20

Essa última observação de Taylor expõe a própria ossatura do problema: a identidade humana e a natureza da liberdade. É evidente que a solução do debate entre atomistas e comunitaristas não reside no grau de coerência interna de cada proposta, mas em suas pressuposições sobre a natureza da realidade e sobre a posição do homem no mundo. A relação entre o pensamento e o ser que pensa é incontornável, mas ao mesmo tempo insolúvel de um ponto de vista puramente teórico. E talvez seja realmente impossível apresentar um argumento rigoroso, incorrigível e assim definitivo para demonstrar qual das posições é “correta”.

Taylor nos oferece, no entanto, uma engenhosa solução provisória: se o discurso atomista se apoia na liberdade e deseja preservá-la, é urgente que esse discurso torne-se mais sofisticado considerando com genuíno interesse a própria genealogia da liberdade. Em outros termos, o atomista precisa circunscrever a consistência e o valor de prova de seu próprio arrazoado tendo em mente que as liberdades individuais não emergiram do vácuo nem foram derivadas de um céu platônico de universais, mas foram literalmente cultivadas na estufa de um sistema cultural particular. O que importa não é apenas a árvore com seus frutos; importam as raízes e acima de tudo, o solo.

A solução de Taylor é irmã mais velha da nossa proposta. Mesmo que não seja possível provar qual forma de racionalidade é a “verdadeira”, talvez seja possível detectar quais delas cumprem requisitos mínimos de plausibilidade. E o primeiro deles é não destruir suas condições externas de possibilidade, que existem no delicado equilíbrio de norma lógica e liberdade humana.

Em nossos termos: o discurso político sobre direitos individuais não deve colocar sua consistência interna acima de suas condições de possibilidade. E se ele o faz, movendo-se sem restrições na direção de um aumento no grau de atomização social capaz de por em risco as instituições, valores, crenças e hábitos sociais que fundaram a própria noção de direitos individuais, ele certamente se converterá em mais um caso de contradição performativa.

Mais Incoerências Performativas: no Pensamento Teórico
Contradições performáticas não são privilégio da política, naturalmente. De fato até mesmo essas são devedoras da academia, a grande fábrica no interior da qual centenas delas, de todas as formas e tamanhos, são produzidas anualmente e despachadas para o consumo intelectual. Roy Clouser explorou várias delas em seu clássico estudo sobre a alegada neutralidade religiosa do pensamento teórico, nos campos da matemática, da física e da psicologia.21

Segundo suas explorações, o pensamento teórico sempre envolve a abstração de um aspecto ou outro da realidade, e a distinção de tipos distintos de propriedades. É assim, por exemplo, que nos tornamos capazes de distinguir, para fins de investigação científica, entre propriedades físicas, químicas, ou biológicas. Além disso, o pensamento teórico envolve a distinção entre as categorias lógicas que aplicamos na construção teórica e os dados da experiência que são organizados por meio delas. Daí falarmos em explicações bio-lógicas, ou socio-lógicas, e assim por diante.

Nada de muito extraordinário ou inovador até esse ponto. Mas aqui entra uma consideração bastante útil: é que o processo de aplicar distinções analíticas ao mundo concreto para distinguir propriedades, aspectos, momentos, etc., procedendo em seguida a ressínteses lógicas (como a “bio-logia”) desnatura a nossa experiência do real. É como separar a nata do soro do leite: em um sentido é leite, mas em outro já não é mais. Clouser ilustra isso com a imagem do termômetro:

Se quisermos então dizer que o termômetro nos diz qual a temperatura da água antes de o inserirmos, teremos ignorado o fato de que a atividade que desempenhamos para obter aquela informação alterou a informação. O mesmo se dá com a abstração. Podemos isolar um aspecto das coisas e exibi-lo, distinguindo-o agudamente de outros aspectos a fim de examiná-lo de perto. Mas o fato de podermos confinar nossa atenção a ele dessa forma jamais justificará a conclusão de que ele é realmente capaz de existir independentemente de outros aspectos.22

Essa consideração é importante porque boa parte das contradições performativas nasce desse procedimento, de absolutizar uma descrição abstrata de um ou outro aspecto da experiência, elevando-o em seguida à condição de origem ou causa das propriedades de outros aspectos.

Esse seria o problema de fundo do materialismo. A absolutização do aspecto material das coisas, tratado como o fundo originário e a causa de toda a realidade temporal, destrói a inteligibilidade dos aspectos não-materiais na exata medida em que dissolve sua diferença em uma identidade última; pois em não havendo genuínas diferenças qualitativas no mundo real, qual o sentido de estabelecer distinções analíticas? E a própria noção de norma lógica torna-se ininteligível se tentamos explica-la em termos materiais, na ânsia de evitar um discurso “dualista”, como se alega. Pois normas lógicas universais (1) só podem ser formuladas se forem validamente distinguidas de tudo o que é não-lógico, (2) só podem ser distinguidas por meio de si mesmas (ou seja, por meio de distinções lógico-analíticas) e, acima de tudo, (3) só tem significado como deveres epistêmicos de um agente intelectual livre.

Qualquer tentativa de reduzir toda a realidade ao aspecto material implicará a negação da validade da análise lógica empregada na formulação de regras lógicas, da validade da própria identificação do aspecto material, e da ideia de liberdade humana que fundamenta a deontologia da racionalidade.

Outras formas de absolutização produzem os mesmos resultados. No historicismo, por exemplo, há uma absorção de todos os aspectos da experiência humana e de todas as teorias sobre o homem no recipiente hermético do condicionamento histórico-cultural, com a implicação de que é impossível estabelecer aproximações ou distinções entre culturas e situações históricas por meio de regras transistóricas, transculturais ou transtradicionais. Mas nesse caso a teoria historicista não é falsificada apenas por ser autorreferencialmente incoerente23, mas porque a própria distinção lógica entre o aspecto histórico-formativo da experiência humana e os outros aspectos (como o biológico, o lógico e o sociológico) perde o valor normativo e a inteligibilidade, tornando impossível justificar a distinção entre processos históricos e outros processos.

Efeitos semelhantes são produzidos por outras formas de absolutização/reducionismo, como o psicologismo de Berkeley, o materialismo dialético de Marx, ou o “programa-forte” da sociologia do conhecimento. Como no caso do naturalismo, mais do que contradições lógicas, o “nada-mais-ismo24  gera contradições entre as teorias e a própria atividade teórica que lhes dá origem. A atividade de abstração que gera a teoria é negada pela teoria.

