Christianity Today, junho de 2015
Quando Kevin Vanhoozer retornou aos Estados Unidos após um ano de ministério na França, fez algo criativo, como lhe é peculiar. Ele queria entrar no seminário. Já tinha seu histórico escolar da graduação cheio de matérias em Bíblia e teologia; o único problema é que já era agosto, e as aulas começariam em questão de dias. Vanhoozer precisava achar um jeito de convencer um seminário a aceitá-lo, e rápido.
Pianista com formação clássica, Vanhoozer e outros da Greater Europe Mission [Missão para a Grande Europa] tinham passado um ano conversando com públicos desvinculados da igreja sobre como ‘o prazer da música’ apontava para Cristo. Entusiasmado com o sucesso da missão, concluiu: ‘Não tenho tempo de prestar para seminários, quero que eles prestem para mim’. Então, bolou ‘uma inversão ou paródia do formulário de recomendação’, diz ele, com questões como: ‘Quais são os pontos fortes e fracos do seminário?’ Sem demora, despachou sessenta formulários.
‘Os professores não entenderam’, agora ri Vanhoozer.
Com exceção de um. Os olhos de Vanhoozer brilham ao descrever o que aconteceu. John Frame, então professor no programa especial do Seminário Teológico Westminster, em Filadélfia, respondeu por escrito. No formulário, sob o tópico ‘fraquezas’, rabiscou: ‘Totalmente depravado’. Para um teólogo calvinista, foi uma piada para morrer de rir. Vanhoozer amou.
Em muitos sentidos, sua história de ingresso no seminário capta muito do que você precisa saber sobre Kevin Vanhoozer. Antes docente na Universidade de Edimburgo, agora professor de teologia sistemática na Escola de Teologia Evangélica Trinity, em Deerfield, Illinois, Vanhoozer é um dos maiores nomes na teologia acadêmica. Autor de seis livros e editor de pelo menos mais uma dúzia, suas sessões nos encontros anuais da Academia Americana de Religião e na Sociedade Teológica Evangélica estão sempre lotadas.
Mas, em meio a toda sua pesquisa inovadora e anos de docência, Vanhoozer se vê principalmente como alguém que pratica o ‘cuidado das palavras’.
‘A teologia é um exercício de construção de pontes’, diz ele. ‘Sempre tentamos alcançar pessoas’. A maneira como Vanhoozer o faz está em sua busca pelo ângulo vivo, visionário e criativo a partir do qual possa falar e escrever.
O que é ‘bíblico’?
Se você conhece o nome de Vanhoozer, existe uma grande chance de que seja por causa de seu trabalho em interpretação bíblica. A maior parte da pesquisa da primeira fase de sua carreira concentrou-se na autoridade das Escrituras na igreja. Vanhoozer mostrou aos cristãos a urgência de tornar-se intérpretes atentos que amam a Bíblia em toda sua glória, de uma diversidade surpreendente. Há um significado neste texto? virou obra padrão em muitas aulas de seminários em nível avançado desde sua publicação em 1998. Quando fiz aula sobre hermenêutica no Wheaton College no começo da década passada, o livro estava no topo da lista de leituras recomendadas. Os alunos ficaram alvoroçados com a obra.
Uma conversa na calada da noite com um colega de graduação me fez pegar o então recém-lançado livro de Vanhoozer chamado First Theology [Teologia primeira]. ‘Mostra como ler a Bíblia como cristão!’, falou com entusiasmo meu amigo. Vanhoozer estava investigando um território pouco explorado no pensamento evangélico, a saber, se existe uma maneira especial de ler para alguém que creia no Deus trino. ‘Qual seria a implicação se refletíssemos sobre a hermenêutica dentro de uma estrutura trinitária?’, pergunta Vanhoozer, remontando-se ao que buscava alcançar naquela época. Uma vez que a Bíblia realmente é a Palavra de Deus, não deveria haver um modo especial, direcionado por Deus, de como lidar com ela?
Nem sempre foi uma pergunta bem-vinda nos anos antes de Vanhoozer começar a publicar. Por décadas, os evangélicos dependeram de teóricos seculares como E. D. Hirsch para ditar os critérios para a interpretação bíblica. Hirsch tinha feito uma distinção precisa entre o significado da Bíblia e sua significação. O significado bíblico é fixo e imutável, compreendido pelo emprego do método de leitura correto. A significação, em contraste, está em constante mudança, dependendo do espaço cultural em que se vive.
