
1. A presença da crise
A sociedade ocidental nasceu das ruínas romanas e herdou pilares da filosofia grega, do direito romano e da moralidade judaico-cristã.[1] A ascensão do cristianismo como norte moral no Ocidente encontrou, por muito tempo, espaço de primazia no homem ocidental e sua relação com o mundo. A igreja era a mediadora não só de Deus e do homem, mas também do homem com o homem e com a realidade externa ao homem.
No entanto, quando os olhos são focados na contemporaneidade, essa relação parece estar profundamente abalada, muitas vezes com ares de hostilidade ou com uma neutralização da influência cristã no mundo. Como afirma o doutor Paolo Cugini: “No debate contemporâneo sobre a religião percebe-se a grande dificuldade das instituições eclesiásticas de acompanhar o passo do mundo pós-moderno.”[2] e complementa que: “Dia após dia parece que as exigências da cultura pós-moderna se distanciam sempre mais da proposta religiosa, sobretudo no plano ético”.[3]
Essa crise entre o pensamento cristão histórico e as novas ondas ideológicas que se alastram desde a Renascença é nomeada pelo termo “Secularização”, sobre o qual pretende-se discorrer posteriormente. O fato é que o cenário moderno sugere um rearranjo na relação entre Igreja e Cultura. Diante de tantas propostas e indagações, urge a necessidade de se construir um pensamento responsivo. Esta pequena produção textual é impossibilitada de propor uma solução abrangente e exaustiva para tal crise, mas, dentro das limitações, procurará fornecer um breve panorama com fins reflexivos e que sugiram passos iniciais para uma reflexão maior que já se encontra mais avançada por outros teólogos, filósofos e teóricos.
Para tal panorama, portanto, tem-se a necessidade de mapear a origem da crise, os seus pilares e as propostas resolutivas intra et extra[4] cristãs para ela.
2. A origem da crise e a alteração de pensamento
Francis Schaeffer sugere que a nossa sociedade contemporanea é fruto de uma profunda alteração no conceito de “verdade”.[5] É particularmente difícil mapear onde começou essa alteração. No ponto de vista biblico, é possível dizer que isso se discorreu da queda (cf. Gn 3.1-24), onde o homem afirmou sua rebelião contra a verdade de Deus. Se olharmos para a história que se sucedeu do Éden, mapear essa alteração fica ainda mais confuso. Todavia, no panorama histórico-filosófico comum da leitura ocidental, podemos dizer que uma alteração mais profunda tem seu berço no humanismo da Renascença, que desemboca, a posteriori, no Iluminismo europeu.
Há uma clara alteração no polo do poder moral na sociedade contemporânea e isso não é notado apenas por teólogos cristãos, mas por teóricos das mais diversas linhas de pensamento, como Bauman.[6] Esse processo é chamado por cristãos e não-cristãos de “Secularização”. Muito provavelmente, no escopo da cristandade, a melhor definição para esse termo foi a dada pelo Papa Bento 16:
A secularização, que se apresenta nas culturas como um delineamento do mundo e da humanidade sem referência à Transcendência, impregna todos os aspectos da vida quotidiana e desenvolve uma mentalidade em que Deus se tornou total ou parcialmente ausente da existência e da consciência do homem.[7]
De encontro com a afirmação de Francis Schaeffer, parece possível dizer que o homem contemporâneo rejeita a possibilidade impetrada pela igreja cristã por meio de pessoas como Santo Agostinho, a afirmação que diz que a verdade possui um padrão objetivo, fundamentado na essência do Transcedente e comunicável por meio de um Deus pessoal. No contrário, o homem moderno aceita a ampla relativização da verdade promovida pelo pensamento pós-iluminista. Se Agostinho afirma: “Creio o que Vós me ensinastes, porque é verdade, e só Vós sois o Mestre da Verdade em qualquer parte e de qualquer lugar que ela brilhe.” [8]. O homem moderno afirma o que Nietzche afirmou:
O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. Para onde foi Deus, gritou ele, ‘já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! […] Para onde se move agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda em cima e embaixo? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã?”[9]
E o filósofo alemão não poderia ter sido mais preciso em sua análise da realidade: a retirada da objetividade transcendente e comunicável como fonte da verdade pressupõe uma proposta subjetiva e imanente. Nesse ponto, surgiu a crise que se encontra no Ocidente; se muitos iluministas adotaram uma metodologia na qual Deus não era mais necessário para explicar o homem e a realidade, os pensadores que sucederam essa mentalidade precisavam encontrar outro ponto de fundamentação para o homem, e foi a subjetividade imanente que forneceu a ponte ao moderno, ainda que de maneira atrofiada.
De fato, o arranjo pós-iluminista quanto à concepção da verdade alterou toda a fundamentação da sociedade moderna. Essa metodologia subjetiva gerou diversas propostas para responder aos dilemas profundos do homem por meio de resoluções que desconsideram a existência ou a intervenção de um Deus pessoal e infinito. É no surgimento dessas propostas que a secularização desenvolve suas próprias ideias para responder às questões humanas, ideias essas que podem ser chamadas de secularismos.