Mas essas absolutizações não são inescapáveis, desde que a mera possibilidade de distinção entre aspectos e tipos de propriedades não constitui de forma alguma demonstração de existência independente. Na verdade, como o mostra a ilustração do termômetro, essas absolutizações são inerentemente suspeitas, uma vez que a abstração teórica desnatura a unidade da experiência. Com toda a sua utilidade, a abstração não deve jamais ser abusada. Lembremo-nos aqui do pharmakon grego: a distinção entre o remédio e o veneno está na dose.

Clouser enuncia de forma límpida o critério para nos protegermos desse tipo de contradição:

[…] uma teoria deve ser compatível com qualquer estado que precise ser verdadeiro sobre aquele que pensa, ou com qualquer atividade que o pensador precise desempenhar a fim de formular as reivindicações de sua teoria. Tomando emprestado e refundindo uma velha expressão Marxista, uma teoria deve ser compatível com “os meios de sua produção”.25

Uma Última Incoerência Performativa: O Naturalismo Metafísico
No segundo volume de sua trilogia epistemológica,26  Alvin Plantinga apresentou de forma completa a sua objeção evolucionária contra o naturalismo metafísico. Basicamente, a objeção consiste em mostrar que a conjunção de uma visão evolucionária do desenvolvimento das nossas capacidades cognitivas com a visão naturalista de que não haveria nenhuma realidade além da matéria, produz uma visão da evolução como um processo completamente cego, “interessado” apenas na sobrevivência (de indivíduos, espécies, genes ou genótipos). Essa visão combinada implicaria na destruição da confiabilidade das nossas faculdades cognitivas e, consequentemente, da confiabilidade das nossas crenças sobre o mundo.

Tal conclusão pessimista se deve à constatação de que a capacidade de conhecer a “verdade” sobre o mundo não é de nenhum modo necessária à sobrevivência, não havendo nenhuma razão para que a evolução dotasse o homem dessa capacidade, desde que o problema da sobrevivência fosse eficazmente solucionado. Em tese, a cognição poderia ser simplesmente um epifenômeno do processo evolucionário, e o critério para a criação de “conteúdos” para as nossas crenças poderia ser não a “veracidade”, mas a utilidade para a sobrevivência.

Nesse caso, no entanto, o próprio naturalismo metafísico se tornaria não apenas inverificável mas possivelmente falso, já que não haveria correlação necessária entre “sobrevivência” da espécie humana e alegadas “crenças verdadeiras” sobre biologia, história, ou cosmologia. E isso tornaria irracional a própria crença no naturalismo metafísico. Plantinga mostra que o problema já havia sido detectado por ninguém menos que o próprio Charles Darwin:

[em mim] a dúvida sempre se ergue, se as convicções da mente humana, as quais se desenvolveram da mente dos animais inferiores, teriam qualquer valor ou um mínimo de confiabilidade. Alguém confiaria nas convicções da mente de um macaco, se é que há convicções em tal mente?27

Plantinga explora nos menores detalhes os diversos aspectos do argumento, e uma infinidade de possíveis respostas naturalistas à sua crítica, e por fim conclui que o naturalismo tende quase irresistivelmente a produzir um ceticismo em relação às nossas capacidades cognitivas, ao passo que o teísmo não tem em seu sistema noético elementos que inclinem o indivíduo a tal tipo de ceticismo. E esse ceticismo enfraquece ou destrói as condições de plausibilidade não apenas da ciência, mas do próprio naturalismo.

Isso não constituiria, é claro, uma prova da falsidade do naturalismo e muito menos da veracidade do teísmo; mas certamente demonstraria a irracionalidade do naturalismo nos termos que descrevemos nesse artigo: como uma posição auto-performativamente incoerente. Há uma contradição entre a visão de racionalidade decorrente da teoria naturalista e a visão de racionalidade efetivamente empregada na construção da teoria naturalista. O que nos leva a uma surpreendente conclusão:

[…] a epistemologia naturalista28  floresce melhor no jardim da metafísica sobrenaturalista. A epistemologia naturalista associada à metafísica naturalista conduz, via evolução, ao ceticismo ou à violação dos cânones da racionalidade; mas associada ao teísmo ela não o faz. A epistemologia naturalista deveria portanto preferir o teísmo ao naturalismo metafísico.29

Como bem explica Ernest Sosa, o que Plantinga faz é aplicar ao naturalismo a lógica dos mestres da suspeita. Nietzsche, Freud e Marx atingiram as fontes da crença religiosa: Nietzsche a denunciou como estratégia de domínio do fraco sobre o forte; Freud a reduziu ao desejo de sentir conforto psíquico, e Marx a um epifenômeno do modo de produção econômico e um ópio para aliviar as massas em seu estado de alienação. 30 O problema é que cada uma dessas críticas não produz apenas a destruição da crença religiosa, mas a negação das noções de norma universal e de liberdade humana. Ora, seria uma questão de tempo até que o caráter auto-referencialmente incoerente dessas formas de “suspeita” fosse trazido à luz. E isso é o que Plantinga faz, focalizando, no entanto, o naturalismo metafísico. Mas em termos mais amplos, um teísta provavelmente não precisará se preocupar muito (num sentido apologético) com as versões hard da suspeita genealogista, psicanalítica ou dialética, desde que elas não dão conta de si mesmas.31

Os Modernos e suas Ansiedades Epistêmicas
Talvez seja útil arriscar um palpite sobre a psicologia da introversão do pensamento teórico. Salta aos olhos, antes de tudo, seu caráter megalomaníaco: construir sistemas perfeitos ou completos. Curiosamente, esse mesmo caráter vem acompanhado de uma pulsão de autodestruição: levaremos o sistema ao potencial máximo, mesmo que isso destrua a inteligibilidade das noções de bem e mal, racionalidade e irracionalidade, realidade e ilusão, e a própria liberdade humana.

O diagnóstico preliminar dessa patologia sugere fortemente a imagem de Narciso. O mito de Narciso é uma descrição da condição existencial do homem “encurvado sobre si mesmo”. No mito Narciso está em conflito com Eros (que representa o amor erótico, o desejo de união com o outro) e é finalmente julgado por sua autossuficiência com a autodestruição, aprisionado pela introversão do seu amor. Em outra versão do mito, o julgamento é executado por Nemesis, a vingadora da Hybris, do orgulho do homem que tenta vencer a finitude.