Quando estudei a Bíblia em contextos acadêmicos evangélicos, estava imerso nesse pensamento. Aprendi a extrair o significado das Escrituras da mesma maneira como extraía o significado de qualquer outro livro. Deveria ler o texto em sua língua original, diagramar sua sintaxe, aprender seu contexto histórico e literário, e assim por diante. Somente depois, quando indagasse sobre a significação das Escrituras, precisaria da ajuda do Espírito Santo (ou era assim que eu pensava). Um mentor piedoso me disse: ‘Você não precisa do Espírito para entender o que a Bíblia significa. Isso você pode fazer sozinho, assim como qualquer incrédulo. Mas você precisa de fato do Espírito caso queira sujeitar sua vida àquele significado’.
Vanhoozer discordava, e ainda discorda. ‘Método nunca será suficiente sem a obra do Espírito ajudando-nos a discernir’, diz ele. Substituiu a nítida distinção de Hirsch entre significado e significação por critérios mais abertamente cristãos. Em novo prefácio a Há um significado neste texto?, Vanhoozer escreveu: ‘Deveríamos iniciar nossa reflexão sobre significado e interpretação como cristãos com o paradigma do Deus trino em ato comunicador’.
Ou, como diz Vanhoozer, a Bíblia é melhor definida como Deus fazendo coisas com palavras. Se quisermos fazer jus ao que a Bíblia é, temos de falar sobre o Espírito, com o Pai e o Filho, no começo, meio e fim da definição.
As histórias, poemas, cartas e visões na Bíblia não são simplesmente os produtos de autores humanos cheios de conhecimento divino. Antes, diz Vanhoozer, a Bíblia é a maneira de Deus dirigir-se à igreja e guiá-la, de nos dispensar sua aliança salvadora. Estudar os livros bíblicos em seus contextos históricos é, evidentemente, vital. Mas a Bíblia alcança seu presente propósito — de nos tornar semelhantes a Cristo — por causa do modo como Deus fala através dela, tempo presente. Como disse Vanhoozer em sua primeira publicação acadêmica, em 1986, ‘[a infalibilidade das Escrituras] significa que as diversas forças das Escrituras invariavelmente alcançarão seus respectivos propósitos’. Deus assegurará que sua Palavra não voltará vazia (Is 55.11). E nenhum método humano jamais conseguiria garantir tal resultado.
Ouvir a sinfonia completa
Mas o que significa dizer que Deus fala em e pelas Escrituras? A obra de Vanhoozer apareceu em uma época em que os teólogos evangélicos debatiam ferozmente sobre o assunto.
Quando Vanhoozer publicou seu primeiro ensaio sobre interpretação da Bíblia em 1986, os evangélicos já tinham entrado em um número de ‘batalhas pela Bíblia’ em lugares como o Seminário Teológico Fuller. Os conservadores sustentavam por quase uma década a Declaração sobre Inerrância Bíblica de Chicago, que afirma que ‘as Escrituras são sem erro ou engano em todos os seus ensinamentos’. O Princípio da Escritura — dito de forma simples, a Bíblia é a Palavra de Deus — já estava em discussão há anos, sendo muitas vezes refinado e ajustado, mas nunca abandonado.
A obra de Vanhoozer de certo modo abriu novos caminhos. Trilhando as pegadas de outros, encontrou uma forma de nem repudiar tudo o que veio antes nem simplesmente repeti-lo. (Como professor no seminário Trinity e membro da Sociedade Teológica Evangélica, Vanhoozer continua a afirmar a inerrância.) ‘Nunca fui tão comprometido com meu time [teológico] a ponto de não reconhecer que também cometemos faltas’, Vanhoozer me disse. Assim, munido da tradição confessional e evangélica, Vanhoozer avançou para além de onde os evangélicos tinham chegado. Como escreveu no ensaio de 1986, ‘The Semantics of Biblical Literature’ [A semântica da literatura bíblica], ‘as Escrituras fazem muitas coisas com palavras e, portanto, sua autoridade é multifacetada’.
Vanhoozer se preocupava que a abordagem dos evangélicos à interpretação bíblica estava se limitando e enrijecendo. Dadas as condições certas, os evangélicos bem poderiam parar de apreciar as diversas maneiras pelas quais a Palavra de Deus chega até nós. Ao dizer que toda a Escritura é ‘sem erro’, os evangélicos corriam o risco de levar à implicação de que toda Escritura veio na forma de declarações do tipo ‘verdadeiro ou falso’. Como, então, entender uma exclamação de louvor nos Salmos? Ou o que significaria o clamor de ‘Maranata! Ora, vem, Senhor Jesus!’, se colocado num padrão de ‘verdadeiro’ ou ‘falso’?
‘Ler sempre em busca da proposição é como sempre ouvir uma sinfonia de Brahms apenas pela melodia’, diz Vanhoozer. ‘Minha motivação para dizer isso é sustentar a Escritura em alto conceito, é deixá-la ser tudo o que deve ser’.
