Teologia como ciência especial III

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A experiência como paradigma da construção teológica

Anteriormente foi visto duas “fontes” para a construção da teologia [tradição e razão], no presente texto a experiência será trabalhada compondo, então, o conjunto básico de elementos a serem considerados na construção teológica. A experiência humana sempre foi um elemento importante para a reflexão teológica e, nos tempos atuais, ganhou grande notoriedade devido ao existencialismo. Por isso, uma compreensão dos movimentos teológicos que absorveram elementos do existencialismo será importante para um entendimento claro do que significou esta virada no pensamento teológico que se deu nas últimas décadas.

O existencialismo na teologia: O primeiro Barth, Heidegger-Bultmann, a condição humana de Sartre, do eixo experimental-expressivo para a práxis libertadora
O existencialismo é uma filosofia da experiência humana. O ser humano diferencia-se dos demais seres vivos pelo fato de perceber sua própria existência e se questionar sobre ela. McGrath afirma que o termo “existencialismo” pode ser entendido em dois sentidos. O primeiro é de um sentido mais elementar que significa uma postura em relação à vida humana que põe ênfase particular sobre a dimensão da experiência imediata, a experiência de vida real dos indivíduos. Em outro sentido mais profundo, está ligado a um movimento que alcançou seu ápice no período de 1938 a 1968 cuja origem se encontra, sobretudo nos escritos do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard.1 Para a teologia, tanto o pensamento de Kierkegaard quanto de outros filósofos existencialistas como Heidegger e Sartre tiveram uma importância especial.2 No entanto, é difícil delinear uma fórmula que defina o existencialismo devido ao seu caráter multifacetado. Entrementes, alguns temas chaves podem ser apontados como constituintes do existencialismo, apesar de que nem todos os proponentes deste sistema filosófico abracem estes temas. São eles: a individualidade e o sistema; intencionalidade; ser e absurdidade; a natureza e o significado da escolha; o papel das experiências extremas; e a natureza da comunicação.3

No entanto, o existencialismo surge na teologia através das obras do luterano Kierkegaard, entretanto, o uso feito por Karl Barth em seu primeiro momento tem um impacto maior no pensamento teológico. O próprio Barth reconhece esta influência de Kierkegaard:

Se eu tenho um sistema, ele é limitado ao reconhecimento do que Kierkegaard chamou de “distinção qualitativa infinita” entre tempo e eternidade, e minha consideração como possuindo significado tanto negativo quanto positivo: “Deus está no céu e vós estais na terra”. A relação entre este Deus e este homem , e a relação entre este homem e este Deus é para mim o tema da Bíblia e a essência da filosofia.4

Na teologia de Barth, a tensão entre Deus e a humanidade conferiu-lhe o título de “Teologia Dialética” e “Teologia da Crise”. O termo “dialética” posiciona Barth dentro da esfera do método filosófico de Kierkegaard.5 Mais tarde, Barth descartou seu primeiro esforço na construção de uma teologia sistemática por considerá-la corrompida demais pela filosofia existencialista, quando desejava produzir uma teologia bíblica, absolutamente teológica e completamente livre da dependência de qualquer sistema de pensamento humano.6 Alguns elementos do existencialismo permanecem em seu pensamento apesar de tentar purgá-los, por exemplo, a alteridade de Deus em sua relação qualitativa infinita, a liberdade de um sistema filosófico humano, o conhecimento parcial ou fragmentado de Deus.7 Isso se verifica devido a tentativa de Barth de construir uma teologia completamente livre da teologia natural, da cultura e da filosofia neste segundo momento.

Além das propostas de Kierkegaard, Heidegger também causou certa influência na teologia, no entanto, esta influência se deu no campo dos estudos hermenêutico-teológicos. Thiselton explica que a hermenêutica de Heidegger deve ser compreendida através de três elementos. O primeiro é que o horizonte de compreensão do ser é o tempo. Heidegger afirma que “o tempo é o ponto de partida do qual a presença sempre compreende e interpreta implicitamente o ser. Por isso, deve-se mostrar e esclarecer, de modo genuíno, o tempo como horizonte de toda compreensão e interpretação do ser.”8 A historicidade é de suma importância para uma compreensão do objeto. A análise é sempre condicionada pelo tempo.

O segundo é a distinção aguda feita entre as categorizações científicas e a caracterização existencial da vida humana. Para Heidegger, a pesquisa científica faz um trabalho ingênuo, não sendo justa ao caráter mais íntimo da existência, por isso precisam ser diferenciadas em suas buscas. Ele afirma que a “pesquisa científica realiza de maneira ingênua e a grosso modo, um primeiro levantamento e uma primeira fixação dos setores dos objetos. A elaboração do setor em suas estruturas fundamentais já foi, de certo modo, efetuada pela experiência e interpretação pré-científica da região do ser que delimita o próprio setor de objetos.”9 Enquanto isso, a presença para que seja compreendida, precisa ser apreendida por ela mesma em sua existência, pois é esta existencialidade que caracteriza a constituição ontológica de um ente que existe.  Heidegger coloca que

A presença sempre se compreende a si mesma a partir de sua existência, de uma possibilidade própria de ser ou não ser ela mesma. Essas possibilidades são ou escolhidas pela própria presença ou um meio em que ela caiu ou já sempre nasceu e cresceu. No modo de assumir-se ou perder-se, a existência só se decide a partir de cada presença em si mesma. A questão da existência sempre só poderá ser esclarecida pelo próprio existir.11

Para Heidegger, as descrições implicam em objetivação e objetivação leva a despersonalização.12 “A pessoa não é uma coisa, uma substância, um objeto”, afirma ele.

