1. Introdução
O propósito deste artigo é duplo: introduzir o leitor brasileiro à pena, mente e coração de Martin Bucer (1491-1551), um dos grandes reformadores de primeira geração do século XVI, a partir de sua teologia da unidade cristã. Segundo o próprio Bucer, a única forma de escaparmos do estado tão deplorado e pernicioso do cisma e da divisão na religião e retornar à verdadeira unidade e à boa ordem cristã nas igrejas é através de um entendimento correto quanto à eclesiologia, unido a uma genuína prática pastoral, como relatado no título de uma de suas mais famosas obras, Concerning the True Care of Souls (“Sobre o Verdadeiro Cuidado das Almas”),1 livro este escrito por ele para servir de manual para os pastores de Estrasburgo e para a igreja cristã em geral face aos vários movimentos de reforma e cisma do século XVI.
O leitor atento perceberá que este contexto não é muito diferente do que temos enfrentado em nosso país, onde as doutrinas da Reforma tem ganhado notoriedade absurda. É preciso que a voz do Pastor dos pastores, Jesus, o qual orou ao Pai clamando por unidade entre o seu povo (cf. João 17) seja ouvida através daquele que foi o pastor dos pastores da Reforma, Martin Bucer, o diplomata da fé.
2. O conceito da Igreja
A definição de Bucer para a Igreja é a seguinte: logo no início de seu livro Sobre o Verdadeiro Cuidado das Almas:
“A igreja de Cristo é a assembleia e a comunhão daqueles que foram reunidos dentre o mundo e unidos em Cristo nosso Senhor através do seu Espírito e de sua Palavra, para serem um corpo e membros uns dos outros, cada um tendo seu ofício e serviço para o bem geral de todo o corpo e todos os seus membros.”2
Bucer, no parágrafo seguinte no livro, diz aos seus leitores que esta definição deve ser apreendida a partir de textos bíblicos, como: Efésios 4.1-6, 15-16; 1ª Coríntios 12.12-13, 18-27; Romanos 12.4-6; Atos 4.32, 34a, 35b; 2ª Coríntios 8.1-5, 13-15; 2ª Tessalonicenses 3.11-13.3 Aliás, esta é outra característica marcante de Bucer na obra: a abundância de textos bíblicos como bases indispensáveis para a correta compreensão dos temas teológicos; no caso, eclesiologia e teologia pastoral. Bucer, ao citar os textos bíblicos, mais do que apenas coloca-los como “textos-prova”, os expõe diante do leitor com suas interpretações.
Segundo Bucer, a mentalidade da época quanto à membresia no corpo de Cristo (e você notará que não é muito diferente dos nossos tempos, e que tempos!) é que o que fazia de alguém um membro do corpo de Cristo é o seu batismo, a sua participação nas cerimônias religiosas e o não se intrometer nos assuntos dos chamados ‘sacerdotes’, mesmo que estas pessoas nem mesmo tenham conhecido verdadeiramente a Cristo, o Senhor, e vivam abertamente em pecado, contando com o conforto, não de Cristo, mas das cerimônias dos sacerdotes, suas próprias boas obras, e os méritos dos santos falecidos. Para Bucer, se assim o for, as pessoas são impossibilitadas de confiar verdadeiramente em Cristo, já que desprezaram a ele e à sua santa Palavra.4 Bucer enfatiza que “ninguém poderá ser membro do Senhor e de sua igreja ao mesmo tempo em que é membro e companheiro do mundo”.5
Em uma de suas muitas preleções sobre Efésios, sua epístola favorita, Bucer enfatiza, especialmente sobre o contexto no qual Paulo diz que a igreja é o corpo de Cristo (1.23), essa mesma verdade:
“Portanto, devemos concluir que a igreja é o ajuntamento daqueles que são governados pelo Espírito e pela palavra de Cristo e estão ligados entre si, como verdadeiros membros, edificando-se mutuamente em amor em favor da piedade e da verdadeira religião.”6
Apesar disso, a conduta de Bucer não era de total segregação com relação a Igreja Católica. Aliás, dos grandes reformadores, nenhum tivera a intenção específica de segregar-se e criar um novo seguimento religioso per si. O intuito de cada um deles era reformar a igreja de Cristo ao padrão bíblico. Isso o próprio Bucer afirma ao dizer que não era do seu interesse se esquivarem de qualquer autoridade na igreja, mas que não havia autoridade ou poder na igreja exceto aquele que existe para o próprio bem dela:
“Nós, com muito prazer, ouviríamos os ministros de Cristo [se referindo aos sacerdotes católicos], quaisquer fossem eles e quaisquer títulos carregassem consigo. Mas se havemos de ser rebanho de Cristo, devemos fugir daqueles que tem voz de um estrangeiro [e não do pastor] (João 10.5). Àqueles que trazem um outro evangelho, devemos reputar por amaldiçoados, mesmo que fossem anjos provenientes do céu (Gálatas 1.8). Quanto aos que são idólatras, roubadores da igreja, aqueles cujas vidas estão manchadas pelos mais hediondos vícios, mas dizem ser irmãos e membros da igreja, nós não devemos nada ter com eles em geral e os rejeitar completamente. Isto é ainda mais seriamente para ser observado quando estas pessoas afirmam para si mesmas uma autoridade maior na igreja, como o papa, os cardeais e os bispos. Isto somos instruídos a fazer não apena pela Sagrada Escritura, mas também por todos os antigos concílios da igreja.”7
É por meio deste espírito humilde e pastoral, robusto e aguçado, de estar pronto a ouvir e a obedecer a quem quer que seja, se este estiver pronto a ouvir e a obedecer à voz de Cristo, que advém a sua luta mais famosa: a busca pela unidade cristã.
2.1 A unidade cristã
A unidade cristã foi a maior paixão de Martin Bucer. Foi por ela que ele dedicou todo o seu ministério. Tal ênfase pode parecer estranha a nós, uma geração tão ramificada, pluralista e individualista. Porém, quisera lembrarmos que nosso Senhor, em seus últimos suspiros de vida junto dos discípulos, orava por eles e suplicava ao Pai por uma coisa estrita: que eles fossem um.8 Esta é a paixão e o grande desejo de nosso Senhor Jesus Cristo, e Bucer desejou seguir os passos de nosso Mestre também neste aspecto.