Em suma, Vanhoozer chacoalhou o pensamento evangélico acerca da Escritura no exato momento em que este poderia ter calcificado. Insistiu que os evangélicos estavam certos em manter a autoridade da Escritura em alto conceito. Mas foi igualmente firme na defesa de que Deus faz muitas coisas com a Bíblia. Deus estimula o lamento, incita à adoração, insta ao arrependimento, fere o orgulho e anuncia perdão e nova vida. Obviamente, a Escritura também traz declarações de verdade a ser cridas, mas isso não é tudo que ela faz.
O cânon bíblico não faz somente afirmações sobre o mundo. Procura, sim, reinventar esse mundo — e nos recriar no processo.
Resistir ao status quo
A abordagem criativa de Vanhoozer corre o risco de deixar todos os campos teológicos insatisfeitos. Mais adiante neste ano, Vanhoozer publicará um livro sobre o pastor como teólogo com Owen Strachan, que leciona teologia e história da igreja no Boyce College, uma escola conservadora em Louisville, Kentucky, ligada à Convenção Batista do Sul. Strachan também lidera o Conselho sobre Masculinidade e Feminilidade Bíblicos, que promove a liderança masculina na igreja e no lar. Vanhoozer é celebrado em círculos como esse. Como um teólogo conservador afirmou, Vanhoozer é ‘um evangélico reformador, mas comprometido’. Por isso, a direita teológica confia nele.
Outros não têm tanta certeza assim de sua consistência. Quando o tomo recente de Vanhoozer sobre a doutrina de Deus, Remythologizing Theology [Remitologizando a teologia], chegou às livrarias, Paul Helm mostrou preocupação de que subvalorizava as afirmações de verdade das Escrituras. Helm, teólogo filosófico reformado, escreveu em seu blogue: ‘A omissão de declaração, asserção, em sua lista dos atos comunicadores [na Bíblia] — poesia, cântico, parábola, apocalipse, história, e argumento —, é significativa’. Vanhoozer quer nos lembrar da aliança dialogal entre o Deus que fala e o crente que ouve. Mas, ao fazê-lo, será que põe de lado a ênfase evangélica central nas verdades da Bíblia que ‘transcendem [sua] ocasião e contexto’?
Vanhoozer também é valorizado por pensadores evangélicos mais progressistas. Teólogos pós-conservadores como John Franke parecem ter baseado seus próprios projetos em Vanhoozer. E muitos fora do aprisco evangélico — Kathryn Tanner de Yale e George Hunsinger de Princeton — elogiaram seu trabalho por ser generoso e incisivo.
Outros ainda suspeitam que Vanhoozer vista a típica ‘bibliolatria’ evangélica em um despojado traje novo. Peter Enns deixou o corpo docente da instituição onde estudou Vanhoozer, o Seminário Westminster, em Filadélfia, por discordâncias a respeito da Bíblia. Acusa Vanhoozer de encobrir os erros reais da Bíblia.
Enns apoia a descrição de Vanhoozer de uma ‘inerrância da cruz’. Esta é a maneira de Vanhoozer dizer que a verdade bíblica sempre comunica a amorosa fidelidade divina. Mas, do mesmo modo, Enns diz que a cruz sugere que Deus fala humildemente nas Escrituras. Isto é, Deus usa os erros e deslizes dos autores bíblicos, em vez de evitar que tais erros se insinuem. Vanhoozer sugere que quaisquer contradições aparentes nas Escrituras aguardem uma resolução no futuro, no tempo de Deus. Enns vê isto como uma clássica artimanha inerrantista para escapar de tensões reais no cânon bíblico.
‘Recebo críticas da esquerda e da direita’, me conta Vanhoozer. Enfim, ele se pergunta se sua ‘fidelidade criativa’ — seus esforços de sustentar uma teologia evangélica da Escritura de maneira nova e vivaz — o deixa suscetível a mal-entendidos de todos os lados. ‘Os mais à esquerda não gostam de fidelidade quando parece ser status quo’, conclui. ‘Os mais à direita não gostam de criatividade quando parece ser infidelidade’.
O teatro e o roteiro
Na sala de aula, Vanhoozer acha que mesmo os mais comprometidos dos evangélicos podem suspeitar da teologia. Em 2005, quando escreveu seu aclamado livro O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã, Vanhoozer o fez com aquele tipo de estudantes em mente. Observara ‘que doutrina e vida da igreja [tinham] se separado, e isso me incomodava’. Eu entendo bem. Quando mais jovem, todas as minhas leituras cristãs consistiam em livros devocionais e ocasionalmente romances cristãos. Meu pai certa vez sugeriu que eu tentasse ler teologia mais substancial e desafiadora. A princípio relutei, desencantado com a ideia de que assuntos controversos pudessem ser edificantes. E eu não estava sozinho nisso. Muitos frequentadores de igreja, jovens e velhos, descobriram que doutrina divide, e que evitar debates teológicos pode manter unida a comunidade.