A psicanálise de Freud empregou o mito criativamente para iluminar e ilustrar algo dessa dinâmica na personalidade humana. O narcisista patológico não pode aceitar que o mundo (e a mãe) não seja uma extensão de si mesmo; ele reprime essa descoberta na tenra infância. Como resultado, ele ao mesmo tempo depende do calor da mãe, mas odeia a si e ao mundo por essa dependência. Daí o seu movimento duplo, contraditório: ele deseja aumentar seu controle sobre o mundo, por meio de manipulações e ilusões, e deseja expandir sua experiência de prazer usando o “corpo” do outro como se não pertencesse a outro Self. Na medida em que ele se torna mais perfeccionista e autocentrado, sua relação com o mundo se torna mais manipulativa e imoral.

A partir do mito e da psicanálise a noção de narcisismo mostrou-se frutífera como instrumento de análise cultural, como Christopher Lasch mostrou de forma magistral.32  Lasch destacou que cada sociedade tentará resolver a “crise universal da infância”, o trauma da separação, o medo e a dor da competição de um modo diferente, mas todas, enfim, precisarão fazer algo a respeito.33  Em nossa tradução existencial do problema, o trauma infantil é exatamente o evento patogênico no qual o medo e o ressentimento se instalam, com graus variados, na alma humana, em razão do encontro com a finitude. Mesmo aqueles indivíduos que não se tornam narcisistas clínicos precisam lidar com o problema existencial que é despertado naquele evento, e podem desenvolver formas amenas de narcisismo. O modo como um sistema cultural lida com essa condição é a um só tempo uma espiritualidade e uma terapêutica. Mas se uma cultura “decide”, por assim dizer, cultivar essa condição, ao invés de trata-la, estaremos justificados em considera-la doente.

Não é difícil perceber sinais desse cultivo doentio na história do pensamento moderno. A mente narcísica foi inaugurada pelo giro antropocêntrico do renascimento, e o processo de constituição do ideal moderno de personalidade livre com seu polo dialético, o ideal naturalista de ciência, já havia sido detectado e descrito por Kant como um dualismo de Liberdade e Natureza, posteriormente explorado por diversos intérpretes da modernidade secular, como Friedrich Schelling. Herman Dooyeweerd descreveu com detalhes as raízes espirituais desse dualismo,34 e Francis Schaeffer, o fundador de L’Abri, popularizou essa explanação através de sua obra Escape from Reason.35  Segundo Dooyeweerd, esse dualismo seria insolúvel por envolver dois falsos absolutos: a liberdade arbitrária do homem e a fé incondicional no controle tecnocientífico da natureza e do próprio homem.

O primeiro fruto do narcisismo secular emergiu com René Descartes, não por acaso o primeiro filósofo moderno no sentido próprio. No projeto Cartesiano do Cogito,36 o conhecimento do mundo é negado até ser devidamente reconstruído artificialmente, More Geometrico, e essa reconstrução tem o seu ponto de partida na Res Cogitans, o eu-pensante, que é exatamente a imagem abstrata do eu verdadeiro no interior do sistema.

Em Descartes ocorreu também uma importantíssima transformação ideológica, que passou quase despercebida mas condicionou o espírito da modernidade: a passagem do externalismo para o internalismo epistemológico.37  O externalismo epistemológico é a posição segundo a qual o conhecimento válido não depende necessariamente da consciência do sujeito. Para o externalista, a maior parte das crenças em nosso sistema noético é constituída de forma natural ou “automática” e involuntária, havendo pouco controle do sujeito nesse processo. Assim se dá, por exemplo, com crenças baseadas na memória, em percepções sensoriais, ou na intuição numérica. Havendo bases para uma crença, ela pode ser considerada conhecimento, mesmo que a justificação desse conhecimento seja desconhecida pelo sujeito.

Já para o internalista, uma crença só pode ser considerada conhecimento quando ela não apenas tem bases suficientes, mas sua justificação é conhecida pelo sujeito cognoscente. Ou seja: a razão da crença deve ser interna à consciência para que a crença seja epistemizada, tornando-se mais do que mera opinião. Colocando toda a responsabilidade pela produção do conhecimento nas mãos do sujeito, o internalismo “desnaturalizou” a epistemologia, tornando o conhecimento uma realização humana.

A história da queda do internalismo é um interessantíssimo capítulo da novela da epistemologia contemporânea, que não podemos relatar aqui por razões de espaço; basta mencionar, talvez, que o próprio critério internalista de conhecimento foi desmascarado quando falhou em justificar a si mesmo como conhecimento, tornando assim irracional a própria crença no internalismo. Esse capítulo da novela é normalmente intitulado como “o Colapso do Fundacionalismo Clássico”.

Mas agora que os arquivos do internalismo estão sendo devassados, novas suspeitas se erguem em torno dele. E uma delas é muito óbvia: que tipo de motivação espiritual poderia estar por trás desse movimento ambicioso, de fundamentar todo o conhecimento no Self e, mais ainda, de obter controle total sobre os processos de epistemização, negando o status de “conhecimento” a todas as crenças formadas fora do controle consciente do Self, tais como crenças baseadas no testemunho, na tradição, na experiência religiosa, ou na estrutura da linguagem, ou quaisquer delas que careçam de “prova”?

Qual seria a raiz de tamanha ansiedade epistêmica? Não transparece aqui uma tremenda insegurança sobre o mundo externo, e uma dificuldade de aceitar a própria finitude, compensando-a com uma “ciência total”? Não é visível, mal disfarçado por trás desse disciplinadíssimo ascetismo epistemológico que duvida de quase tudo e acaba mergulhado em um cinismo generalizado, um pavor reprimido e um orgulho perfeccionista?

Há uma resposta bastante plausível diante da evidência: Descartes é Kevin Flynn, e a racionalidade moderna é Clu, sua imagem artificial. E a confissão de Flynn, “controle, ordem, perfeição… eu vivia em um mundo de espelhos”, denuncia a fonte narcísica de sua antiga ilusão.

A ruptura de sujeito e objeto efetivada por Descartes (que levou a dúvida metódica até o ponto de duvidar da existência do corpo físico, culminando com a separação entre res cogitans, a “coisa pensante” e res extensa, a “coisa extensa” ou corpo) jamais foi remendada, nem com seu deus ex machina metafísico, que deveria garantir a ligação mente-corpo e a confiabilidade dos dados sensoriais, nem na filosofia posterior, que oscilava entre o empirismo (privilegiando os dados dos sentidos) e o racionalismo (privilegiando as categorias da razão), nem com Kant, no auge do iluminismo, cuja teoria do conhecimento une experiência empírica e categorias da razão à custa de desistir da possibilidade de conhecimento do mundo exterior, das coisas como seriam “em si mesmas” (Ding an Sich). Como resultado, chegamos à condição pós-moderna, quando não apenas as noções de verdade, de realidade, e de normas universais foi dissolvida, mas até as noções de Self unificado e de liberdade humana foram rejeitadas.

