O problema do mal em Agostinho e o Paradoxo de Epicuro

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  1. Introdução

O paradoxo de Epicuro é um conceito que constantemente é discutido na filosofia e teologia. O argumento é muito usado para mostrar uma possível contradição de Deus, partindo do mal que há no mundo.

Este trabalho tem como proposta investigar o problema do mal, segundo Agostinho e entender todos os pressupostos e explicações quanto a sua origem focando no papel do livre-arbítrio humano no problema do mal e respondendo a principal pergunta: seria Deus o autor do mal? O primeiro objetivo da investigação é justamente compreender o quanto Deus ou o ser humano são responsáveis quanto ao problema do mal, de acordo com a perspectiva de Agostinho. E o segundo objetivo é entender o quanto o paradoxo de Epicuro é coerente ao dar respostas ao mal no mundo. Ao diagnosticarmos o problema à luz do pensamento do Hiponense, não só entenderemos a sua ideia, como também compreenderemos o quanto o homem ou Deus, são responsáveis pelo mal.

Abordei todos os pontos do problema do mal de Agostinho pesquisando as suas principais obras sobre o assunto, mas usei como livro principal a obra O livre-arbítrio, além das obras de autores que empreenderam estudos sobre o problema do mal.

  1. O problema do mal

Nascido em Tagaste, no ano de 354, Agostinho foi um dos grandes pensadores da igreja. Sua história pode ser dividida em duas partes, antes da sua conversão e depois. Sendo que antes, seus maiores interesses eram a filosofia e a retórica. Depois de ter se convertido, seus interesses mudaram, e ele passou a se dedicar aos estudos da Bíblia e da filosofia (MONDIN, 2018, p. 146-147). Bertrand Russell complementa pontuando que: “Santo Agostinho foi autor assaz copioso, de modo especial no que diz respeito a temas teológicos” (2015, p. 69). Com a conversão, foi inevitável usar seu conhecimento e todo o seu intelecto na teologia, discorrendo sobre os principais pontos, e entrando em embates teológicos em nome da fé cristã. Sobre a doutrina e principais influências, Battista Mondin complementa:

[…] A visão filosófica agostiniana é resultado da exigência de encontrar uma base racional para a fé cristã. Para atingir este objetivo, Agostinho recorre à filosofia de Platão, obtendo assim uma visão que aparece propriamente qualificada como platonismo cristão (2019, p. 230).

É em Platão, no denominado platonismo cristão, que Agostinho tem as suas principais influências. Onde ele usa, com o propósito de racionalizar a fé, a filosofia para assim chegar a este objetivo.

Outro ponto importante de Agostinho é que ele foi um dos pensadores que defendeu a ideia de não ser contraditório o fato de existir um Deus bom, todo poderoso e onisciente, e o mal. Dono de um intelecto acurado, foi autor de inúmeras obras, dentre elas está o livro O livre-arbítrio, que entre muitos assuntos, o problema do mal é um dos temas centrais (MONDIN, 2018, p. 147-148). E Agostinho inicia este livro com uma pergunta, por meio do seu interlocutor Evódio, que será a peça-chave para este trabalho: “Diz-me, por favor, não é Deus o autor do mal? (2001, p. 81).

  1. O paradoxo de Epicuro

No período helênico, as duas principais escolas foram as escolas dos estoicos e a dos epicuristas. Os dois fundadores destas escolas, Zenão e Epicuro, nasceram na mesma época, sendo que ambos se estabeleceram em Atenas. Tendo sofrido por conta de sua saúde frágil, através de sua força de vontade e força, Epicuro aprendeu a suportar, sendo ele, e não os estoicos, o primeiro a afirmar que seria possível ser feliz mesmo em meio a dor e ao sofrimento (RUSSELL, 2015, p. 299).

Epicuro foi um grande filósofo grego, nascido em Samos, teve como principais influências Demócrito e os atomistas. Viveu a vida de modo simples, tendo como principais ênfases os prazeres mentais ao invés dos físicos (CHAMPLIN, 2013, p. 402). Bertrand Russell complementa sobre a filosofia de Epicuro, resumindo que:

A filosofia de Epicuro, a exemplo de todas aquelas de sua época (com a parcial exceção do ceticismo), tinha como principal objetivo garantir a tranquilidade. Ele considerava bom o prazer e aderiu, com notável consistência, a todas as consequências dessa visão. “O prazer”, disse, “é o começo e o final da vida bem-aventurada” (RUSSEL, 2015, p. 302, 303).

