Das eleições incondicionais à condicional

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TITILLO, Thiago. Eleição condicional. 1ed. São Paulo: Editora Reflexão, 2015. 96p.

 
Thiago Velozo Titillo
é pastor batista, especialista em Teologia Bíblica e Sistemática-Pastoral pela Faculdade Batista do Rio de Janeiro, graduado em Teologia pelo Seminário Teológico Betel e licenciado em Letras pela Universidade Estácio de Sá, tendo concluído o curso de Grego pela Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro. Atua como professor na Faculdade de Teologia Wittenberg e do Seminário Teológico Evangélico Peniel. O autor alinha-se com o arminianismo clássico, com a ressalva de que advoga a segurança eterna dos regenerados. É autor de A gênese da predestinação na história da teologia cristã: uma análise do pensamento agostiniano sobre o pecado e a graça, publicado pela Fonte Editorial, em 2014.

Várias obras sob perspectiva arminiana tem sido publicadas em português, a maioria consiste de traduções de autores estrangeiros, mas boa parte provém da pena de teólogos brasileiros. Estas, ainda de caráter introdutório, o que é compreensível quando se considera que boa parte dos que se declaram arminianos desconhecem o arminianismo. Foi somente em 2015 que as Obras de Tiago Armínio foram publicadas no Brasil. Publicações como a que ora se resenha são, portanto, uma necessidade. E sendo ela parte de uma série, a limitação de escopo e tamanho é perfeitamente justificada.

O livro é estruturado em seis capítulos, precedidos de prefácio e introdução e seguidos por conclusão e referências bibliográficas. Na Introdução o autor faz referência à controvérsia histórica sobre o tema do livro e apresenta seus objetivos: fazer uma exposição da posição arminiana na controvérsia e demonstrar que a doutrina da eleição, quando compreendida, é edificante e confortadora. Portanto, a obra não pretende ser polêmica, em que pese as várias menções críticas ao calvinismo e seus expoentes.

Depois de discorrer sobre os conceitos de predestinação e eleição no primeiro capítulo, Titillo trata das eleições de Jesus Cristo, de Israel, da Igreja e finalmente de indivíduos, dedicando um capítulo a cada uma delas. O autor reserva ainda um capítulo à análise de passagens usadas por calvinistas em favor da eleição incondicional (Mc 4:10-11; Mt 11:20-24; Jo 10:26; At 13:48; Rm 9:14-24 e Ef 1:11), fechando a obra repassando os pontos abordados nos capítulos sobre a eleição dos quatro objetos referidos.

O estilo do autor é fluido e objetivo e ele não se perde em digressões desnecessárias ao tema, com raras exceções, como na discussão sobre a relação entre fé e arrependimento (p.54-5). A linguagem adotada é apropriada ao público da obra, sem ser acadêmica, mas também sem insultar a inteligência dos leitores. Alguns termos utilizados, que poderiam ser incomuns para alguns leitores são esclarecidos em notas de rodapé.

As referências ao calvinismo e aos calvinistas são críticas, mas respeitosas. São poucas as vezes que faz referências ácidas à eleição incondicional, como quando sugere que ela apresenta “um deus carrancudo lançando pessoas no inferno, e poupando algumas poucas, por mero capricho” (p. 12) ou chamando-a de “doutrina fatalista” (p. 80).

No primeiro capítulo, o autor ocupa-se de definir, distinguir e apontar os relacionamentos dos termos eleição, predestinação e presciência, admitindo que são muitas vezes confundidos, pois “muitos teólogos igualam a predestinação – em seu aspecto soteriológico – com a decisão divina de salvar o pecador ou condená-lo” (p. 17). Um deles é Armínio que, em citação feita na obra, diz que pela predestinação Deus “decide justificar e adotar os fiéis e conceder-lhes a vida eterna, mas condenar os infiéis…” (p. 15). O autor, corretamente, entende que biblicamente os objetos da predestinação são apenas os eleitos, no que é contrariado por dois teólogos arminianos, Wiley e Culbertson, que afirmam ser a predestinação “o propósito gracioso de Deus de salvar da ruína completa toda a humanidade”, não sendo, portanto, “um ato arbitrário de Deus para garantir a salvação de um número especial de pessoas” (p. 16).