Pertence à essência da pessoa apenas existir no exercício de atos intencionais e, portanto, a pessoa em sua essência não é objeto algum. Toda objetivação psíquica, por conseguinte toda apreensão de um ato como algo psíquico, equivale a uma despersonalização.13

O terceiro e último ponto de Heidegger é sua identificação do estado de “dado” do “mundo” que deve ser visto como um estado de “lançado” ou “fático” da existência, e o ser nasce em uma determinada situação. Por isso, Heidegger prefere o termo “estar-lá” [Dasein] do que falar do ser em abstrato.14

Dessa forma, Heidegger já estabelece uma nova ordem de percepção. Outrora a essência era buscada anteriormente à existência, no entanto, com a formulação do existencialismo, a existência tem a primazia sobre a essência. Com isso, ele elabora sua compreensão cíclica da hermenêutica argumentando que quando algo é interpretado sempre há um pré-entendimento deste algo. Heidegger afirma que “a interpretação de algo como algo funda-se, essencialmente, numa posição prévia, visão prévia, e concepção prévia. A interpretação nunca é apreensão de um dado preliminar, isenta de pressuposições.”15 Uma interpretação nunca é feita sem pressupostos, pelo contrário, o intérprete projeta certas antecipações que darão sentido ao objeto a ser compreendido. E as constatações, por sua vez, são verificadas à luz daquelas que foram pressupostas. Assim, a hermenêutica de Heidegger é existencial, pois o círculo da interpretação ocorre dentro da situação em que o interprete está inserido.16

Bultmann tomou as ideias de Heidegger e erigiu sua teologia buscando interpretar os evangelhos de modo a encontrar o verdadeiro Jesus. Para Bultmann, os evangelhos apresentam uma compreensão mítica do mundo que o teólogo de hoje deve reinterpretar de maneira não mítica.17 Lopes afirma que o método exegético de Bultmann possui duas etapas: a primeira trata-se do uso da crítica da forma para chegar ao cerne da mensagem do Novo Testamento; e a segunda, usando o existencialismo para tornar esta mensagem relevante para o homem moderno.18 Heidegger desenvolveu uma teoria hermenêutica baseada na concepção da historicidade do indivíduo, sendo esta terminologia utilizada para referir-se às possibilidades da existência humana. A tarefa hermenêutica é, então, guiada pelo interesse na existência humana. Este “pré-entendimento” do que constitui a existência autêntica serve de base para a exegese existencialista de Bultmann.19 Assim a intenção não é simplesmente traduzir o significado do texto, pois quando a historicidade é autêntica ela cria a possibilidade de uma visão futura, um momento de transformação. Por este motivo Bultmann crê que sua tarefa teológica é extrair dos evangelhos todas as reminiscências do pensamento mítico e reinterpretá-lo de acordo com a filosofia da existência de Heidegger.20 Bultmann afirma:

Sempre ouço incansavelmente as mesmas objeções de que demitologização transforma a fé cristã em filosofia. Esta objeção surge do fato que eu chamo demitologização uma interpretação, uma interpretação existencialista, e que eu faço uso das concepções desenvolvidas especialmente por Martin Heidegger na filosofia existencialista.21 

Para Bultmann, então, o evangelho trata de duas existências. A não-regenerada que apresenta uma forma de existência precária, na qual os indivíduos se recusam a admitir aquilo que realmente são: dependentes de Deus para sua salvação e felicidade. Esses indivíduos buscam se autojustificar através de posturas éticas ou por meio da riqueza material. Essa tentativa humana de ser autossuficiente é chamada de “pecado”. No entanto, há outra forma de existência, aquela que é crédula, redimida pela qual se abandona toda forma de suficiência em si mesmo e a busca em Deus. Em vez de tentar se autojustificar por um comportamento ético ou por algum outro modo transitório que dê segurança, essa existência leva a pôr a confiança em Deus e aprender que ele oferece a salvação como um dom gratuito. No lugar de negar a realidade da finitude humana e da inevitabilidade da morte, deve-se reconhecer que tudo isso foi enfrentado e vencido pela morte e ressurreição de Jesus Cristo, cuja vitória se torna a vitória do crente por meio da fé.22 Jesus foi apenas um homem sem nenhuma atribuição divina, todavia, o Cristo da fé é um símbolo da expressão da existência autêntica. De acordo com Bultmann, o evangelho infelizmente confunde estas duas realidades.23 Na própria construção teológica, Bultmann reconhece que o conhecimento de Deus não é uma questão de pensamento teórico, mas de experiência humana em seus desejos e vontades naturais.24