Henry Strohl, exímio conhecedor tanto da vida quanto da teologia dos principais reformadores, sintetizou magnificamente a postura do reformador de Estrasburgo:
“Bucer, reformador de Estrasburgo, tinha largueza de espírito e a faculdade de compreender e assimilar, que o qualificavam para ser elemento de ligação entre os grandes espíritos de seu tempo. Sabia escutar e, assim, recolher os fragmentos de verdade contidos no pensamento de uns e outros, sem, contudo, duvidar de suas próprias aptidões. Buscava os elementos de verdade viva para integrá-los numa síntese crescente em riqueza e profundidade. Era receptivo, e cedia facilmente às influências; mas sabia também afirmar-se com vigor.”9
Bucer, ao contrário de Lutero, detinha um espírito de mais cautela, paciência e tato com seus inimigos e contraditores:
“O espírito conciliador de Bucer – que sempre procurou entender as sinceras intenções de seu contraditores – revela-se na conclusão de sua obra quando declara que não deseja ferir a ninguém com uma palavrinha que fosse.”10
Não podemos adentrar o seu espírito interior para saber o que tanto foi eficaz para a construção deste espírito harmonioso, mas a personalidade de Bucer parece ter realmente sido forjada por Deus desde o início para esta luta pela unidade cristã. Podemos nos lembrar da principal fonte de renda de sua família – venda de barris de vinho da Alsácia para toda a Europa. Talvez este contato inicial de Bucer com várias classes de pessoas, de várias nacionalidades e culturas distintas, teria forjado nele um tato diferenciado com as mais diversas personalidades, produzindo nele a habilidade de se relacionar com todos. Como bem sabemos, o bom comércio exercido por sua família não foi tanto devido à capacidade de negociar que detinham, mas especialmente por conta da qualidade do vinho no mercado. Assim também, o fato de Bucer não ser tão destacado nos dias atuais como o são Lutero e Calvino (fato este que não acontecia em sua época, pois era considerado em pé de igualdade a estes dois reformadores) seja talvez porque não se encontra nele uma personalidade tão radical como a de Lutero, ou um espírito intelectual tão brilhante como o de Calvino. Com relação a personalidade e a característica mais intrínseca e distintiva de Bucer, Strohl sintetizou que ele:
“não tem […] o poder criador do gênio; não obstante, é possuidor de notável aptidão para decantar ideias alheias e fazer a liga das que mereciam ser preservadas.”11
2.1.1 O diplomata entre os irmãos
A definição de diplomacia, segundo os significados mais básicos, é a de um instrumento da política externa, para o estabelecimento e desenvolvimento dos contatos pacíficos entre os governos de diferentes Estados, pelo emprego de intermediários, mutuamente reconhecidos pelas respectivas partes. O diplomata não é apenas responsável por resolver os impasses entre os diferentes governos e lideranças, mas também deve representar bem o seu próprio governo, especialmente nas áreas que mais caracterizam o representado.
Martin Bucer, desde o início de seu serviço à igreja de Cristo, detinha em sua pessoa, teologia e prática, a personalidade de um conciliador, um diplomata da fé. Já em 1521, impressionantemente, em seus primeiros passos na fé evangélica, antes de sua excomunhão, de seu matrimônio, e de seu ministério pastoral em Estrasburgo, Bucer ficou encarregado de moderar as negociações secretas entre Lutero e Jean Glapion, o confessor do Imperador Carlos V.12
Entre 1524 e 1548, tempo médio que compreende o início e o fim do ministério pastoral em si de Bucer, ele procurou interagir com setores díspares da Reforma e mesmo da Cristandade em geral: luteranos, anabatistas perseguidos, calvinistas, católicos romanos e anglicanos. Nas discussões que se davam, Bucer participava ora como organizador, ora como iniciador, ora como chefe negociador.13 Ele reuniu-se com os diversos segmentos, correspondeu-se frequentemente com Lutero e Zwínglio, entre outros líderes da Reforma Protestante, bem como com líderes dentro da Igreja Católica Romana.
Especialmente em seu longo ministério pastoral em Estrasburgo, Bucer foi o receptor de vários refugiados perseguidos, inclusive o próprio João Calvino, o qual inclusive hospedou por um tempo em sua casa, dando-lhe orientações diversas, sobretudo teológicas. Bucer representava em si mesmo e em sua ênfase eclesiológica essa busca pela unidade cristã, e fez de Estrasburgo um centro de recuperação, orientação, treinamento e ajuntamento da fé. Nas palavras de Robert Stupperich:
“Dentro de poucos anos, Bucer havia feito um nome para si mesmo em Estrasburgo como um zeloso e hábil chefe negociador. Eram raras as ocasiões em que ele não estava envolvido.”14
Mesmo após o término do ministério pastoral de Bucer em Estrasburgo, quando ele esteve auxiliando Thomas Cranmer na reforma da Inglaterra a partir de 1549, intermediou lá uma disputa com relação às vestimentas do bispo anglicano. John Hooper não queria ser aparamentado como um bispo nas vestimentas tradicionais. Cranmer chamou Bucer para a conversa, o qual criticou ambos os lados. Segundo Bucer, havia problemas mais importantes do que questões de roupas, como, por exemplo, o treinamento teológico da congregação.15 Isto ele fez, mesmo tendo, ao longo da vida, criticado o uso das vestes litúrgicas aos ministros. Porém, o mais importante para Bucer era a paz entre os cristãos nas coisas essenciais. Em outra preleção sobre Efésios (1.19-23), Bucer enfatiza que “[…] se houver algo não especificamente mencionado na Palavra, então a unidade nessa coisa não é necessária, mas há liberdade concedida nessas coisas.”16
Com relação aos católicos, não foram poucas as vezes que Bucer buscou traçar conversas e negociações, especialmente antes do Concílio de Trento e a decisão final contra os protestantes. Interessante notar que um historiador católico do Concílio de Trento o chama de o “apóstolo da harmonia”.17
O caso pelo qual Bucer ficou mais famoso pelo seu esforço em prol da unidade cristã foi o conflito entre Lutero e Zwinglio, que discordavam ferrenhamente quanto à presença de Cristo no sacramento da ceia. Para Zwinglio, a frase “isto é o meu corpo” deveria ser interpretada como “isto significa o meu corpo”, tal como, em outras passagens bíblicas, frases como “Cristo é a videira” (Jo 15.1), “Cristo é a Rocha” (1Co 10.4), “Eis o Cordeiro de Deus” (Jo 1.29). Lutero, porém, objeta ser a interpretação de Zwinglio “fantasia subjetiva”,18 que não leva em consideração “a arte da linguagem e a gramática”. Zwinglio afirmou que Cristo não pode estar presente na ceia, pois subiu ao céu e está sentado à destra de Deus. Lutero, porém, responde que “a direita de Deus está em toda parte”.19 Em resumo, para Lutero, o corpo de Cristo está em, com e sob o pão, e ele realmente se dá aos participantes. Zwinglio, por sua vez, acreditava ser a ceia apenas um memorial simbólico da morte de Cristo.