De certo modo, Descartes e seus seguidores representam a Hybris da modernidade; e Nietzsche com seus seguidores – até Foucault e o pós-estruturalismo – representam a sua Nemesis. No princípio, a confiança no dogma da autonomia da razão, o “eu grandioso”, a afirmação da liberdade, a vida em um “mundo de espelhos”; no final, da dissolução do Self, a destruição dos fundamentos filosóficos da liberdade, e negação da Verdade, e o mergulho hedonista em busca do “calor da mãe”.

O movimento do teocentrismo para o antropocentrismo moderno certamente tem relação com a ascensão e a queda da racionalidade moderna. David Erhenfeld disse a esse respeito o que poucos ousam admitir:

Pondo de lado a noção de dignidade e valor humanos, a qual faz parte de muitas religiões, chegamos de imediato ao âmago da religião do humanismo: uma fé suprema na razão humana – sua capacidade para enfrentar e resolver os muitos problemas com que o ser humano se defronta, assim como para reordenar o mundo da Natureza e reformular os assuntos de homens e mulheres de modo que a vida humana prospere. Por conseguinte, assim como o humanismo está comprometido com a fé incondicional no poder da razão, também rejeita outras afirmações de poder, inclusive o poder de Deus, o poder de forças sobrenaturais e até o poder não dirigido da Natureza associado com o cego acaso. Os dois primeiros não existem, de acordo com o humanismo; o último pode, com algum esforço, ser dominado. Como a inteligência humana é a chave para o êxito humano, a principal tarefa dos humanistas é afirmar o seu poder e proteger as suas prerrogativas toda vez que são questionadas ou desafiadas.38

Na gênese da ansiedade epistemológica moderna está a recusa da crença em Deus como fundamento para a identidade humana em nome de uma concepção arbitrária da liberdade,39 e a tentativa de compensar essa perda por meio da inflação das prerrogativas da razão humana. Essa inflação megalomaníaca produziu uma corrida pelo controle científico absoluto do mundo e do próprio homem, e tal controle não poderia excluir os processos cognitivos. Assim, o ideal moderno de ciência engendrou um esforço colossal de ascese cognitva, na luta determinada pela “purgação” da mente ocidental de toda influência da religião cristã e de crenças “sem fundamento científico”.

A ascese cognitiva é o lado epistemológico do intenso investimento narcísico de autoafirmação secular que geraria a perda de contato significativo com o mundo externo. Essa perda de contato com a realidade foi compensada, no lado oposto, por um intenso mergulho sensorial no hedonismo, justificado de forma libertária, antinomista e individualista. A tentativa de, por assim dizer, expandir a “superfície de contato” com o real (o “calor da mãe”) se expressa tardiamente na liberação sexual e sua radicalização na cultura Queer, na criação do universo virtual paralelo e a recriação das identidades nesse universo, no desenvolvimento da sociedade do consumo e do entretenimento, na evolução das tecnologias da imagem (televisores de alta definição, 3D, etc), na popularização do esforço obsessivo pela captura de momentos fugidios através da fotografia-de-celular, no crescimento e diversificação do turismo, na tese dos direitos afetivos. O fato de todos esses fenômenos se apresentarem internamente conectados à atomização tayloriana da sociedade contemporânea testifica cabalmente de uma sensação reprimida de perda da realidade. Mas do que isso, de uma relação irracional de negação espiritual e afirmação epidérmica da realidade.

O quadro que emerge dessa análise é o de uma estranha forma de insanidade cultural. O solipsismo nunca foi considerado uma opção equilibrada ou interessante para as pessoas, mas essa forma intensa e onipresente que ele assumiu nos faz pensar numa doença da mente ocidental; uma obsessão neurótica pela assepsia completa de tradições e crenças não-científicas, de compromissos morais e de convicções espirituais, como alguém que lava as próprias mãos repetidamente até feri-las; não seria essa a famosa loucura Chestertoniana?

Se você discutir com um louco, é extremamente provável que leve a pior; pois sob muitos aspectos a mente dele se move muito mais rápido por não se atrapalhar com coisas que costumam acompanhar o bom juízo. Ele não é embaraçado pelo senso de humor ou pela caridade, ou pelas tolas certezas da experiência. Ele é muito mais lógico por perder certos afetos da sanidade. De fato, a explicação comum para a insanidade nesse respeito é enganadora. O louco não é um homem que perdeu a razão. O louco é um homem que perdeu tudo menos a razão.40

Mas enfim, a aporia do mundo contemporâneo não é a Nemesis do Self, nem da Realidade, nem da Verdade, em si mesmos. Ela é antes a Nemesis do “Self” moderno, da “realidade” moderna, e dos “universais” modernos. Há um sentido em que teístas clássicos, como os cristãos evangélicos, por exemplo, nada tem que ver com isso. Parte da dificuldade que muitas pessoas secularizadas têm hoje, para compreender os cristãos, reside exatamente aí. É que elas estão decepcionadas com as versões secularizadas do Self, da liberdade e da verdade, e por costume, supõe que os cristãos estão dizendo a mesma coisa quando falam em personalidade, liberdade e realidade. Mas os cristãos mais coerentes estão operando a partir de uma cosmovisão paramoderna, em cujo horizonte não existe e talvez jamais venha a existir uma posmodernidade. A presente posmodernidade é a posmodernidade dos modernos.

É o Teísmo Performativamente Incoerente?
Em princípio não há porque erguer essa censura contra o teísmo. Em primeiro lugar, ele é compatível com a ideia de liberdade humana e com os deveres tipicamente relacionados ao exercício do pensamento teórico, bem como com a visão de que há uma realidade à qual o homem precisa responder. Na imagem teísta de mundo o Self aparece extremamente poroso, sem a opacidade hermética do Self moderno; trata-se de uma percepção de mundo “ex-cêntrica”, no sentido de ser voltada para fora, para Deus, para o outro e para o mundo. Dificilmente um teísta completamente realizado se sentirá atraído por epistemologias introvertidas, centradas na coerência intrassistêmica.41

Em segundo lugar, o teísmo tem recursos para evitar os movimentos de absolutização e reducionismo teórico exemplificados no materialismo, no historicismo e em todos os “nada-mais-ismos” que florescem no universo acadêmico contemporâneo. O que ocorre em cada um desses casos é o deslocamento das funções divinas para um determinado aspecto da realidade abstraído de sua unidade simultânea com os aspectos restantes e convertido em fundamento metafísico do real.42

A transferência teísta do absoluto para “fora” por assim dizer, do tempo, alivia a necessidade de um ponto de síntese imanente. De certo modo ela democratiza a nossa visão da realidade, interditando a emergência de candidatos temporais ao trono do Eterno. Por implicação isso impede que a liberdade do homem e do pensamento sejam reduzidas e negadas sob um princípio metafísico impessoal como a matéria, a história, a psicologia ou o modo de produção econômica. Mantendo a liberdade e a paixão pela realidade, o teísmo tem recursos poderosos para proteger a coerência ontológica do pensamento.