Vanhoozer está empenhado em mudar esta percepção. Não sinta repulsa contra a palavra doutrina, ele afirma enfaticamente. Se a Bíblia é a comunicação de Deus conosco, a doutrina funciona como as ‘direções de palco’. Doutrina ajuda-nos a ocupar nosso lugar para interpretar as ordens do diretor. ‘Teodrama’ é a maneira como Vanhoozer fala sobre a vida cristã. Doutrina é indispensável para assegurar que a peça saia da página impressa para o palco iluminado.
‘Doutrina ajuda os discípulos a atuar com aquilo que está em Cristo’, diz ele. ‘E o que está em Cristo é a nova criação, a nova humanidade’. Doutrina, em resumo, assiste os cristãos a interpretar sua fé, a viver de modo a demonstrar a um público atento a redenção em Jesus. ‘Precisamos aprender como a doutrina nos guia para viver a vida de Cristo’, diz ele. E ninguém consegue duvidar dele quando vê aquele brilho de empolgação em seus olhos.
O trabalho mais atual de Vanhoozer completa um arco inacabado do período inicial de sua carreira. Suas primeiras publicações buscaram explicar como a Bíblia possui autoridade na igreja. Seus livros posteriores, incluindo o mais recente, Encenando o drama da doutrina: teologia a serviço da igreja, descrevem como ouvir e obedecer à voz de Deus na Escritura em momentos corriqueiros, no saguão da igreja ou no cinema local.
Um marco no estilo teológico de Vanhoozer é a maneira como ele retorce uma metáfora para muito além de onde pensadores mais tímidos ousariam ir. Quando fala acerca da vida da igreja, Vanhoozer sugere que o pastor é o diretor de palco que assegura que os artistas saibam todas as suas linhas e consigam improvisar quando necessário. Os cristãos individualmente são os atores. A Escritura oferece o roteiro. O teólogo é o ‘dramaturgo’, usando conhecimento especializado sobre atuação e interpretação clássica para orientar a ação do diretor. Existe o teatro de obra-prima (os credos). Existe o teatro local (a congregação) bem como o teatro regional (a denominação ou confissão a que pertence a congregação).
Dá para imaginar Vanhoozer sorrindo sozinho enquanto expande a metáfora, desdobrando-a mais e mais para demonstrar como a teologia pode ser tão rica. ‘Teologia sistemática deveria ser empolgante’, ele me diz. Suspeito que seus alunos concordem.
Da comunicação para a comunhão
Quando Vanhoozer completava seus estudos doutorais em Cambridge, antes de seu primeiro emprego no seminário Trinity, trabalhou com o prestigiado teólogo católico Nicholas Lash. Em ensaio publicado no mesmo ano do primeiro texto de Vanhoozer, Lash escreveu: ‘A forma fundamental da interpretação cristã da Escritura é … a vida, atividade e organização da comunidade cristã’. Prosseguiu: ‘A prática cristã consiste … na encenação ou execução do texto bíblico: em sua ‘reinterpretação ativa’’.
Você sabe, então, se uma igreja está atenta às Escrituras quando a observa em ação — pregando as boas novas, alimentado os famintos no nome de Jesus, provendo música e alegria no poder do Espírito Santo para um mundo quebrantado.
Vanhoozer continua comprometido com a visão de Lash. Doutrina é para ser vivida. E a igreja deve incorporar e implementar, não apenas catalogar e classificar.
Mais para o fim de nosso tempo juntos, Vanhoozer retrocede e liga alguns pontos. ‘Teodrama’, diz ele, retornando à metáfora da encenação, ‘é algo que não está simplesmente a nos dizer o que devemos pensar’. A verdade da Escritura não é compreendida apenas por uma mente árida, olhando fixamente por um microscópio. ‘Há também a beleza’, diz Vanhoozer. ‘Há muitas belas cenas na Escritura. Mas há ainda uma beleza sem par, sim, uma estranha beleza’.
É a beleza sem par da cruz — e a beleza sem par da trupe que carrega a cruz e anda pelo palco, executando a peça da salvação para a cura do mundo.
Bom de ler!
ótimo texto! Legal demais saber um pouco mais da história e do pensamento de Vanhoozer! Ele ‚ do tipo que inspira a gente que faz a gente encher o peito pra dizer: eu sou teólogo! Sabe quando vc assiste um jogo de Liga dos Campeäes e logo depois quer sair pra jogar futebol? É do mesmo jeito quando leio Vanhoozer! Bênção demais!
ótimo, muito elucidante! !,
Muito bom conhecer um pouco da trajetória teológica de Vanhoozer.
Belo texto sobre a obra de Vanhoozer.
Boa tarde, a visão teológica de Vanhoozer coopera para uma releitura das Escrituras agora de modo que modifique o leitor