Em 1528, Bucer publicou em Estrasburgo um documento denominado “Comparação entre Dr. Lutero e a contraposição quanto à Ceia de Cristo. Diálogo, isto é, uma conversação amigável”.20 Em 1529, ocorrera a promulgação do protocolo da Dieta de Spira em 19 de abril de 1529, que limitava a liberdade religiosa, ameaçando extinguir zwinglianos e anabatistas. Isto levou seis príncipes e catorze cidades reinóis germânicas a um ato de protesto. Os protestantes arquitetaram planos de defesa militar e alianças internas. Para isso, era necessária uma aproximação entre Lutero e Zwinglio. Lutero, porém, se opunha a qualquer aliança que fosse contra a vontade do imperador. Isso mudou quando Lutero foi convencido, assim como Zwinglio, especialmente por movimentação de Martin Bucer. Assim, em 30 de setembro de 1529 reuniram-se em Marburgo os principais reformadores alemães e suíços, com vistas à unificação do movimento da Reforma. Lutero e Melanchton, de Wittenberg, Zwinglio e Ecolompádio da Suiça e Bucer de Estrasburgo. Os reformadores concordaram em catorze dos quinze artigos doutrinários discutidos. Contudo, no décimo quinto artigo, que tratava da Ceia do Senhor, vieram à tona as divergências entre Lutero e os suíços. Conta-se que Lutero escreveu com um pedaço de giz, sobre a mesa, para que todos pudessem ver: Hoc est corpus meum (este é o meu corpo),21 e Zwinglio respondera fazendo citação de João 6.63: “O Espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita.”
Ainda que as partes não tenham se resolvido e a aliança política não tenha prosperado, a redação final do artigo, depois do debate, por influência de Bucer, pedia que houvesse “amor cristão” entre as partes:
“Em 15º lugar, todos cremos e atestamos acerca da Santa Ceia do nosso querido Senhor Jesus Cristo que deveríamos usar ambas as formas como instituídas por Cristo; que também a missa não é uma obra através da qual alguém possa obter graça para o outro, estando este vivo ou morto, também que o sacramento do altar é um sacramento do verdadeiro corpo e sangue de Jesus Cristo, e que a participação espiritual deste corpo e sangue é especialmente necessária para cada cristão; igualmente que o uso do sacramento foi dado e ordenado por Deus, tal como também foi a palavra do Todo-Poderoso Deus, para que as consciências fracas fossem movidas à fé através do Espírito Santo; e, mesmo que não tenhamos chegado a um denominador comum a respeito de se o verdadeiro corpo e sangue está ou não corporalmente no pão e no vinho, ainda assim cada parte deveria mostrar amor cristão para com a outra, até onde a consciência permitir, e ambas as partes pedirem diligentemente a Deus que pelo seu Espírito ele nos queira confirmar na compreensão correta.”22
Após a morte de Zwinglio em 1531 numa batalha, Bucer se tornou o cabeça da Reforma na Alta Alemanha e na Suíça. O grande sucesso de Bucer foi conquistado na Concórdia de Wittenberg, em 1536, onde os reformadores liderados por Bucer assinaram uma aliança com os luteranos, assumindo o ponto de vista deles quanto à ceia e integrando o movimento reformado na suíça ao movimento luterano. O ponto de Bucer era afirmar que a mais importante mudança já havia ocorrido: luteranos e os demais já não acreditavam mais, como os católicos, na presença de Cristo dentro do pão, como se fosse cozido internamente, mas na presença espiritual de Cristo na ceia. Esta era a posição de Bucer, da presença real e espiritual de Cristo no sentido sacramental,23 que foi desenvolvida na Confissão Tetrapolitana, em 1530, e, inclusive, abraçada e desenvolvida posteriormente por João Calvino.
2.2 A unidade da fé
Porém, ao contrário do que se pensa e ao contrário do vemos em muito dos movimentos ecumênicos contemporâneos, Bucer não buscava a unidade cristã a ponto de abrir mão de pontos inegociáveis da fé. O movimento conciliador de Bucer era bem alicerçado teologicamente e centrado no Evangelho de Cristo. Para ele, a verdadeira unidade cristã consistia “não em ter as mesmas cerimônias, mas em ter a mesma doutrina, fé, e correta administração dos sacramentos”.24 Para Bucer, a verdadeira unidade cristã brotaria da fé e seria sustentada pela fé. O motivo disto é claro: Bucer não pensava o conceito de fé como o temos em nossa contemporaneidade, como uma simples crendice ou apenas uma assimilação de (alguns) fatos a respeito de um ser, quase que impessoal e, com toda flexibilidade, chamado Deus.
Bucer pensava a fé, pistis, em termos de persuatio, que significa convicção e não apenas assentimento ou crença. Para Bucer, todos os crentes verdadeiros possuem esse entendimento e reconhecem que é o próprio Deus quem implanta essa certeza inabalável em nós. Esta certeza deve abarcar tudo quanto Deus diz a respeito de si mesmo, daí a necessidade extrema de se conhecer a Deus como ele mesmo declara ser. Bucer também pontuava a extrema necessidade de se depositar esta fé em Deus no mediador proposto por Deus, o próprio Salvador Jesus Cristo. Disto percebe-se que os reformadores não ficaram apenas conhecidos por resgatar antigas doutrinas, especialmente o centro da fé bíblica, o Evangelho de Cristo Jesus, mas também por reafirmarem as doutrinas principais da Palavra de Deus e buscarem conformação a elas. Para os reformadores, não apenas a doutrina da fé como um dom de Deus25 era importante, mas também o aspecto em que esta fé tinha como objeto principal e central o próprio Deus, digno de toda glória. Para os reformadores em geral, com destaque a Bucer, Deus deveria ser o centro de toda teologia e prática da cristandade. Como afirma Franklin Ferreira, o brado de glória somente a Deus, Soli Deo Gloria, “é o tema que coroa esse importante movimento do século XVI”.26
Bucer, de acordo com seu espírito manso e conciliador, enxergava na imagem do Bom Pastor a ênfase divina de solicitude a cada uma das ovelhas. Este senso do cuidado divino para com as ovelhas o impactou tanto que “Bucer substituiu, nas liturgias estrasburguesas, todas as invocações de Deus pela palavra Pai” . Segundo ele, a verdadeira fé “reconhece a bondade de Deus, tem dela profunda e constante convicção, e sempre é acompanhada de renovação total do ser”
2.3 A unidade do Espírito: santificador e unificador
Esta renovação total do ser, que desembocaria na unidade da fé, segundo Bucer, é produto do Espírito santificador em nós. O Espírito Santo não apenas produz em nós a fé no Deus trino, aplicando em nós as graças da regeneração, da justificação e da adoção, mas também da santificação. Por esta razão, August Lang denominou Bucer como o “teólogo do Espírito Santo”.29 Sua ênfase em pneumatologia (doutrina do Espírito Santo) com respeito tanto à vida cristã quanto à eclesiologia é uma de suas características teológicas mais proeminentes. Para a teologia de Bucer, “a posição e a atividade do Espírito Santo é fundamental”, assim como para o Novo Testamento.30 A descrição a seguir deixa isto patente:
“Mesmo que Bucer tenha colocado Cristo no centro, assim como fizeram os demais reformadores, seus pensamentos circulavam bem mais intensamente em torno de um entendimento do Espírito Santo.”31
Com respeito às obras e a santificação em relação ao sola fide na justificação, o reformador não tinha dificuldades no aparente paradoxo entre fé e obras, justamente porque não pensava na fé em termos de intelecto ou mentalidade, mas de integralidade do ser, com emoções e sentimentos. Conclui-se que o paradoxo para Bucer não era entre fé e obras, mas entre obras feitas por fé e obras não feitas por fé.