Em terceiro lugar, e particularmente, o teísmo não implica sua negação, como é o caso do naturalismo metafísico segundo foi apontado na objeção de Alvin Plantinga ao naturalismo. E isso não vale apenas para o eventual teísta criacionista, que nega tanto a metafísica materialista quanto a evolução biológica; pois um teísta que admita a síntese evolutiva contemporânea, sem adotar sua gratuita associação ao naturalismo metafísico, pode aceitar perfeitamente que o aparelho cognitivo humano tenha sido tanto fruto da vontade divina quanto de um processo evolucionário.

Às vezes se alega que mesmo não ferindo necessariamente nenhuma condição para a coerência ontológica, o teísmo poderia ser falsificado caso apresentasse uma incoerência lógica; e que tais incoerências existem de fato, como se vê no problema do mal ou em doutrinas como a “Trindade” ou “duas naturezas de Cristo”, no teísmo cristão.
Mas essa objeção é imediatamente qualificada pelo fato de que a ausência de conhecimento exaustivo da realidade torna sempre irracional elevar a consistência lógica sobre a consistência ontológica. Não importa a força de Clu, ele ainda é menor que Flynn e jamais produzirá a “perfeição”. A perfeição sistêmica é inalcançável e jamais pode ser presumida.

E, como Chesterton observou, o convívio com paradoxos pode ser um bom sinal de sanidade mental.43

Isso produz importantes consequências: qualquer argumento plausível pela racionalidade da crença religiosa capaz de mostrar a normalidade de seu processo de constituição na consciência do crente (ou seja, por um argumento externalista) pode tornar justificável a suspensão ou qualificação do valor refutatório de incoerências intrassistêmicas (que nesse caso podem, hipoteticamente, serem consideradas circunstanciais ou apenas aparentes, decorrentes de erros nas premissas ou de falta de informação suficiente). Em outras palavras: se o teísmo for auto-performativamente coerente, a incoerência intrassistêmica não será necessariamente suficiente para refutá-lo, exatamente como não será necessariamente suficiente para refutar nenhuma teoria, seja ela religiosa, filosófica ou científica.

Dissemos “necessariamente”, porque em alguns casos a inconsistência lógica pode ser demonstrada de forma conclusiva e incorrigível, e nesse caso a coerência performática é inútil. Por exemplo: a afirmação de que 2+2=5 é matemática e logicamente falsa, embora não implique em nenhum momento uma contradição performativa. Caso se demonstre no teísmo a existência de inconsistências lógicas incorrigivelmente conclusivas, as partes da doutrina teísta que apresentam tais inconsistências deverão ser eliminadas ou alteradas; e se não puderem ser alteradas sem destruir a crença teísta, tal implicará uma refutação da racionalidade da crença teísta.

Em reposta a isso precisamos destacar que há um conjunto de paradoxos na crença teísta que não podem ser classificados como inconsistências lógicas conclusivas: esse conjunto inclui todas as crenças que descrevem a relação de Deus, em sua infinitude, com o mundo finito. Esses paradoxos exprimem uma limitação na linguagem teológica que é perfeitamente previsível, se estamos realmente falando sobre as relações de um Deus transcendente e eterno com o cosmo temporal, e não entre um “super-homem” e o mundo. A diferença ontológica Criador-criatura é uma descontinuidade do Ser que proíbe o recurso a uma categoria metafísica única para abarcar ambos; não é possível, portanto, ascender continuamente da finitude para a infinitude por meio de uma cadeia de elos lógicos, como se todo o terreno entre ambos pudesse ser percorrido “a pé”. Não há pontes nesse rio; para atravessá-lo, é necessário aguardar o barqueiro.

Alguém pode retrucar que tal ressalva cria privilégios especiais para o teísmo que não foram igualmente concedidos, por exemplo, ao naturalismo metafísico; e que tal exceção injusta se destinaria a imunizar a posição teísta e proteger suas “contradições”.

Mas isso é obviamente um problema interno ao naturalismo metafísico que o teísmo desconhece. Pois é o naturalismo quem priva a si mesmo de uma descontinuidade no Ser, afirmando que tudo o que existe pode ser percorrido ponta a ponta de lógica em lógica, através do princípio da identidade; que o cosmo é “tudo o que existiu, existe e existirá” (Carl Sagan). Uma vez que o teísmo não deseja, nem precisa, nem invocou sobre si essa obrigação,44 pois tem seu fundamento no dualismo Criador-criatura, ele não precisa de forma alguma explicar seus paradoxos essenciais da mesma forma que o ateísta ou secularista tem obrigação de fazer. Afinal, como diz a sabedoria popular, cada homem tem a mulher que merece.45

É o Secularismo Performativamente Incoerente?

Não necessariamente. Vamos considerar o caso mais extremo do secularismo representado pelo ateísmo. A mera negação da existência de Deus, ou de deuses, não viola nem o critério da coerência lógica, nem o critério da coerência ontológica. O ateísta ainda pode afirmar a existência do mundo externo, a liberdade do pensamento, a existência de normas lógicas aguardando positivação pelo homem, a natureza simultaneamente unificada e diversificada da realidade e assim por diante, e tentar construir razões para todas essas coisas a partir de pressupostos ateístas.

Ou quase. Pois o problema com a racionalidade do ateísta não se encontra no que ele nega, mas no que ele afirma. Não há irracionalidade prima facie na negação da existência de deuses. Mas nenhum ateísta fundamenta seu sistema de crenças em negações (ainda que se iluda a respeito disso); é mister compreender as suas pressuposições e o que realiza, em seu sistema, o papel que os deuses realizam na “religião”.46

O que ocorre é que, na ausência de um absoluto transcendente, o ateísta precisará organizar seu sistema de crenças de forma a explicar a realidade sem desrespeitar os critérios de coerência lógica e coerência ontológica, mas buscando sempre um absoluto imanente, um ponto de integração dentro do tempo capaz de dar sentido à unidade-na-pluralidade da experiência. De fato isso é exatamente o que aconteceu a partir do giro antropocêntrico/narcísico da modernidade.