Tendo vivido em Atenas uma boa parte da sua vida, em um tempo onde a cidade estava mergulhada em um período de pobreza e miséria, Epicuro foi ao local com o intuito de restabelecer a ordem. Por conta de toda a miséria e pobreza, inúmeras seitas, crendices e aproveitadores se fizeram presentes a fim de procurar o sucesso e ganhar vantagem sobre as pessoas (RUSSEL, 2015, p. 303).

Sendo influenciado por Platão e Sócrates, Epicuro fundou uma comunidade-escola, tendo como ênfase, ser aberta a todos. Com isso, e sem qualquer preconceito, homens, mulheres, senhoras, cortesãs e prostitutas, frequentavam o local, tendo todos plena igualdade. O que não demorou para que os de fora acreditassem que Epicuro dava festas e eventos obscenos. Coisa que não era verdade, já que neste local, o que Epicuro cultivava era apenas a harmonia (SPINELLI, 2013, p. 7, 8).

O Paradoxo de Epicuro é um conceito muito usado por filósofos a fim de justificar o mal e a inexistência de Deus, contudo, é importante pontuar que não há provas quanto a autoria do paradoxo e muito menos ele consta em seus escritos. O trilema foi atribuído a Epicuro por Hume em seu livro Diálogos sobre a religião natural, sendo que será a partir desta obra que o paradoxo será trabalhado. O paradoxo pode ser resumido como: “A Divindade quer evitar o mal, mas não é capaz disso? Então ela é impotente. Ela é capaz, mas não quer evitá-lo? Então ela é malévola. Ela é capaz de evitá-lo e quer evitá-lo? De onde, então, provém o mal?” (HUME, 1992, p. 136).

O homem não cansa de buscar explicações, a questão é entender se tais sentenças são justas ou apenas esconde, de alguma forma, uma responsabilidade que o homem não quer assumir. Sobre os critérios para se encontrar a verdade, Battista Mondin resume que:

Para Epicuro, como para os sofistas, o conhecimento sensitivo é o fundamento de qualquer outro conhecimento; também a razão depende dos sentidos e, se os sentidos se enganam, a razão está condenada a errar. Logo, o critério (cânon) último da verdade é a sensação (2018, p. 123).

Resta sabermos se o conhecimento sensitivo é suficiente para encontrarmos as respostas para os problemas. Com isso, Epicuro, por conta de sua filosofia, terminou rejeitando tanto o pensamento de Platão e o mundo das ideias, que trabalhava com o fato de que o conceito era o retrato das ideias existentes no mundo inteligível, quanto o de Aristóteles e a sua concepção de natureza e essência das coisas (MONDIN, 2018, p. 123). Ainda sobre o pensamento de Epicuro, Bertrand Russell complementa: “Essa teoria geral dá origem a uma concepção de bem-viver bastante diferente das de Sócrates e Platão. Toda a tendência aponta para um afastamento da atividade e da responsabilidade” (RUSSELL, 2017, p. 140). É preciso em alguns momentos dar mais ênfase à reflexão ao invés dos sentidos, para que assim, as respostas coerentes surjam e façam sentido.

Epicuro também criticou a religião, uma crítica que foi retomada por Lucrécio. Ambos afirmavam que a religião é uma fabulação, é algo ilusório e supersticioso. Tendo a sua origem no medo da morte e da natureza. Alguns filósofos posteriores a Epicuro e a Lucrécio, retomam o assunto, afirmando que a religião tem o seu início na superstição. Por conta do medo, os homens se refugiam na esperança de que algo bom virá (CHAUI, 2014, p. 235).

Bertrand Russell, um grande filósofo crítico da religião, em seu clássico livro Por que não sou cristão, afirma, trazendo à tona o pensamento de Lucrécio afirmando que: “Minha visão pessoal a respeito da religião é a mesma de Lucrécio. Vejo-a como uma doença derivada do medo e como fonte de tristeza incalculável para a raça humana” (RUSSELL, 2016, p. 46). Por fim, parece que o eco de Epicuro e Lucrécio, reverberou e ainda reverbera em nossos dias. Um Deus bom e o mal, não convivem. A religião não busca ajudar, na verdade, ela é apenas um instrumento de alienação, segundo estes pensadores.