Bucer destacava-se não apenas por defender a doutrina da justificação pela fé junto do espírito evangélico da reforma, mas especialmente por conectá-la, biblicamente, com a doutrina da santificação, exatamente no ponto em que a Igreja Católica falhava, misturando as duas doutrinas. A fé que justifica tem o seu efeito santificador e nunca está simplesmente sozinha. Porém, ele fazia questão de deixar claro que é somente “pela fé que se criam em nós o amor a Deus e o zelo pela virtude.”32
Um exemplo claro disto é que, ao passo que Lutero e Melanchton nos primeiros anos da Reforma, em Wittenberg, preferiram abrandar, em algum grau, o tema da eleição, “o temor de Bucer era que a lembrança constante, e necessária, daquilo que o cristão pode e deve fazer obscurecesse a soberana iniciativa de Deus na vida dos indivíduos e da coletividade”.33 Disto advém o desenvolvimento e a pregação de Bucer constante sobre o tema da eleição. Isto comprova que o seu zelo ao enfatizar o aspecto santificador da fé dada aos homens por Deus não sustenta a possibilidade de Bucer creditar a justificação às próprias obras humanas. Neste aspecto importa lembrar, segundo Bucer, a advertência de Tiago de que ninguém é justificado por uma fé que seja estéril, morta, e, portanto, falsa.34 Em suas definições, portanto, Bucer tanto destaca o efeito santificador da fé que este se torna uma característica de seu conceito de justificação também.
Em Bucer, a noção de uma providência divina que se estende a todos os domínios da vida, sendo Deus, através do Espírito Santo, tanto o doador quanto o empoderador da fé e da vida cristã, que, em seu programa de reforma apresentado ao rei da Inglaterra, em 1551, em seu livro De Regno Christi (O Reino de Cristo), ele prediz que a volta do Evangelho não só trará novo impulso à vida espiritual da Igreja, da escola e do serviço assistencial, mas também produzirá renovação de vida nos domínios mais profanos como a agricultura, a indústria, o comércio, as artes e até os esportes. Segundo Strohl, “pode-se concluir que, para Bucer, no apogeu da evolução do seu pensamento, não havia nenhum setor da vida que fosse excluído da solicitude paternal do Criador”.35 Em outras palavras, o que vemos bem destacado nos escritos de João Calvino quanto à ênfase na santificação, pode e deve ter derivado existência da influência de Bucer ao identificar nas Escrituras que o mesmo Deus que declara pecadores justo, é o Deus que, em sua providência pelo Espírito Santo, através da fé, santifica estes pecadores. Bucer, assim como nosso Senhor Jesus, não fazia distinção entre o amor a Deus e o amor ao próximo; pelo contrário, ele fazia a ligação inevitável entre uma prática e outra:
“Quem ama a Deus, pai de infinita benevolência, só deseja tudo fazer por ele em gratidão e reconhecimento. Quando compreende que é da vontade de Deus que nos entreguemos, com todas as forças, ao serviço do próximo, assim o faz, sem reservas e sem nada esperar em troca. Tão somente para servir a Deus e testemunhar-lhe seu reconhecimento, o cristão coloca a serviço dos irmãos tudo quanto sabe serem dons de Deus: sua alma, seu corpo, sua honra e seus bens […]. É para esta qualidade de vida que fomos criados.”36
Por que é importante analisarmos o entendimento de Bucer com respeito da santificação quando procuro responder quais os parâmetros de Bucer para a busca da unidade cristã? Porque, para ele, o êxito da unidade cristã, que não negocia os valores essenciais da fé, se encontra em um aspecto principal, que é o grande propósito da santificação em nós: que nos amemos uns aos outros. Afinal, essas duas coisas são inseparáveis na oração sacerdotal de Jesus em João 17: unidade e santificação. Ao passo que alguns buscam unidade sem santificação, sem se atentarem e se agarrarem à verdade que nos santifica, outros acabam por abandonar a busca pela unidade em prol de uma suposta “santificação”. Mas, como é evidente para nós no registro da oração do nosso Cristo, o Senhor nunca fez separação entre essas duas coisas, porque ambas são produzidas num mesmo contexto. Deus usa a a verdade para produzir santificação, e esta santificação faz transbordar o amor de uns para com os outros em torno desta verdade, e aí temos a unidade cristã.
2.4 Instrução sobre o amor cristão
Este é o título do primeiro livreto publicado por Martin Bucer, aos seus 32 anos. O título original, “Que ninguém deve viver para si mesmo, mas para os outros – e como tal pode alcançar tal fim”, destaca a importância do que tenho dito até então. O livro é dividido em duas partes principais. Na primeira, Bucer expõe o conceito deste amor cristão – “que ninguém deve viver para si mesmo, mas para os outros”. É assim que o próprio Bucer sintetiza a primeira parte:
“Para concluir, esta primeira parte deve ter deixado claro: que, de acordo com a ordem e mandamento do Criador, ninguém deve viver para si mesmo, mas cada homem deve, por amor a Deus, viver para o seu próximo e, por todos os meios, servi-lo em questões relacionadas tanto ao espírito quanto ao corpo; que essa obrigação recai acima de tudo sobre aqueles que foram chamados e estabelecidos a fim de promover o serviço público, tanto espiritual quanto secular; que Deus não poderia nos enviar uma praga maior do que homens que buscam a sua própria vantagem; que, quanto mais uma profissão é útil à necessidade da vizinhança geral e quanto mais promove o benefício de toda a comunidade, mais essa profissão é honrosa e cristã e deve ser alegremente ingressada e aceita por cada um. Finalmente, a nossa primeira parte mostra que vivemos nos últimos tempos, em que a injustiça prevalece e amor tornou-se extinto (Mateus 24:12); cada homem busca e conforma-se com uma vida fácil e deseja viver do trabalho dos outros, enquanto a vida cristã exige exatamente o oposto. O cristão entrega inclusive aquilo que lhe é justamente devido, está sempre pronto a ajudar os outros por seu trabalho e aceita não receber recompensa, agarrando-se nas palavras de Jesus: Mais bem-aventurado é dar que receber.