O ateísta pode tentar resistir a essa operação, para evitar que a função divina de Arché, ou seja, de fundamento originante da realidade, seja transferida para outro objeto, o qual se tornaria, em termos teístas, um ídolo. Mas nesse caso ele deverá, por exemplo, abandonar o nada-mais-ismo em todas as suas formas, e isso incluiria particularmente o naturalismo metafísico.

Uma possível solução para o ateísta poderia ser aderir a uma visão religiosa niilista ou parcialmente niilista, como o Budismo Theravada. Isso trará algumas consequências, no entanto. Uma delas será que a diversidade da experiência não poderá ser considerada real, assim como a subjetividade individual. Nesse caso mais extremo, os cânones ocidentais de racionalidade tornar-se-ão relativos e inaplicáveis como argumentos para a negação da existência de Deus. E isso destruiria as bases intelectuais para qualquer tipo de “militância ateísta”.

Talvez seja possível um ateísmo capaz de eliminar não apenas a crença em deuses, mas a própria noção de divindade, impedindo a dispersão das funções divinas entre ideias, instituições e fenômenos temporais, e eliminando completamente de seu universo todos os substitutos potenciais da divindade. E talvez seja possível ao ateísmo manter coerentemente uma visão da liberdade humana que seja suficientemente elevada para preservar a coerência ontológica e evitar contradições performáticas. Esse ateísmo vencerá a introversão intrassistêmica do pensamento mantendo uma relação sadia com a plenitude da experiência do homem e preservando a transcendência do humano em relação aos produtos abstratos do pensamento teórico.

Esse não é o caso, no entanto, do naturalismo metafísico, nem de seus parentes mais próximos como o materialismo dialético, as diversas formas de historicismo e perspectivismo, ou o psicologismo freudiano em sua forma, digamos, ortodoxa. Até o momento, as hipóteses metafísicas e/ou antropológicas tipicamente empregadas pelos ateístas e secularistas em geral continuam reproduzindo todos os conhecidos efeitos de negação involuntária da liberdade humana e da confiabilidade do nosso aparelho cognitivo e reflexivo. Em nome da coerência radical com uma ou outra teoria reducionista, oculta-se invariavelmente essa patologia da razão, a introversão do pensamento. Por isso, tal ateísmo não-autodestrutivo teria, provavelmente, que ser inventado.

Pessoalmente, não creio que tal secularismo “não-idólatra” seja possível, exceto quando o secularista vive de forma inconsistente com suas próprias teorias. Afinal, há muitos secularistas que são excelentes seres humanos, o que reforça ainda mais a crença teísta cristã na Imago Dei e na graça comum. Pois que outra explicação haveria para esse fenômeno, de tantos portadores da introversão do pensamento viverem por tanto tempo sem os seus sintomas? Não é um sinal da graça divina, que aos homens seja concedido não seguirem suas ilusões até às últimas consequências? E não é um sinal de julgamento divino, quando se permite que eles o façam?47

Pode o Secularismo Preservar seus Direitos Intelectivos?
A presença de incoerências performativas em uma visão de racionalidade certamente reduz a sua plausibilidade, e reduz também sua credibilidade moral, na medida em que denuncia uma inconsistência deontológica. Mas o fato de uma concepção de racionalidade ser plausível, e apenas plausível, não equivale a uma demonstração de veracidade. Ela pode ser plausível e ainda ser falsa. E crenças produzidas no interior de certa forma plausível de racionalidade podem ainda assim ser falsas.

É claro que para aqueles que experimentam a crença em Deus e em outros produtos de suas faculdades cognitivas como crenças involuntárias e fortemente influentes em seu sistema noético, sejam elas fundadas em razões suficientes ou em “bases” suficientes (constituindo-se em crenças básicas segundo as descobertas de Alvin Plantinga), esse tipo de ansiedade pode simplesmente não existir; de fato, para alguns de nós não há crenças válidas que sejam capazes de enfraquecer seriamente a plausibilidade de uma visão elevada da racionalidade humana. Mas esse não é o caso de todos, naturalmente.

Para socorro de agnósticos ansiosos na busca pelo real recomendaríamos a boa e velha Aposta de Pascal; mas não para decidir sobre a crença em Deus, e sim para se posicionar sobre compromisso entre uma versão introvertida e uma visão sã de racionalidade.

A aposta funcionaria assim: se todas as visões de racionalidade plausíveis sob os critérios aqui estabelecidos forem ainda assim falsas devido à simples inexistência de normas lógicas e de liberdade humana, o compromisso com uma ou outra delas não fará qualquer diferença epistemológica, e a obediência a qualquer alegada norma deontológica do pensamento será carente de significado e de valor.

Vamos chamar essa alternativa de “posição pessimista”. Na base dessa suspeita pessimista, nenhum argumento definitivo poderá ser apresentado contra os que creem “ingenuamente” na “ilusão” da liberdade do pensamento, uma vez que essa ilusão pode ainda ser considerada um produto determinístico da natureza parecendo assim irrefutável para aqueles que a sustentam. Além disso, nenhum argumento contra a visão teísta, mesmo que seja aparentemente definitivo, terá valor de verdade.

Isso implicará, ainda, no reconhecimento de que qualquer esforço de oposição a outros compromissos intelectuais, como aquele representado pela militância ateísta contra o teísmo, carecerá de justificação suficiente e, em consequência, de direitos válidos de existência no campo de debate intelectual. Pois a partir da “posição pessimista” será impossível denunciar qualquer visão de mundo como sendo irracional. Toda militância dessa natureza poderá ser corretamente interpretada como mera vontade de poder, e seus argumentos como mera retórica. Ou seja: a posição pessimista destrói as condições para a sua existência como posição intelectual válida.48

Se, no entanto, a liberdade e a lei no campo do pensamento forem reais, e o seu grau de realização na experiência humana depender em alguma medida da concepção de racionalidade que media sua apropriação, a introversão do pensamento se caracterizará imediatamente como uma posição intelectualmente patológica e potencialmente destrutiva para a liberdade e para a racionalidade humanas.