  1. O mal e o livre-arbítrio em Santo Agostinho

Foi com aproximadamente 19 anos de idade que Agostinho se deparou com o problema do mal, por conta da leitura do livro Hortensius de Cícero. Neste tempo, para Agostinho, o mal era um paradoxo, sem possíveis explicações, o que o levou a ir em busca de respostas aos seus questionamentos. Por conta disso, ele mergulhou no maniqueísmo, mas não conseguiu soluções neste sistema de pensamento. Encontrando respostas apenas na fé, através do pensamento dos neoplatônicos e principalmente na reflexão de Plotino (COSTA, 2012, p. 33-35). Diogenes Allen e Eric Springsted, complementam um ponto importante sobre Plotino:

Plotino mesmo teve uma intensa e imediata consciência do esplendor, da força e da solidez da realidade espiritual. Seus escritos, não obstante obscuros e difíceis, exerceram um poderoso efeito sobre aqueles que os estudaram. Agostinho reconhece os efeitos dele sobre ele. Eles o capacitaram a compreender que as realidades espirituais existem e que têm prioridade sobre as sensíveis (2017, p. 102).

O filósofo Plotino, um egípcio que falava grego, era um monista, que acreditava que a realidade era um gigantesco sistema de hierarquias, com vários níveis. Tendo como princípio de tudo Deus, sendo designado como Uno. Estando Deus distante de tudo, ele também é a fonte de onde o ser se origina (KELLY, 2009, p. 15).

Foi este filósofo neoplatônico que fez Agostinho ver a questão com uma óptica bem mais ampla do que a dos maniqueístas. O seu pensamento serviu como ponto de partida para a busca de respostas do problema que o afligia. O próprio Agostinho complementa a questão do dualismo do maniqueísmo afirmando que:

Ah! Suscitas precisamente uma questão que me atormentou por demais, desde quando era ainda muito jovem. Após ter-me cansado inutilmente de resolvê-la, levou a precipitar-me na heresia (dos maniqueus), com tal violência que fiquei prostrado. Tão ferido, sob o peso de tamanhas e tão inconsistentes fábulas, que se não fosse meu ardente desejo de encontrar a verdade, e se não tivesse conseguido o auxílio divino, não teria podido emergir de lá nem aspirar à primeira das liberdades – a de poder buscar a verdade (2019, p. 28)

Por conta de sua sede por explicações e tendo conseguido forças em Deus, Agostinho não aceitou as ideias que até aquele momento, o maniqueísmo oferecia. Definir o problema usando a visão dualista, para o hiponense, é deixar o cerne da questão sem solução.

O maniqueísmo, tem como fundador o profeta Mani, que apesar de ter sido conhecido como o fundador de uma heresia cristã, alguns estudiosos vão pontuar que a sua religião apenas havia elementos cristãos, fundidos com o budismo e o zoroastrismo. De forma resumida, é possível definir o maniqueísmo como uma religião com aspectos semelhantes com o gnosticismo. Tinha como ponto principal o dualismo, que acreditava que a realidade poderia ser definida por duas grandes forças eternas e poderosas. O bem, atribuído a Deus, a verdade e a luz. E o mal, que seria a matéria. O homem, que é da mesma essência de Deus, por estar vivendo na ordem material, está caído, exilado do mundo da luz. Sendo que a salvação é conseguida através de uma vida asceta, afastando-se de impurezas e contaminações carnais (KELLY, 2009, p. 10-11).  Marcos Roberto Nunes Costa complementa o assunto afirmando que:

Para explicar a origem do universo o maniqueísmo criou um sistema dualista, no qual aparecem dois princípios ontológicos originantes do cosmo: a luz (o Bem) e as trevas ou a matéria (o Mal), ambos de natureza corpóreas, incriadas ou coeternas, com iguais poderes de criação, ou melhor, de emanações (COSTA, 2012, p. 33).

A vida e o existir, para o maniqueísmo, era fruto de um embate eterno entre duas forças, sendo que o homem, por conta desta batalha, sofria e precisava, através de várias práticas, vencer estes problemas.