(Atos 20:35 ).”37
Na segunda parte, Bucer procura desenvolver como o cristão pode alcançar este fim – “não viver para si mesmo, mas para os outros”. Segundo ele, “somente a fé pode trazer e transmitir tal vida a nós”.38 Esta vida a que Bucer se refere ele a denomina como a vida que busca “viver para a glória de Deus e a utilidade de todas as criaturas, mas especialmente os homens”.39 Bucer lembra os seus leitores de que devem crer em todas as palavras de Deus, e que somente Deus pode tal coisa realizar por nós, inclusive crer e observar a lei que prescreve o nosso dever de amar o próximo como a nós mesmos.
O trecho a seguir ilustra bem o fato de que, para Bucer, Deus se utiliza da fé para fazer transbordar em nós o amor para com o próximo e, assim, alcançarmos a desejada unidade cristã:
“Somente a certeza de sermos filhos e herdeiros de Deus pode nos dar a segurança de já possuir o que é necessário tanto para o presente quanto o futuro. Só a fé verdadeira pode colocar o coração em paz. Então nosso coração reconhecerá que certamente nada lhe faltará […] Desta forma, assim que, pela fé, o coração que reconhece e mantém essas verdades, ele transbordará em amor e, então, estará completamente pronto para fazer bem a todos os homens, e desejoso de proclamar-lhes, ante de tudo, da inexprimível bondade de Deus […], pois tal é a natureza da verdadeira bondade que ela não consegue se conter, mas precisa derramar-se tão longe e amplamente quanto possível.”40
Bucer ainda afirma que a fé verdadeira é a fé abnegada: “A fé, por fim, remove de nós o amor a presente vida – suas honras, fortuna e prazeres -, amor que impede tanto de exercer amor e serviço verdadeiros ao próximo”.41 Desta forma, onde não se encontra esse fruto da abnegação, aí não há verdadeira fé.42
Conclui-se ao notarmos no pensamento acima, com elevada importância, que, para Bucer, a busca pela unidade cristã não se dá pela abnegação de doutrinas essências da fé, mas abnegação do próprio eu. É por isso que o apóstolo Paulo, na epístola aos Efésios, epístola amada de Bucer, propõe o termo “unidade da fé” (Ef 4.13). Para alcançar tal fim, Bucer sintetiza a direção final, que é abraçar verdadeiramente a Palavra de Deus verdadeiramente, similar à preocupação paulina ao alertar os efésios contra toda sorte de vento de doutrinas que induzem ao erro (cf. Ef 4.15): “a Palavra divina produz fé; a fé produz amor; o amor produz, como frutos, boas obras – após os quais, Deus nos dá uma herança eterna, uma vida inteiramente divina e abençoada. Amém”.43
Bucer verdadeiramente buscou seguir a “verdade em amor” (cf. Ef 4.15), buscando sempre a edificação do corpo de Cristo (cf. Ef 4.16). Realmente, utilizando-se das palavras do apóstolo Paulo, quando este testifica da fé e do amor abnegados de Timóteo, não temos outro, como Martin Bucer, “de igual sentimento que, sinceramente, cuide de vossos interesses; pois todos buscam o que é seu próprio, não o que é de Cristo Jesus”.44
Talvez a melhor síntese para o conceito da verdadeira fé na teologia de Bucer seja encontrado na Confissão Tretapolitana, apresentada ao Imperador Carlos V em nome das cidades alemãs de Estrasburgo, Memmingen, Lindau e Constança, da qual, como já dissemos, Bucer foi o principal compilador. Segue-se uma síntese de Strohl com relação com assunto:
“O artigo 3º diz que a fé que justifica e salva é a confiança criada pela ação conjugada da Palavra e do Espírito, ação esta da iniciativa de Deus. O artigo 4º insiste na necessidade de uma vida renovada. Não há salvação onde não há amor a Deus e semelhança com ele, porque Deus destinou os seus eleitos a serem iguais à imagem de seu Filho. A fé resulta em que, uma vez que recebemos suas bençãos, nós nos conformamos com Deus e procedemos com os homens como filhos de Deus. Toda ação de Deus em nós visa à nossa transformação para que tenhamos o selo de sua imagem. O artigo 5º começa recapitulando o 3º: o que precede a tudo, e do qual tudo o mais depende, é que Deus nos permite conhecê-lo fazendo, daí, nascer em nós a confiança em sua bondade, isto é, a fé da qual procede necessariamente a piedade e o gozo.45
A importância que Bucer destacava à integralidade da fé, fé esta que deveria atuar pelo amor e ser atestada na prática, ficava evidente a todos ao seu redor, especialmente àqueles que eram cuidados pastoralmente por ele em Estrasburgo. Foi lá, em uma das igrejas onde pastoreou, que ele ordenou que fossem escritas em letras grandes e colocadas no frontão do coro parte do texto de Mateus 25:
“Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes. […] Em verdade vos digo que, sempre que o deixastes de fazer a um destes mais pequeninos, a mim o deixastes de fazer. E irão estes para o castigo eterno, porém os justos, para a vida eterna.”46
2.5 Disciplina cristã
Outro fator que autentica a busca de Bucer pela unidade cristã, sem desvalorizar as doutrinas essências da fé, é a prática da disciplina eclesiástica, tão esquecida ou mal interpretada e praticada nos dias atuais.