Eleição é definida nos termos da presciência divina, ou seja, são eleitos “todos aqueles que de antemão sabia que O aceitariam” (p. 18). Ancorado na definição que Gonzalez apresenta para presciência, o autor declara que “Deus, desde a eternidade, à luz de sua presciência de todas as coisas, elegeu aqueles que no curso da história escolheriam livremente a Sua graça em Cristo” (p.20). Ciente da objeção calvinista apresentada por Berkhof, de que a presciência é mais que mera previsão ou presciência intelectual, e que indica um conhecimento seletivo que se aproxima da ideia de predeterminação, Titillo reconhece que “é inegável que Paulo está se referindo aos membros de um grupo, distinguindo-os das demais pessoas” (p. 21). Mas insiste que “Deus, de fato, conheceu pessoas. Mas as conheceu como pessoas que ‘amam a Deus’” (p. 22), esquecendo, porém, que “nós amamos porque ele nos amou primeiro” (1Jo 4:19). A Escritura não faz referência à uma eleição por fé prevista e a teoria é um constructo externo a ela.

Obviamente a definição dada para eleição não se aplica a Jesus, apresentado como o “primeiro eleito” (p.25), a partir de referência às várias passagens bíblicas que mencionam a eleição de Cristo como o Servo, Mediador e Redentor (Is 42:1-7; 49:1-7; Mt 12:16-21; Lc 9:35; Jo 10:36; 1Pe 2:4-6). Contudo, a conclusão vai além da escolha do Filho para realizar Sua obra redentora na história, escopo das passagens citadas, e sugere que Jesus é eleito para que os crentes sejam eleitos Nele (Ef 1:4) (p.29). Efésios e as demais cartas paulinas nada dizem sobre Jesus ser o Primeiro Eleito, no sentido atribuído por Titillo, pois os salvos são eleitos Nele (Ef 1:4) no sentido de que foram eleitos “por meio Dele” (Ef 1:5), quer dizer, Jesus não é onde a eleição acontece, mas sim o meio através do qual ela é realizada.

Em seguida o autor trata da escolha de Israel por parte de Deus, para que o propósito de redimir a humanidade fosse consumado (p.33). A eleição de Israel é incondicional e corporativa (p.41), limitada ao escopo do serviço (p.38), sem “qualquer referência ao destino eterno de indivíduos” (p.40). Essa é a eleição de Romanos 9, sendo que Abraão, Isaque e Jacó foram escolhidos para formar a nação eleita, o que “não significa que foram individualmente escolhidos para a salvação” (p.41), mas que enquanto Jacó foi escolhido para “dar prosseguimento à linhagem da qual nasceria o Messias eleito” (p.40-1) e Esaú “foi deixado de fora desse privilégio” (p.41). Contudo, o caráter soteriológico de Romanos 9 não deve ser posto de lado, como faz o autor. Paulo começa o capítulo dizendo “porque eu mesmo desejaria ser anátema, separado de Cristo, por amor de meus irmãos” (Rm 9:3), mais adiante contrapõe “vasos de ira” a “vasos de misericórdia” e “perdição” a “glória” (Rm 9.22-23) e termina dizendo que é o “remanescente que será salvo” (Rm 9:27). A linguagem é soteriológica. E ao introduzir o tema da eleição declarando que “nem todos os de Israel são, de fato, israelitas” (Rm 9:6) deixa claro que a escolha é sim individual.

A eleição da Igreja consiste em que “Deus tenha decidido na eternidade que todas as pessoas que estivessem em Cristo fariam parte do povo predestinado à salvação” (p.43), mas não implica que Ele escolheu quais indivíduos fariam parte desse povo. Essa eleição também é incondicional e corporativa. Em apoio ao aspecto corporativo da eleição o autor arrola o testemunho de vários autores, inclusive Calvino e outros calvinistas, o que não é difícil tendo em vista que é ponto pacífico que a igreja, composta de eleitos, é o povo eleito de Deus. Passagens em que a igreja é referida como “raça eleita” (1Pe 1:9), “senhora eleita” (2Jo 1) e “irmã eleita” (2Jo 13) e o uso de pronomes no plural em Efésios e até a referência de Jesus à igreja como comunidade messiânica são utilizadas para corroborar a eleição corporativa. O autor está ciente que calvinistas não negam o aspecto corporativo da eleição, desde que ela pressuponha a escolha de indivíduos que formarão esse corpo, “do contrário, seria uma mera escolha de um grupo abstrato, cujos membros serão completados posteriormente sem qualquer controle de Deus” (p.47). A resposta é dada por uma analogia com a eleição de Israel, quando Deus “escolheu a nação antes de haver nação” (p.41). Mas como Romanos 9 deixa bem claro, Deus escolheu de forma soberana e graciosa os indivíduos que, nas palavras do autor, iriam “dar prosseguimento à linhagem da qual nasceria o Messias eleito” (p.40-1).