Agostinho, indo de encontro a este dualismo, vai se opor ao argumento partindo da narrativa bíblica que o mundo foi criado do nada. É por isso que ele afirmou que tudo, desde a matéria até os seres vivos, foram criados por Deus (COSTA, 2012, p. 36). Agostinho complementa, em resposta ao maniqueísmo, afirmando que:

Existem aqueles que, não conseguindo entender que toda natureza, isto é, que todo espírito e todo corpo são naturalmente bons, são movidos pela iniquidade do espírito e pela mortalidade do corpo e, por isso, ousam pretender introduzir outra natureza de espírito maligno e de corpo mortal, afirmando que Deus não a criou. Assim, achamos que o que dizemos possa levá-los a entender, pois eles admitem que todo bem não pode existir senão do sumo e verdadeiro Deus, o que é verdade e, se quiseram estar atentos a isso, basta para que se corrijam (2019, p. 22).

Quando falamos de Deus[1] como criador, é por conclusão lógica que Agostinho chega à conclusão de que ele é bom, já que ele é soberano e a fonte de tudo, inclusive do bem. Étienne Gilson complementa pontuando que: “Deus é, por definição e em virtude das provas que estabelecem sua existência, o soberano bem. Sendo o bem supremo, não há nenhum bem acima ou fora dele” (GILSON, 2010, p. 271). Com isso, se ele é a fonte de tudo, completo e infinito, ele não muda, não há qualquer oscilação ou possibilidade de variação. No livro O livre-arbítrio, Agostinho pontua que: “E ninguém terá de Deus um alto conceito, se não crer que ele é todo-poderoso e que não possui parte alguma de sua natureza submissa a qualquer mudança” (1995, p. 29). Por ser Deus eterno e imutável, ele não modifica, apenas o homem que muda, por ser criado.

Deus é eterno e não foi criado, por isso que ele é, e existe sem variação. Já o homem não, pois, por conta de sua condição de criado, incompleto, limitado, ele não tem parte com o ser e sim com o não ser. Existe uma falta, e consequentemente uma necessidade de ser, e de mudar (GILSON, 2010, p. 272).

Outro ponto importante, que resume porque Agostinho concluiu que não é Deus o autor do mal, é o fato que se o mal existe, ele deve ter um autor, pois nada existe sem um agente. Mas como Deus é bom, e se é ele que pune as injustiças e maldades, não pode ser ele o autor e ao mesmo tempo o punidor, com isso, Agostinho concluiu que o autor não pode ser Deus. Agostinho complementa:

Certamente, pois o mal não poderia ser cometido, sem ter algum autor. Mas caso me perguntes quem seja o autor, não o poderia dizer. Com efeito, não existe um só e único autor. Pois cada pessoa ao cometê-lo é o autor de sua má ação. Se duvidas, reflete no que já dissemos acima: as más ações são punidas pela justiça de Deus. Ora, elas não seriam punidas com justiça, se não tivessem sido praticadas de modo voluntário (2019, p. 25-26).

O homem erra de modo voluntário, e é punido por um Deus justo, que se assim o é, não pode ser o punidor e ao mesmo tempo o autor do pecado e do mal.

Se tudo foi criado e é gerido por um ser divino e bom, o mal físico não pode existir, não pode ser uma substância e sim, um “não ser”, uma deturpação do que é bom. Agostinho acreditava que o mal ontologicamente não existia, ele era uma ferrugem no bem. A ausência do bem que ele deveria ser. Com isso, o mal não existe (COSTA, 2012, p. 36). Franklin Ferreira complementa, usando a citação de Agostinho: “Quando, então, se pergunta de onde vem o mal, deve-se primeiro indagar o que é o mal e este não é outra coisa senão a corrupção, seja da medida, da forma ou da ordem que pertence à natureza” (apud FERREIRA, 2007, 136). O mal, ontologicamente, não existe. Segundo Agostinho, ele é uma corrupção, um “não ser”. A única coisa que existe é o bem, sendo o mal, uma distorção, uma corrupção do bem criado por Deus. Battista Mondin complementa, explicando o ponto de vista de Agostinho:

Do exame das coisas que o homem denomina más, Agostinho chega à conclusão de que o mal não pode estar só, não pode subsistir, mas que deve existir em uma substância que, em si mesma, é boa. O mal é privação de uma perfeição que a substância deveria ter. Por isso, o mal não é realidade positiva, mas privação de realidade. Pode-se, pois, definir o mal como privatio boni (privação de [algum] bem) (MONDIN, 2018, P. 156).