Segundo Strohl, Bucer insistia na prática da disciplina rígida para suprimir os membros corruptos. Para ele, a disciplina bíblica era consideravelmente mais ampla do que a preocupação inquisitória e punitiva do Catolicismo. Amy Nelson Burnett, professora da Universidade de Nebraska, fez distinção entre a disciplina eclesiástica, um meio administrado pela igreja especificamente para correção de pecadores, e a disciplina cristã, ainda que Bucer, não tenha feito esta distinção, ao menos claramente. Bucer define bem seu pensamento sobre a disciplina bíblica ao escrever uma carta, da Inglaterra, aos pastores de Estrasburgo:
“[…] que todos os membros de Cristo reconheçam e abracem-se mais intima e amorosamente, e que eles edifiquem uns aos outros no conhecimento e na obediência do filho de Deus mais zelosa e eficazmente, e que os ministros das igrejas saibam, cuidem e protejam as ovelhas de Cristo, assim como Cristo, o Supremo Pastor, nos deixou exemplo… Em várias partes das Escrituras, o Senhor descreveu e nos legou esta disciplina, a qual também nós temos proclamado tão claramente por tantos anos em vida e em escritos e em sermões.”48
A imensa importância que Bucer legou à disciplina cristã é que, segundo ele, sua prática é o que iria transformar e distinguir a igreja das massas, os verdadeiros crentes em contraste com aqueles que simplesmente acham que por terem sido batizados e tomado parte nas mesmas cerimônias pertencem a igreja e à congregação de Cristo.49 Um dos propósitos de Bucer ao escrever seu “pequeno livro”, Sobre o Verdadeiro Cuidado das Almas, segundo ele mesmo, era:
“[…] mostrar a todos os piedosos cristãos como os líderes das seitas falsamente nos acusam de ensinar uma fé que é separada de frutos e obras, e que não insistem que nosso povo abrace a verdadeira comunhão e as marcas distintivas do corpo de Cristo e da disciplina cristã.”50
Todavia, a disciplina cristã não poderia ser aplicada de qualquer maneira. No mesmo livro, Bucer orienta os que desejam corrigir e ganhar pecadores de acordo com o mandamento de Cristo a que apliquem a disciplina com “um espírito gentil e um coração de verdadeira compaixão, capazes de tornar este alguém desejoso e preparado para carregar o fardo do pecador”.51 Ainda no mesmo livro, Bucer dedica cerca de trinta páginas (105-144) só para tratar sobre as penitências que a verdadeira disciplina cristã produz – confissão pública de pecados, a necessidade de confissão de pecados na igreja, necessidade de angústia e arrependimento sincero pelo pecado, arrependimento diário e contínuo na vida cristã, entre outros.Como Henry Strohl pontuou, se para Bucer “os Evangelhos de Jesus eram a porta de entrada de todo conhecimento cristão”,52 a disciplina cristã era a porta de saída para toda fé falsa.
2.6 O fundador da confirmação evangélica
Além de ser um dos principais reformadores a enfatizar a importante prática da disciplina cristã nas igrejas, Bucer é considerado o fundador da “confirmação evangélica”.53 Seu propósito era que as crianças da igreja concluíssem a instrução cristã por meio de uma confirmação de suas membresias na comunidade da igreja através de suas próprias confissões, após terem sido batizados na infância.
Comentando o trecho de Efésios 3.21, onde Paulo diz sobre a glória a ser dada a Deus, na igreja e em Cristo Jesus, ele testemunha a importância e o valor da confirmação da fé em geral e cotidiana dos filhos de Deus:
“Paulo diz ‘na igreja’ porque, em primeiro lugar e o mais importante, ele ama as comunhões santas em que as pessoas confirmam a fé umas das outras, onde ações de graças são realizadas e onde Deus é glorificado por muitas pessoas Esse senpre foi o costume dos santos. Veja o que dizem os salmos e outros livros sagrados: “Cumprirei os meus votos ao Senhor, na presença de todo o seu povo.”54
Em outras palavras, Bucer entendia a confirmação como uma renovação da confissão batismal. Sinteticamente, a confirmação, portanto, era compreendida como “adoção pessoal de fé como uma integração dos mais jovens à comunidade da igreja”.55 Isso foi bastante importante em quesito de diálogo e entendimento com os anabatistas, especialmente. Em tese, porque demonstrava preocupação com a participação e a responsabilização pessoal dos confessantes com a igreja e a fé, já que a prática do batismo infantil fora mantida. Junto da disciplina cristã, a confirmação evangélica de crianças e jovens demonstrava a preocupação por uma membresia saudável e verdadeiramente convertida, ideal que Bucer buscava com muito esforço. Posteriormente, a prática da confirmação passou a ser praticada em quase todas as igrejas luteranas e reformadas, tendo influenciado também a Igreja Anglicana.
2.7 Comunidades cristãs
Cabe aqui ainda um importante destaque para a eclesiologia de Bucer, a criação das “comunidades cristãs”. Preocupado com a responsabilidade da igreja em ser não apenas um corpo de pessoas distintas das demais, através das ferramentas neotestamentárias, mas também com a necessidade da igreja em ser sal da terra e luz do mundo, Bucer desejava impulsionar o movimento de reforma na sociedade em geral de Estrasburgo, que passava por uma crise de pobreza espiritual. Para isso, propôs iniciar vários grupos de reunião, aos quais ele chamava comunidades cristãs. Elas eram em menor número, em forma de núcleos, organizadas como igrejas domésticas:
“[…] [Bucer] propôs começar comunidades cristãs que fossem conscientes e que desejassem sem ressalvas ser sérias a respeito das demandas do Evangelho. Nestas comunidades deveria haver um nível maior de comprometimento e fidelidade visível à mensagem da Bíblia. As pessoas deveriam voluntariamente se submeter à disciplina da igreja baseada nos Dez Mandamentos.”56
Nestas comunidades cristãs ocorriam estudos bíblicos, orações e cuidado pastoral. Eles simplesmente estavam juntos um pelo outro, visando uma vida comunitária com o forte aspecto prático da fé cristã. O objetivo era que, por meio delas, a comunidade cristã em geral crescesse e fosse nutrida, e que as comunidades se tornassem padrões para a igreja maior. Essas comunidades cristãs deveriam ser independentes do controle estatal e do desejo de autoridades de liderar a igreja de Cristo, outro importante aspecto na teologia e no pensamento de Bucer.