Ora, diante dessas duas alternativas, será mais racional, tanto para teístas como para ateístas, rejeitar incondicionalmente concepções introvertidas de racionalidade e incorporar o critério da coerência performativa como elemento construtivo de suas concepções de racionalidade. Ateístas que forem capazes de articular sua posição ateológica sem caírem sob o domínio de contradições performativas poderão assim partilhar com teístas do direito intelectual ao debate público, na base comum de uma racionalidade livre de introversões narcísicas.

E o sinal de uma racionalidade sadia será sempre o mesmo: a dissolução da ansiedade pelo controle racional total da experiência. Afinal, “Se o louco pudesse… ficar despreocupado, ele ficaria são”.49

Essa posição seria, enfim, genuinamente humanística – resistir à lógica implacável mas inumana de Clu. Para tanto, Flynn deve deixar seus sonhos narcísicos – de seu “mundo de espelhos”, e Tron deve se lembrar de sua verdadeira função: a proteção dos “usuários”. E não há outro escape da introversão do pensamento: reconhecer, como Flynn – ou, talvez, para além do Flynn budista e rumo a um Flynn cristão – que a perfeição sempre esteve diante de nós, como uma dádiva, a despeito da nossa incapacidade de abraça-la. Mesmo que para isso seja necessário matar Clu, nossa imagem do humano refletida no espelho das teorias reducionistas.

Nesse momento, atenção especial deve ser dada para os termos que o diretor emprega – conscientemente ou não – para descrever Quorra, o evento que abre Flynn para a realidade sobre si mesmo e sobre o mundo. Quorra é o “milagre”. Pouco importa agora a fonte do “milagre”; importa que ele esteja sempre além do que o homem pode construir, sempre além de seus sonhos prometeicos, mas ainda assim esteja ali, diante dele. A ideia de “milagre” invade Tron, como invade o cinema em geral, a literatura, a linguagem ordinária e eventualmente o próprio texto científico porque em última instância não há outra forma de dizer tal fenômeno (cairá ele superado se falarmos em “criação espontânea”, “flutuação do nada absoluto”, “emergência ontológica”, ou o que se queira?). Na verdade, outra forma de dizê-lo: dádiva. A dádiva é aquilo que se mostra no limite do poder humano (não a “ignorância”) tornando sã a racionalidade.

Permanecerá um fato incômodo para o secularista-ateísta, enfim: é que no caso do teísmo cristão, o entendimento humanístico da racionalidade flui direta e naturalmente dos seus pressupostos. Mas para o ateísta, se ele for capaz de se livrar de contradições performativas e caminhar rumo a uma compreensão de racionalidade mais consistentemente humanística, tal entendimento nascerá não por causa do seu ateísmo, mas a despeito dele.

Parodiando Plantinga, poderíamos dizer o seguinte: a racionalidade humanística floresce melhor no jardim da antropologia teísta. O humanismo, quando associado a antropologias filosóficas secularistas, tende a produzir introversões da racionalidade e autodestruições performativas. O humanismo deveria, portanto, preferir o teísmo ao secularismo, e se reformular como humanismo teorreferente.