O mal, para Agostinho, não vem de Deus, não é ele o criador e muito menos a causa, e sim, a privação, a falta da característica intrínseca que tal elemento deveria ter. Com isso, o mal não é uma realidade, ele não existe, ao contrário. O mal é a falta da realidade, é a anulação de uma característica, é a privação do bem, o mal é o não ser (MONDIN, 2018, p. 156).

Por não ser possível conceber o mal como algo que possua medida, espécie e ordem, o mal termina por não ser algo que é[2], que exista de forma independente e sim, como uma deturpação, uma ferrugem no bem. O mal é algo que desconstrói o bem e não algo que ontologicamente existe. Sobre o conceito de natureza má, Agostinho conclui: “Denomina-se, pois, natureza má aquela que está corrompida, porque a que não está corrompida é boa. Mesmo assim, na qualidade de natureza ela é boa; por ser corrompida ela é má” (De nat. boni, 4). Molinaro complementa explicando que: “Resta que o mal pode-se entender só como privação do bem no ente, ou seja, como falta, oposição e negação de uma determinação devida ao ente que é bom: privação do bem devido” (2019, p. 89).

Contudo uma pergunta ainda restava para Agostinho responder, qual seria a causa: o que motivava o mal? A solução de Agostinho quanto ao problema do mal, se concentra no fato de que o homem possui o livre-arbítrio. Esta é a chave que o autor encontrou para concluir e responder por que o mal existe. Agostinho complementa que: “Se o caminho da verdade permanecer oculto, de nada vale a liberdade, a não ser para pecar” (AGOSTINHO, 1998, apud FERREIRA, 2007, p. 132). O homem sem Deus, distante da verdade, por conta do seu livre-arbítrio, segue pecando, fazendo o mal.

Segundo o autor, o mal é fruto da escolha humana. Agostinho mais uma vez resume pontuando que: “O livre-arbítrio somente é útil para a realização das boas obras se recebe assistência de Deus, que é concedida mediante oração e humildade no agir” (AGOSTINHO, 2006, apud FERREIRA, 2007, p. 133). É somente através da atuação divina, que o livre-arbítrio para o bem, faz sentido. Sem Deus, a fonte de todo o bem, o homem caminha para o mal, sempre e a todo o instante.

Quando Agostinho fala do homem, percebendo a sua capacidade em decidir, agir e fazer, ele conclui que não é só o livre-arbítrio que o homem possui, mas também a responsabilidade no que faz, por ser um homem livre. Não há como falar de mal, sem liberdade, caso contrário, seríamos robôs, sendo que onde há liberdade há também responsabilidade, o que isenta Deus do problema do mal. Agostinho explica: “[…] resta, portanto, que nenhuma outra realidade torna a mente companheira do desejo desenfreado senão a própria vontade e o livre arbítrio” (De lib. arb. I, XI, 21).

Discorrendo agora sobre o livre-arbítrio, um elemento importante ao discutirmos o assunto, Agostinho resume o problema em cinco pontos principais. O primeiro é sobre a razão. O homem é o único ser criado que é dotado da razão, da faculdade de pensar a refletir. É através da sua inteligência que ele pensa, reflete e julga. O segundo ponto é intrinsecamente ligado ao primeiro. Se o homem é dotado da faculdade da razão, isso faz dele um ser superior aos outros animais. O terceiro ponto segue complementando os outros dois, pontuando que, se ele é dotado da razão, somente ele tem a capacidade de buscar por respostas e de conhecer. Enquanto os animais vivem por instinto, o homem vive pela razão e é através dela que ele consegue conhecer e refletir. O quarto ponto fala da iluminação divina, que traz ao homem a iluminação e a percepção da ordem que Deus estabeleceu em tudo. E o último ponto, se resume no fato que, já que o homem conhece, ele pode escolher, e se assim o quiser, pode se aproximar de Deus, o criador de tudo. O único, segundo Agostinho, que pode fazê-lo feliz (COSTA, 2012, p. 37).

Os cinco pontos são interligados, e formam um raciocínio que define e explica o livre-arbítrio humano e suas escolhas. A felicidade é o anseio último do ser humano, é o que faz com que ele tome suas decisões, e acabe errando. A sabedoria, é sempre confundida por Agostinho com a beatitude, ou seja, a felicidade profunda de quem segue a Deus. Étienne Gilson complementa: “Ora, é capital para a compreensão do agostinianismo que a sabedoria, objeto da filosofia, sempre é confundida por ele com a beatitude. O que ele procura é um bem cuja posse satisfaz todo o desejo e, por consequência, confere a paz” (GILSON, 2010, p. 17).