Se a secularização é um fenômeno histórico decorrente do avanço de novas filosofias humanistas e imanentes, os secularismos são propostas e agendas para a implementação dessa realidade na qual o homem responde ao mundo interno e externo sem o transcendente. Como um “ismo”, os secularismos são propostas que rivalizam com o Cristianismo, ao mesmo tempo que possuem pontes de diálogo com o mesmo. Isso gera certa dificuldade na questão do fênomeno secular, pois ambos os lados da crise podem atacar seus próprios pressupostos julgando estarem combatendo os pressupostos do oponente.
O embate entre o Cristianismo e os secularismos, no entanto, prossegue em nossa sociedade e confirma o que Francis Schaeffer notara: “Assim, esta mudança no conceito de como alcançamos o conhecimento e a verdade é, a meu ver, um problema crucial, se observarmos o Cristianismo de hoje.”[10]
3. Secularismos vs. cristianismo
Os secularismos são propostas que buscam exercer o papel que a religião cristã exerce por meio da crença em um Deus pessoal e infinito, no entanto, substituindo a crença cristã por uma solução subjetiva e imanente. É uma forma “aqui e agora” de responder os dilemas mais profundos do homem, como as questões filosóficas primárias, aquelas que envolvem a origem do ser, a razão do ser e o fim do ser.
Por essa proposição, pode-se dizer que toda ideologia secularista possui uma formatação religiosa que se fundamenta na narrativa primária de Queda-Redenção-Consumação. Como concorrentes do Cristianismo histórico, os secularismos buscarão responder às mesmas questões que a fé cristã responde. Por mais que argumentem algum tipo de solução teórica, toda ideologia secularista dependerá da fé de seus adeptos para resistir às ideologias concorrentes.
Dependem fundamentalmente de uma crença pré-teórica para se fundamentarem e não se entravam apenas em questões teóricas e supra-teóricas. Sobre isso, discorreu Herman Dooyeweerd ao desenvolver sua crítica aos secularismos, classificando-os como extremamente universalistas ou extremamente individualistas, portanto, incapazes de integrar a complexidade do cosmos e do ser.
Criticando a suposta pureza racional desprovida de religiosidade que arrogam ter os pensadores secularistas, Dooyeweerd apontou que todo sistema filosófico partia de um pressuposto dogmático-religioso, criticando aquilo que ele chamou de “dogma da autonomia do pensamento filosófico”[11], acreditava que “a pretensa autonomia não pode garantir uma base comum a correntes filosóficas diferentes”[12].
No entanto, podemos dizer que nesse sentido, o cristianismo assume uma vantagem quando tomado por verdade, pois na crença cristã existe espaço para uma integração do homem, uma vez que o mesmo é fundamentalmente criação de algo superior e transcedente, capaz de cobrir o todo cosmológico e suprareal. Cada secularismo priorizará uma área da existência por cima das outras. Por exemplo, no materialismo histórico-dialético, a matéria e a história são a métrica para medir o homem, o homem deixa de ser fruto de uma pessoalidade transcedente e passa a ser fruto de uma impessoalidade imanente. O que isso implica? Na completa desvalorização do homem per se, como visto nas ideologias universalistas que se discorreram dessa crença, como o próprio Nazismo ou Marxismo.
No liberalismo-progressista, a individualidade é destacada como a área a ser valorizada acima das outras e acaba por implicar na completa desvalorização do meio, resultando em revoluções sangrentas como as vistas na França. O misticismo apela para um transcendente, mas que se manifesta somente na matéria e está submetido a ela, implicando numa alta valorização do meio e uma completa fragmentação interna.
Todo secularismo tem no seu seio um desses pressupostos: individualismo ou universalismo. Por isso, é incapaz de mediar a relação do homem de maneira equilibrada, não consegue lidar com a ideia de transcedente e imanente de uma maneira que só a fé cristã é capaz de lidar, como demonstrada no dogma da consubstanciação. Diante da crença de que Deus se revelou mediante Jesus Cristo e que nele habita a plenitude do conhecimento real(cf. Ef 1.15-23; Cl 1.3-23) , o cristianismo não deve temer e nem se render a nenhuma dessas correntes seculares.
Parece ser mais apropriado sugerir que a postura do cristianismo seja por uma abordagem dual: na afirmação dos valores, adotar uma via contracultural. Por meio do ensino e da pregação, afirmar as verdades sistemáticas e objetivas da fé que se contrapõem à metodologia subjetiva e imanente dos secularismos. Quanto à comunicação e ao diálogo, adotar uma via intracultural que busque pontes e diálogos para responder às realidades do tempo e da história por meio da verdade de Deus.