Haviam listas com os nomes dos membros e eles eram, regularmente, visitados pelos pastores. Os membros deveriam ser verdadeiramente comprometidos uns com os outros, porque, segundo Bucer:
“[…] Tudo que é atribuído à igreja é atribuído a ela na medida em que consiste em indivíduos aos quais essas coisas são atribuídas, e nada pode ser ensinado a toda a igreja, a não ser por meio de seus membros individuais. É verdade que Deus ama a comunhão e, por isso, comunica sua graça muito maravilhosamente a congregações e assembleias santas, mas, mesmo assim, uma assembleia não tem nada que não lhe seja concedido por seus membros individuais.”57
A propósito, as comunidades cristãs eram destinadas a servir a causa da unidade. Isto é devido ao fato de que Bucer estava convencido, primeiramente com base em Efésios 4, que os cristãos maduros eram a pré-condição para a verdadeira unidade. Além disso, unidade e comunhão com a igreja era algo à ser praticado em grupos pequenos:
“O modelo que Bucer desenvolveu começou como uma união voluntária de cristãos comprometidos e tinha como principal missão ganhar , pouco a pouco, a totalidade da comunidade cristã da cidade. Os membros da “comunidade cristã” deveriam escolher homens em cada paróquia os quais deveriam aconselhar, ensinar e trabalhar junto com os pastores e os diretores enquanto exerciam a função supervisora. Bucer aparentemente esperava, assim, prevenir grandes comunidades e pequenos grupos de se racharem. Bucer não deixou dúvida de que ele via isso como algo decisivo e que deveria determinar e influenciar todas as coisas […]”58
3 Considerações finais
A Catedral de Estrasburgo foi terminada em 1439, tornando-se o mais alto edifício do mundo entre 1625 a 1874, e permanecendo como a mais alta igreja do mundo até 1880, quando foi ultrapassada pela Catedral de Colônia, na Alemanha. Assim também, o legado de Martin Bucer permanece como um dos mais altos da História Cristã. Sua altitude não é tanto ligada a um senso de grandiosidade ou de genialidade, como é nítido em Calvino; sua grandiosidade é medida pela hábil desenvoltura em se fazer servo e menor que todos, a fim de poder servir a todos.
Esse importante líder protestante do século dezesseis, grandemente ignorado nos dias de hoje, tem o seu túmulo bem distante do lugar de seu nascimento na Alsácia, na tríplice fronteira entre França, Alemanha e Suíça — e tudo isto talvez seja uma simbólica geografia para o perfil daquele notável reformador, de quem luteranos, anglicanos, reformados e igrejas livres reverenciam a memória. Certamente “a ausência de uma tradição associada ao seu nome produziu uma falta de interesse por ele. Existem luteranos, calvinistas e menonitas, mas não existem “bucerianos”.59 Tudo o que Bucer produziu e conquistou o fez sem estabelecer uma denominação e sem ser protegido ou garantido por uma autoridade de ensino associada com algum movimento específico.
Cito as palavras de Thomas Schirrmacher, diretor do Martin Bucer Seminar, na Alemanha, através das quais ele também concluiu sua breve biografia de Bucer, pois não temos como concordar mais a respeito da relevância de Bucer como um modelo para o nosso tempo: “De diversas formas, Bucer estava bem à frente do seu tempo e é um duradouro modelo para nós”.60 O desejo de Calvino por homens “piedosos e mais bem instruídos […], de mente tranquila e são juízo”61 num contexto de divisão e imaturidade, de efervescências sectárias e jocosas, é personificado na pessoa do reformador Martin Bucer. Ainda, meu propósito ao escrever esta breve artigo se assemelhou ao propósito de Henry Strohl ao escrever sua obra “O pensamento da Reforma”. Que tal fim possa ser alcançado, sempre para a glória de Deus somente e a edificação plena de Sua Igreja:
“No curso de repetidas leituras de seus escritos [dos reformadores], sempre nos pareceu que uma visão comum constituía o fundamento da pregação e dos ensinos teológicos dos iniciadores da Reforma. O plano do presente trabalho visa, exatamente, por em evidência essa realidade. Da mesma forma, quando comparamos as opiniões emitidas sobre vários temas mais específicos, não podemos deixar de ver a profunda concordância entre si e, por vezes, a quase identidade das expressões a que se resumem. As inúmeras citações das obras principais permitirão ao leitor fomular juízo próprio e ver se realmente a segunda geração da Reforma não exagerou as divergências que na origem, admitia-se, poucos consideravam ser irredutíveis. No momento em que a Igreja Cristã reexamina as bases de sua unidade, e em que o Protestantismo volta-se, com esse propósito, para as luzes dos seus pais espirituais, é proveitoso verificar o que há de comum no testemunho dos antigos. O resultado pode vir a ser mais uma etapa na realização da vontade de Cristo para que todos sejam um.”62
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1BUCER, Martin. “Concerning the True Care of Souls” / Martin Bucer ; translated by Peter Beale; Carlisle, PA, USA: The Banner of Truth Trust, 2009. 218p. Introduction.
2“Ibid”. Página 1 (tradução minha)
3“Ibid”. Páginas 1-4 (tradução minha)
4BUCER, Martin. “Concerning the True Care of Souls” / Martin Bucer ; translated by Peter Beale; Carlisle, PA, USA: The Banner of Truth Trust, 2009. 218p. pagina 32 (tradução minha)
5“Idem”
6BRAY, Gerald L. Comentário Biblico da Reforma – Galatas e Efésios/ Gerald L. Bray; traduzido por Markus Hediger, Vagner Barbosa, Regina Ambrogi Avelar e Heber Carlos Campos Jr._ São Paulo: Cultura Cristã, 2013. Pagina 301
7BUCER, Martin. “Concerning the True Care of Souls” / Martin Bucer ; translated by Peter Beale; Carlisle, PA, USA: The Banner of Truth Trust, 2009. 218p. Pagina 35 (tradução minha)
8(C.F João 17)
9STROHL, Henri. “O Pensamento da Reforma” / Henry Strohl; tradução de Aharon Sapsezian; São Paulo, SP: ASTE, 1963. 251p.pg. 20
10“Ibid”. Pagina 46
11STROHL, Henri. “O Pensamento da Reforma” / Henry Strohl; tradução de Aharon Sapsezian; São Paulo, SP: ASTE, 1963. 251p.Pagina. 20.
12(Martin Brecht. Martin Luther. Vol. 1. Op. Cit., paginas. 428-429, tradução minha)
13SCHIRRMACHER, Thomas. “Advocate of Love – Martin Bucer as Theologian and Pastor; Bonn, Germany: Verlag für Kultur und Wissenschaft, 2013. 101p. pg. 59, citação numero 207. (tradução minha)
14“Ibid”. Pagina 59, citação numero 208 (tradução minha)
15“Ibid”. Pagina 61 (tradução minha)
16BRAY, Gerald L. Comentário Biblico da Reforma – Galatas e Efésios/ Gerald L. Bray; traduzido por Markus Hediger, Vagner Barbosa, Regina Ambrogi Avelar e Heber Carlos Campos Jr._ São Paulo: Cultura Cristã, 2013.p. 301
17SCHIRRMACHER, Thomas. “Advocate of Love – Martin Bucer as Theologian and Pastor; Bonn, Germany: Verlag für Kultur und Wissenschaft, 2013. 101p. citação 218, pg. 60- Hubert Jedin (tradução minha)
18(Lutero, M. Da Ceia de Cristo – Confissão, Obras Selecionadas 4, p. 230)
19“Ibid”. Pagina 257
20KLEIN, Carlos J. “Os Sacramentos na Tradição Reformada” / Carlos J. Klein ; São Paulo, SP: Fonte Editorial, 2005. 380p.