Ou seja, é por conta do livre-arbítrio, que o mal existe. Sendo o mal uma corrupção do que é bom, uma ferrugem do bem, como já pontuamos. Mas para se alcançar a sabedoria, a vida feliz, Agostinho acreditava que só era possível através de Deus. Ser feliz era para ele, estar conservando para si a verdade, sendo Deus a verdade, e com isso, a fonte de todo o bem e a solução para todo o mal (GILSON, 2010, p. 22).

  1. O problema com o paradoxo de Epicuro

O Paradoxo de Epicuro, quando bem estudado, termina em inúmeras contradições e equívocos. A principal delas é a própria concepção de Deus e o fato dele ter criado o homem livre. Sendo que tal liberdade se resume na capacidade do homem em escolher o caminho que quiser, até o caminho do mal, com o fato de Deus ser incapaz de impedir o mal. Moreland e Craig resumem o problema pontuando que: “Desse modo, se Deus dá às pessoas liberdade genuína para escolher como elas quiserem, então é impossível para ele garantir quais serão suas escolhas” (2005, p. 654).

A onipotência divina, se resume ao fato de que Deus pode fazer tudo que não seja contraditório, absurdo, com isso, ao proporcionar o livre-arbítrio ao homem, tal liberdade compreende o fato de que ele pode fazer todas as escolhas que quiser, caso contrário, não seria livre-arbítrio. Alister Mcgrath complementa: “Quando Deus cria um Universo material, e dá às criaturas liberdade de ação, o sofrimento aparece como decorrência natural disso” (2012, p. 190). Por isso que é contraditório defender o Paradoxo de Epicuro sem degradar o conceito de livre-arbítrio humano. Ou o homem é livre, e com isso, responsável por suas ações, ou ele não é e assim, responsabilizamos Deus, ou qualquer outra divindade, por todo o mal no mundo.

Quando afirmamos que um Deus é soberano, não significa que tudo o que acontece é por conta da força de suas mãos ou do seu poder, e sim que, tudo o que este Deus quiser fazer, ele assim pode executar de acordo com todos os seus desejos. O teólogo Wayne Grudem complementa afirmando que: “A onipotência (poder, soberania) é o atributo de Deus que lhe permite fazer tudo o que for da sua santa vontade” (GRUDEM, 1999, p. 159). A liberdade, a capacidade de fazer o que ele bem quer, resume de forma coerente o conceito, e não o fato que tudo o que acontece é por conta da sua determinação.

Como podemos perceber, existem alguns problemas com o paradoxo de Epicuro com uma parte da reflexão que trata da teodiceia. O primeiro, como falamos, é a má interpretação do conceito de soberania divina, e o segundo, é não considerar o livre-arbítrio humano e a sua responsabilidade. Battista Mondin complementa, usando uma citação de Agostinho explicando que: “Se a ação humana não fosse livre; não poderia ser aprovada nem desaprovada; seria simplesmente ação humana e nada mais. Só onde há liberdade é que se pode falar de bem (e de mal). (MONDIN, 2018, p. 157).

O deus de Epicuro é um reflexo de um pensamento que não levou em consideração o homem e a sua responsabilidade no que faz. E muito menos na possibilidade do homem se corromper e usar de forma destrutiva o seu livre-arbítrio. O teólogo, linguista e hebraísta Luiz Sayão complementa, usando o argumento de Agostinho, resumindo que: “Com uma perspectiva fundamentada no arbítrio humano, Agostinho dizia que o mal entrou no universo pela livre vontade das criaturas de Deus” (SAYÃO, 2012, p. 45). É pela livre vontade humana, que o mal entra, é por conta da sua capacidade de agir de forma livre, que o mal passou a se fazer presente no mundo.

  1. Conclusão

O mal, bem como o próprio sofrimento é inerente a todo o ser humano, é inevitável sofrer e também nos perguntar por que sofremos. Já que existe um Deus bom, que criou supostamente, tudo bom e perfeito.