Essa consubstancialidade entre imanente e transcendente é um privilégio exclusivo da doutrina cristã, que não afirma uma mistura de substâncias como faz o panteísmo, nem afirma uma separação total de substâncias como o método transcendentalista, mas afirma uma consubstanciação presente na própria natureza de Cristo, onde imanente e transcendente se relacionam numa economia equilibrada que supre suficientemente as respostas para o homem como um todo. Na afirmação histórica de Lausanne, podemos concluir que a verdade objetiva do evangelho é um evangelho completo, para o homem todo e disponível para todos os homens.[13]
Se Deus se revela plenamente na pessoa de Cristo, a redenção abrangente é a única capaz de responder todos os dilemas do homem em todos os aspectos humanos, em todas as áreas da existência. Pois não há ninguém melhor para explicar a realidade e revelá-la que o próprio Criador dela. Esse criador se fez conhecido pessoalmente em Cristo, de modo que é possível concordar com a clássica afirmação de Abraham Kuyper:
Nem um único espaço de nosso mundo mental pode ser hermeticamente selado em relação ao restante, e não há um centímetro quadrado em todos os domínios da existência humana sobre qual Cristo, que é soberano sobretudo, não clame: é meu![14]
Urge para a igreja brasileira analisar esse cenário com toda sabedoria, manifestando os variados aspectos da redenção cristã, testemunhando o amor e ensinando toda doutrina da fé, a fim de que os ventos dos séculos se acalmem ao encontrarem as portas da igreja de Deus.
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Referências bibliográficas
Bauman, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno (Rio de Janeiro: Zahar, 2021).
Carvalho, Guilherme. O senhorio de Cristo e a missão da igreja na cultura: A ideia de soberania e sua aplicação. In. Ramos, Leonardo. Camargo, Marcel. Amorim, Rodolfo, org., Fé cristã e cultura contemporânea: cosmovisão cristã, igreja local e transformação integral (Viçosa: Ultimato, 2009).
Cugini, Paolo. Religião na pós-modernidade: o cristianismo niilista e secularizado de Gianni Vattimo. Revista eclesiástica brasileira, v. 72, n. 287, p. 628-650, 2012.
Dooyeweerd, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico (Brasília: Editora Monergismo, 2018).
Nietzsche, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução: Paulo C. Souza (São Paulo: Companhia de Bolso, 2012).
PACTO DE LAUSANNE. Disponível em: <https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/covenant/pacto-de-lausanne>. Acesso em: 7 maio. 2024.
Agostinho. Confissões. Montecristo Editora.
Schaeffer, Francis. O Deus que intervém (Editora Cultura Cristã, 2021).
Discurso do Papa Bento XVI aos participantes da Assembleia Plenária do Pontifício Conselho para a Cultura, 8 de março de 2008 | Bento XVI. Disponível em: <https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2008/march/docume
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Woods, J.R, Thomas E. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental (Quadrante-Sociedade de Publicações Cult[i]urais, 2008).
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[1]Woods, JR, Thomas E. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental. Quadrante-Sociedade de Publicações Culturais, 2008, p. 6.
[2]Cugini, Paolo. Religião na pós-modernidade: O cristianismo niilista e secularizado de Gianni Vattimo. Revista eclesiástica brasileira, v. 72, n. 287, p. 628-650, 2012, p. 629.
[3]Ibidem.
[4]Do latim: “Dentro de” e “Fora de”.
[5]Schaeffer, Francis. O Deus que intervém. Editora Cultura Cristã, 2021. p. 18
[6]Bauman, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
[7]Bento XVI in: Discurso do Papa Bento XVI aos participantes da Assembléia Plenária do Pontifício Conselho para a Cultura, 8 de março de 2008 | Bento XVI. Disponível em: <https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2008/march/documents/hf_ben-xvi_spe_20080308_pc-cultura.html#:~:text=A%20seculariza%C3%A7%C3%A3o%2C%20que%20se%20apresenta,e%20da%20consci%C3%AAncia%20do%20homem.>. Acesso em: 7 maio. 2024.
[8]Agostinho. Confissões. Montecristo Editora. Edição do Kindle, p. 92
[9]Niezsche, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução: Paulo C. Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2012, p. 125.
[10][10]Schaeffer Francis. O Deus que intervém. Editora Cultura Cristã, 2021. p. 19.
[11]Dooyeweerd, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico.Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018, p. 41.
[12]Ibid., p.43.
[13]PACTO DE LAUSANNE. Disponível em: <https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/covenant/
pacto-de-lausanne>. Acesso em: 7 maio. 2024.
[14]Carvalho, Guilherme. O senhorio de Cristo e a missão da igreja na cultura: A idéia de soberania e sua aplicação. In. RAMOS, Leonardo. CAMARGO, Marcel. AMORIM, Rodolfo, org., Fé Cristã e Cultura Contemporânea: cosmovisão cristã, igreja local e transformação integral (Viçosa: Ultimato, 2009), p. 56.