21(Lindsay, T., Op. Cit., p. 36) (tradução minha)
22http://www.ctsfw.net/media/pdfs/BetoMarburgColloquyof1529.pdf (tradução minha)
23(Tüchle, Germano, Nova História da Igreja, vol. III, Pagina. 77)
24BUCER, Martin. “Concerning the True Care of Souls” / Martin Bucer ; translated by Peter Beale; Carlisle, PA, USA: The Banner of Truth Trust, 2009. 218p. Pagina 34 (tradução minha)
25(cf. Ef 2.8, Tt 1.1, 2Ts 2.3, Fp 1.29)
26FERREIRA, Franklin. Pilares da fé: a atualdiade da mensagem da Reforma/ Franklin Ferreira. – São Paulo: Vida Nova, 2017. 208 (p. 163)
27STROHL, Henri. “O Pensamento da Reforma” / Henry Strohl; tradução de Aharon Sapsezian; São Paulo, SP: ASTE, 1963. 251p. (p. 61)
28“Ibid”. Pagina 46
29SCHIRRMACHER, Thomas. “Advocate of Love – Martin Bucer as Theologian and Pastor; Bonn, Germany: Verlag für Kultur und Wissenschaft, 2013. 101p. (p. 21) (tradução minha)
30“Ibid”. Pagina 21 (tradução minha)
31“Ibid”. Pagina 22(tradução minha)
32STROHL, Henri. “O Pensamento da Reforma” / Henry Strohl; tradução de Aharon Sapsezian; São Paulo, SP: ASTE, 1963. 251p. (p. 46)
33“Ibid”. Pagina 31
34“Ibid”. Pagina 46
35“Ibid”. Pagina 158
36STROHL, Henri. “O Pensamento da Reforma” / Henry Strohl; tradução de Aharon Sapsezian; São Paulo, SP: ASTE, 1963. 251p.– (p. 100)
37(BUCER, Martin. “Instruction in Christian Love” / Martin Bucer; translation by Paul Traugott Fuhrmann; Wipf & Stock Pub, Eugene/Oregon, 2008 (p. 40-41) (tradução minha)
38“Ibid”. Pagina 42 (tradução minha)
39“Ibid”. Pagina 43 (tradução minha)
40“Ibid”. Pagina 45-46 (tradução minha)
41BUCER, Martin. “Instruction in Christian Love” / Martin Bucer; translation by Paul Traugott Fuhrmann; Wipf & Stock Pub, Eugene/Oregon, 2008, (p. 47) (tradução minha)
42“Ibid”. Pagina 48 (tradução minha)
43“Ibid”. Pagina 52 (tradução minha)
44(cf. Filipenses 2.20-21 Almeida Revista e Atualizada)
45STROHL, Henri. “O Pensamento da Reforma” / Henry Strohl; tradução de Aharon Sapsezian; São Paulo, SP: ASTE, 1963. 251p. (p. 101)
46Mateus 24.40, 45-46 (Almeida Revista e Atualizada)
47“Ibid”. Pagina 214
48BUCER, Martin. “Concerning the True Care of Souls” / Martin Bucer ; translated by Peter Beale; Carlisle, PA, USA: The Banner of Truth Trust, 2009. 218p. (pagina 17) (tradução minha)
49BUCER, Martin. “Concerning the True Care of Souls” / Martin Bucer ; translated by Peter Beale; Carlisle, PA, USA: The Banner of Truth Trust, 2009. 218p (p. 27) (tradução minha)
50“Ibid”. Pagina 32 (tradução minha)
51“Ibid”. Pagina 102 (tradução minha)
52STROHL, Henri. “O Pensamento da Reforma” / Henry Strohl; tradução de Aharon Sapsezian; São Paulo, SP: ASTE, 1963. 251p.(p. 82)
53SCHIRRMACHER, Thomas. “Advocate of Love – Martin Bucer as Theologian and Pastor; Bonn, Germany: Verlag für Kultur und Wissenschaft, 2013. 101p. (p. 31) (tradução minha)
54De Martin Bucer – BRAY, Gerald L. Comentário Biblico da Reforma – Galatas e Efésios/ Gerald L. Bray; traduzido por Markus Hediger, Vagner Barbosa, Regina Ambrogi Avelar e Heber Carlos Campos Jr._ São Paulo: Cultura Cristã, 2013. (p.348)
55SCHIRRMACHER, Thomas. “Advocate of Love – Martin Bucer as Theologian and Pastor; Bonn, Germany: Verlag für Kultur und Wissenschaft, 2013. 101p. (p. 31) (tradução minha)
56SCHIRRMACHER, Thomas. “Advocate of Love – Martin Bucer as Theologian and Pastor; Bonn, Germany: Verlag für Kultur und Wissenschaft, 2013. 101p. (p. 38-39) (tradução minha)
57De Martin Bucer – BRAY, Gerald L. Comentário Biblico da Reforma – Galatas e Efésios/ Gerald L. Bray; traduzido por Markus Hediger, Vagner Barbosa, Regina Ambrogi Avelar e Heber Carlos Campos Jr._ São Paulo: Cultura Cristã, 2013- (p. 301)
58SCHIRRMACHER, Thomas. “Advocate of Love – Martin Bucer as Theologian and Pastor; Bonn, Germany: Verlag für Kultur und Wissenschaft, 2013. 101p. (p. 39) (tradução minha)
59SCHIRRMACHER, Thomas. “Advocate of Love – Martin Bucer as Theologian and Pastor; Bonn, Germany: Verlag für Kultur und Wissenschaft, 2013. 101p. (p.10) (tradução minha)
60“Ibid”. Pagina 80 (tradução minha)
61FERREIRA, Franklin. Pilares da fé: a atualdiade da mensagem da Reforma/ Franklin Ferreira. – São Paulo: Vida Nova, 2017. 208 p. (p. 29)
62STROHL, Henri. “O Pensamento da Reforma” / Henry Strohl; tradução de Aharon Sapsezian; São Paulo, SP: ASTE, 1963. 251p. (p. 251).