Dono de um intelecto prodigioso, sendo Agostinho, um autor profícuo, foi com a filosofia, suas ferramentas e métodos, que Agostinho racionalizou a fé, e defendeu o pensamento cristão de alguns dos principais opositores. Fundamentado em Platão, no denominado platonismo cristão, usou seu conhecimento em retórica e filosofia para defender a fé, e construir doutrinas que são usadas até hoje. Tal pensador não só buscou respostas para alguns embates que circundavam a igreja. Mas também colaborou com a teologia, fundamentando doutrinas importantes, usadas até hoje nas igrejas cristãs.

O problema do mal é um assunto muito discutido, e visto por muitos, como uma contradição, principalmente quando partimos do pressuposto de que Deus é bom, e criou tudo perfeito. Como vimos, o paradoxo de Epicuro, analisa a questão, apenas e tão somente, de um ponto de partida, deixando muitas outras variantes em aberto. Jogar a culpa do mal em Deus, sem olhar todo o entorno, e muito menos sem analisar o homem e toda a sua responsabilidade diante da vida, é cair no erro de deixar de fora muitos outros pressupostos. Se somos livres e responsáveis no que fazemos, é inevitável termos uma culpa diante de tal problema.

Agostinho resumiu a questão de forma ampla, suas respostas aos seus questionamentos, evidencia quão acurada foi a sua investigação. Por não se conformar com as respostas sem aprofundamento que as religiões de sua época propuseram, sendo uma delas o maniqueísmo. Agostinho foi mais fundo em sua investigação, procurando o cerne do problema e investigando todas as variantes da questão.

Se existe o mal, existe um autor, uma causa para que o mal exista e castigue a raça humana. Porém se é Deus quem julga, se é ele que pune o mal, ele como Deus bom, não pode ser ao mesmo tempo autor e punidor. Com isso, só existe uma resposta, o autor do mal é o homem, e o seu livre-arbítrio da vontade, que o leva a praticar o mal.

Deus é bom e criou todas as coisas boas, já que nele não há mal. O homem, por ter sido criado livre, dotado de razão e capaz de escolher acabou escolhendo o mal. Foi por conta do seu livre-arbítrio, que o mal entrou no mundo. É da total responsabilidade humana que o mal entrou, isentando Deus da culpa pelo mal, segundo Agostinho.

O mal não existe, o que existe é a corrupção do bem, o mau uso do bem, que corrompeu e trouxe consequências drásticas ao universo. O mal não existe, o que existe é o “não ser” é o deixar de ser bom, tal qual a característica que Deus deu ao homem. Segundo o próprio Agostinho, o mal é uma ferrugem no bem, é uma corrupção que estraga e deturpa o que antes era perfeito e bom. Tirando a sua essência original, que era boa, conforme criado originalmente por Deus.

É por conta do mal uso do livre-arbítrio, que o mal entrou no mundo. Sendo que é o homem e não duas forças em guerra, o autor do mal no mundo. Tudo o que Deus fez é bom, a questão foi que Deus fez o homem além de bom, com a capacidade de decidir e tomar as suas decisões, e foi por conta deste seu livre-arbítrio, que o mal entrou, e corrompeu o que originalmente era bom.

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Referências

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_________. Por que não sou cristão: um livro que coloca ao leitor questões que nunca mais poderão ser ignoradas. 1. ed. Porto Alegre: Editora L & PM Pocket, 2016.

Sayão, Luiz. O Problema do Mal no Antigo Testamento. 1. ed. São Paulo: Editora Hagnos. 2012.

Spinelli, Miguel.  Epicuro e as bases do epicurismo. 1. ed. São Paulo: Editora Paulus, 2013.

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[1]Como Deus é o único ser, tudo tem origem nele, e como ele é o Sumo Bem, tudo o que provém dele é bom. Desta forma, uma vez que, toda a criação, que tem origem em Deus, é boa. E por mais que existam categorias de bens, sendo uns maiores e outros menores, todos estes bens devem a sua existência à bondade divina. Agostinho não desliga a existência da bondade, pois entende como ontológica a bondade na natureza. A própria existência já justifica a sua bondade (BRANDÃO, 2019, p. 82).

[2]De fato, conforme expõe Agostinho, natureza alguma é má como natureza, sendo que não existe mal algum, em uma natureza, exceto quando o bem é diminuído. Se o bem for erradicado, chegando ao fato deste acabar, com isso, assim como bem algum existiria da mesma forma a natureza alguma não permaneceria (De nat. boni, 1, 17).

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