Para que o indivíduo faça parte do povo eleito, ele deve “estar em Cristo” (p.53), que significa “estar numa união redentora com Ele, recebendo assim todos os benefícios da salvação” (p.54), cujas condições necessárias são fé em Jesus Cristo e arrependimento como “elementos inseparáveis” (p.55) da conversão. Assim, estar em Cristo “pressupõe fé e arrependimento” (p.56), pois “a conversão mediante a fé e o arrependimento é a condição para o pecador ser unido a Cristo” (p.56) e a união com Cristo, a condição para ser eleito. A questão agora é “como Deus pode escolher um povo desde a eternidade” (p.57) se eles só irão se converter na história? Aqui o autor introduz o conceito de presciência, a partir de seu uso em Rm 8:29. Ele reitera que o termo proginosko significa “amor eletivo”, refere-se a um conhecimento de pessoas que indica a “eleição de indivíduos” (p.22), mas ressalva que essa eleição se dá mediante “o conhecimento prévio que Deus tem daqueles que responderiam à sua graça com amor” (p.62).  A ordem lógica para a eleição individual é: Deus antevê aqueles que responderão com amor (que vem a ser o mesmo que conversão ou, ainda, o mesmo que fé e arrependimento) ao chamado do evangelho, os une a Cristo e uma vez unidos a Ele, os elege.

O objetivo declarado da obra é apresentar a doutrina arminiana da eleição condicional e demonstrar que a doutrina assim compreendida é edificante e confortadora (p.12). Considerando a obra como um todo, relativamente pouco espaço é dedicado ao primeiro objetivo. O autor discorre sobre a eleição de Cristo, de Israel e da Igreja, todas elas, incondicionais e/ou corporativas, antes de dedicar somente a décima parte do livro à apresentação positiva da eleição condicional de indivíduos. O recurso à Escritura parece ser menor nesta seção, apenas Romanos 8:29 recebe um tratamento mais detalhado, investido em boa parte contra a tese defendida por arminianos de que a passagem se refere à eleição incondicional corporativa.

Além disso, da forma como a doutrina é apresentada, não pode ser dita que é distintivamente arminiana. Ela claramente se distingue da compreensão calvinista da eleição, mas nada é dito que a torne diferente de uma eleição semi-pelagiana. Fé, arrependimento e amor são apresentados como condição para se estar em Cristo e então ser escolhido, mas nada é dito de como o homem é tornado capaz de responder a Deus com essas virtudes. As condições não são apresentadas num contexto em que o homem está totalmente depravado, o papel da graça não é destacado e da fé e do arrependimento não é dito que são dons de Deus. A doutrina da eleição exposta é não calvinista, contudo, mais deveria ser dito para se poder afirmar que não seja semi-pelagiana.

Quanto ao segundo objetivo, o silêncio da obra é ainda maior. O livro não trata das implicações práticas da doutrina da eleição na vida cristã. Como exatamente ela contribui para a edificação não é um assunto referido e desenvolvido e em que situações o crente encontraria conforto numa compreensão arminiana da doutrina da eleição tampouco é indicado. O tratamento da doutrina é puramente teórico, sem importância prática para a vida do crente e da igreja.

Pela sua proposta e pelo conteúdo entregue, a obra se destina a quem está iniciando os estudos da doutrina da eleição. O leitor deve estar ciente de que o volume é parte de uma coleção e que lacunas podem eventualmente ser preenchidas pela leitura de outros títulos da série. O que não implica que alguém que já possui conhecimento razoável da teologia arminiana não tire proveito da obra, desde que não se espere um aprofundamento que não cabe numa obra desse porte. Por outro lado, como já foi enfatizado, aspectos importantes da doutrina foram esquecidos. E certamente ficará frustrado quem deseja encontrar ataques ferinos ao calvinismo, pois embora a posição do autor seja claramente contrária ao entendimento calvinista da eleição, ele não o ataca de forma agressiva e não teme concordar com ele, mesmo contra outros arminianos, em pontos que entende ser biblicamente corretos.

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