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1Tron: Legacy (2010), filme de estreia do diretor Joseph Kosinski, é uma sequência de Tron, de Steven Lisberger (1982), que atuou na nova versão como um dos produtors. Jeff Bridges, personagem principal no primeiro filme, atua em Legacy como Flynn. Ambos os filmes foram produzidos nos estúdios Walt Disney e representam marcos importantes no uso da computação eletrônica.
2O fundo budista é bem nítido, mais isso não oferecerá nenhum impedimento sério ao uso do seu enredo como ilustração do nosso argumento.
3“Qualquer coisa que professe explicar plenamente o nosso raciocínio sem introduzir um ato de conhecimento que seja determinado apenas pelo que é conhecido, é realmente uma teoria de que não existe raciocínio.” Lewis, C. S. Miracles: a preliminary study. London: Fontana Books, 1947, p. 22.
4Ou, ainda, antrópica, em razão de seu interesse na preservação da liberdade e da integridade do homem.
5Polanyi, Michael; Prosch, Harry. Meaning. London/Chicago: The University of Chicago Press, 1975, p. 3-21.
6Ibid, p.9.
7Ibid, p. 5.
8Ibid, p. 11.
9Ibid, p. 13.
10Ibid, p. 15.
11Na política da época, ao menos. Mas é possível que o sistema absoluto esteja se manifestando agora por meio do poder econômico. Seria um exercício interessante tentar encontrar Tron na presente configuração do capitalismo globalizado.
12Chesterton, G. K. Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2007, p. 48.
13Horkheimer, Max. Eclipse da Razão. São Paulo: Ed. Centauro, p. 29.
14O artigo foi publicado inicialmente em Philosophy and the Human Sciences (1985) e depois em Avineri & de-Shalit: Communitarianism and Individualism. Oxford Readings in Politics and Government, OUP, 1992, 237 p.
15Ibid, p. 29.
16Ibid, p. 32.
17Ibid, 35-36.
18Ibid, 44-45.
19Ibid, 47.
20Ibid, p. 49.
21Clouser, Roy. The Myth of Religious Neutrality: and Essay on the Hidden Role of Religious Belief in Theories. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2005, 397 p.
22Ibid, p. 193.
23Pois ela mesma se tornará relativa a uma situação histórica e, portanto, não universalizável.
24Ou, como se diz no mundo de fala inglesa, “nothing-buttery”.
25Ibid, p. 85.
26Plantinga, Alvin. Warrant and Proper Function. New York/Oxford: Oxford University Press, 1993, 243 p.
27Letter to William Graham, Down, July 3, 1881, em: The Life and Letters of Charles Darwin Including and Autobiographical Chapter, ed. Francis Darwin (London: John Murray, Albermarle Street, 1887), 1:315-315. Apud: Plantinga, Ibid, p. 219.
28Por “epistemologia naturalista” Plantinga se refere a seu próprio projeto de naturalização da epistemologia expurgando-a da noção de “justificação epistêmica”, por ser esta excessivamente carregada de conotações deontológicas. Em seu lugar Plantinga introduz a ideia de “segurança epistêmica” (Warrant), por sua vez baseada na ideia de faculdades cognitivas funcionando apropriadamente em um contexto apropriado (Proper Function).
Para uma introdução à epistemologia de Plantinga, cf. meu artigo sobre o tema: Carvalho, Guilherme. A “Basicalidade” da Crença em Deus segundo Alvin Plantinga: Uma apresentação. Horizonte: Revista de Teologia e Ciências da Religião da PUC-MINAS, Belo Horizonte, v.4, n.8, p. 97-113, jun 2006. Disponível em: http://www.pucminas.br/imagedb/documento/DOC_DSC_NOME_ARQUI20070328103026.pdf
29Plantinga, ibid, p. 237.
30Sosa, Ernest. Natural Theology and Naturalist Atheology: Plantinga’s Evolutionary Argument Against Naturalism. Em: Baker, Deane-Peter. Alvin Plantinga. Cambridge: CUP, 2007, p. 93-106.
31Obviamente essas teorias continuam tendo grande valor para o esclarecimento de aspectos diversos da experiência humana – na medida em que são devidamente descascadas, temperadas e cozidas para o consumo.
32“[…] traços de caráter associados ao narcisismo psicológico, os quais, sob forma menos extrema, aparecem com bastante profusão na vida cotidiana: dependência do calor vicário proporcionado por outros, combinada a um medo da dependência, uma sensação de vazio interior, ódio reprimido sem limites, e desejos orais insatisfeitos.” Lasch, Christopher. A Cultura do Narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1983 [1979], p. 57.
33Ibid, p. 58.
34Dooyeweerd, Herman. No Crepúsculo do Pensamento Ocidental: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. São Paulo: Hagnos, 2010, p. 80-103. Para uma exposição completa, cf. Dooyeweerd, Roots of Western Culture: Pagan, Secular and Christian Options. Lewiston: Edwin Mellen Press, 2003, 242 p.
35Em português: Schaeffer, Francis. A Morte da Razão. Cambuci: Cultura Cristã, 2002, 111 p.
36Cogito ergo sum, “penso, logo existo”. Depois de duvidar de tudo, Descartes encontra essa certeza básica em incorrigível, a partir da qual procura reconstruir outras certezas e refazer sua imagem do mundo através de julgamentos claros e racionais.
37Ernest Sosa o descreve como o “Internalista-em-Chefe” (internalist-in-Chief) da tradição (Sosa, ibid, p. 94).
38Ehrenrfeld, David. Arrogância do Humanismo. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 3.
39Ou seja, a visão da liberdade como arbítrio, derivada da concepção nominalista de Soberania divina como Potestas Absoluta, e da liberdade divina como sendo ex Lex. A visão nominalista, em si mesma um desvio da compreensão cristã clássica de Soberania/liberdade como capacidade positiva, está na genealogia da concepção moderna de Soberania política, tanto em sua versão liberal-individualista como nas versões totalitárias como a de Thomas Hobbes.
40Chesterton, ibid, p. 34. Ou seja, o louco é (quase) perfeitamente consistente, mas perfeitamente ignorante da condição humana e de si mesmo.
41Embora haja exemplos disso, como nas versões intimistas e individualistas do pietismo, ou em correntes teológicas e apologéticas racionalistas que equacionam verdade/realidade com precisão doutrinária.
42“A modernidade é a era que deslocou Deus como o foco para a unidade significado do ser. O que quero dizer com isso? Antes de tudo, que as funções atribuídas a Deus não foram abolidas, mas trocadas – relocadas, como se diz hoje. […]. Deus não é mais necessário para dar conta da coerência e significado do mundo, de forma que o assento da racionalidade e do significado se torne não o mundo, mas a razão e a vontade humana”. Conlin Gunton, The One, the Three and the Many: God, Creation and the Culture of Modernity. The 1992 Bampton Lectures. Cambridge: CUP, 1993, p. 28.
Ou seja, a compreensão do mundo contemporâneo passa pelo rastreamento das funções divinas relocadas na cultura secular, e pela compreensão da relação que o homem “secular” tem com os objetos que absorveram essas funções.
43Desde que haja uma boa razão extrassistêmica para manter o paradoxo! Em caso contrário a contradição lógica deve sempre ser considerada suficiente como defeater.
44Excluindo-se, naturalmente, a honorável tradição de teologia filosófica cujo patrono foi o grande Tomás de Aquino, mas com a qual a tradição filosófica neocalvinista, aqui representada, tem pouca afinidade.
45Isso significa que outros paradoxos, que não estejam essencialmente contidos nessa exceção, poderiam ainda ser explorados por um crítico do teísmo e eventualmente identificados como legítimas contradições.
46Definir-se como vegetariano diz algo sobre o que não se come (carne), mas nada sobre o que se prefere comer (quais tipos de vegetais). Ateísmo diz algo sobre o que alguém não crê (divindades pessoais) mas nada diz sobre o que se crê efetivamente como fundamento do sentido cósmico. A verdadeira pergunta é: será o ateísta capaz de eliminar completamente de seu sistema de crença objetos que desempenham funções “teológicas”? Em outros termos: o ateísta elimina completamente a crença religiosa, com todos os seus objetos típicos e eventuais substitutos, ou elimina um conjunto menor desses objetos possíveis (i.é., divindades pessoais)? Segundo a tese de Colin Gunton, citada em uma nota anterior, o secularista tão somente desloca suas relações religiosas. Uma das tarefas da ciência da religião é rastrear esses deslocamentos.
47Sem dúvida todo este parágrafo será de difícil compreensão para mentes secularistas, a não ser que elas suspendam suas reticências afetivas para sentar-se por um pouco na “cadeira teísta”.
48É claro que ela ainda poderia existir como um sentimento de mundo, como uma atitude existencial, como retórica para manobras políticas, como uma enfermidade psíquica, como lema de roqueiros “satanistas” ou como reação a uma infância triste.
49Chesterton, ibid, p. 33.

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  1. Excluindo-se , naturalmente, a honorável tradição de teologia filosófica cujo patrono foi o grande Tomás de Aquino, mas com a qual tradição filosófica neocalvinista, aqui representada, tem pouca afinidade.
    Isso significa que outros paradoxos, que não estejam essencialmente contidos nessa exceção, poderiam ainda ser explorados por um crítico do teísmo e eventualmente identificados como legítimas contradições. A verdadeira pergunta é: será o ateísta capaz de eliminar completamente a crença objetos que desempenham funções ” teológicas”? Em outros termos: o ateísta elimina um conjunto maior desses objetos possíveis (I. é. , divindades pessoais) segundo a tese de Collin Guton, citada em uma nota anterior, o secularista tão somente desloca suas relações religiosas. Uma das tarefas da ciência da religião é rastrear esses deslocamentos. É claro que ela ainda poderia existir como um sentimento de mundo, com uma atitude existencial, como retórica para manobrar políticas, como uma enfermidade psíquica, como lema de roqueiros ” satanístas” ou como reação a uma infância triste.

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