Outra vertente do existencialismo que influenciou a teologia, embora não seja tão conhecida em nosso meio, foi feita por Sartre com sua proposta da condição de existência. Sartre negava a realidade de uma essência da humanidade chamada de natureza humana. Ele era avesso a essa ideia, pois não compreendia que o individuo fosse derivado de alguma noção generalizada de humanidade.25 Uma pessoa universalizada não é uma pessoa propriamente. Sartre, então, desaprova o conceito de uma natureza universal, mas afirma a situação humana universal. Por “situação”, ele entende a circunstâncias da atual existência de vida e morte em um mundo real de pessoas que se esforçam lado a lado em dar e tomar da sociedade. Esta é a condição universal humana que molda cada indivíduo.26 

Esta concepção quanto à condição humana proposta por Sartre serviu de base para que John McIntyre propusesse uma resolução quanto ao problema das duas naturezas de Cristo que fora exposto no Concílio de Calcedônia em 415 A.D. McIntyre propõe repensar a natureza humana em termos de condição humana. Ao invés de pensar a natureza humana de Jesus em termos de uma entidade pálida, estática, abstrata e universal, é melhor pensar na situação humana a qual Jesus, como filho de Deus, compartilhou com a humanidade. O que normalmente se pretende quando se afirma que o Logos assumiu a natureza humana deve ser entendido como Jesus entrando na condição humana com suas tristezas, solidão, relacionamentos quebrados, injustiças, tragédias políticas e assumindo o fardo dos pecados e morrendo uma morte injusta. Através de seus sofrimentos, os homens experimentam a reconciliação com Deus. Esta re-disposição da natureza humana em termos de situação humana realça as ações, as decisões, as conversas, as pregações, os ensinos, e a morte que identificam que Jesus era não alguma essência abstrata e universal.27

O problema da colocação de McIntyre é justamente o fato de que Jesus precisava assumir a humanidade como um todo, tanto em sua universalidade quanto em sua particularidade. Essa cristologia reduz a obra de Jesus Cristo ao aspecto situacional externo. A encarnação é somente um aspecto exterior da existência, no entanto, as Escrituras ensinam que ele se fez homem [Fp 2.5-8; Jo 1.1,14] e em todas as coisas era semelhante ao homem e não simplesmente em sua situação existencial [Hb 2.14-18], pois se a encarnação é um aspecto situacional, logo, o pecado deveria ser incluído, pois esta é a situação derradeira da humanidade. Jesus era homem essencialmente e não apenas existencialmente. Quanto à soteriologia implicada desta consideração, pode-se afirmar que o coração humano precisa da redenção e não simplesmente sua situação em relação à vida cotidiana externa, mas o mais íntimo do ser. Outro ponto a ser salientado é que a natureza humana engloba o ser humano como um todo, enquanto a cristologia de McIntyre parece oferecer um conceito dicotômico, pois a situação identifica e molda o ser, mas não o define em suas propriedades mais íntimas. O ser humano é um ser religioso, feito para direcionar-se a Deus em quaisquer circunstâncias e o pecado ataca justamente neste local, assim, a cristologia de McIntyre não resolve de maneira efetiva o problema da dupla natureza de Cristo, que teve seus limites mui sabiamente demarcados em Calcedônia.

Além do existencialismo, ainda há outros modelos atuais que adotam a experiência como paradigma da teologia. A experiência pode ser concebida como recurso fundamental à teologia cristã. Esta concepção origina-se desde o pensamento de Schleiermacher, que compreendia que todas as religiões eram válidas visto que todas elas davam as mesmas respostas para a experiência humana. Assim, a teologia nada mais é do que uma tentativa cristã de reflexão em torno dessa experiência comum do ser humano, sempre tendo a consciência de que essa mesma experiência consiste à base das demais religiões mundiais.28

George Lindbeck, em seu livro The Nature of Doctrine [A natureza da Doutrina], aponta para a mudança do eixo do caráter doutrinário neste sentido. Lindbeck propõe que outrora a doutrina tinha um caráter cognitivo-proposicionalista que apontava para o caráter cognitivo da religião e a dinâmica das doutrinas como norteadoras da vida cristã. Esta proposta vigorou até o surgimento do Iluminismo. Sua ênfase recaia na capacidade de elaborar proposições objetivas, atemporais acerca de Deus. Em um segundo momento, a partir do Iluminismo, a mudança ocorre, e no cenário surge o eixo empírico-expressivo. Este eixo realça o caráter não cognitivo e sim simbólico das doutrinas voltadas aos sentimentos e atitudes interiores do ser humano. A teologia liberal, com todos os seus desenvolvimentos posteriores, se enquadra nesta perspectiva. As manifestações religiosas são condicionadas publicamente e culturalmente por elementos pré-linguísticos das atitudes e dos sentimentos. A experiência religiosa é universal e a teologia tenta descrever esta experiência.29

É neste ínterim que o diálogo inter-religioso surge, pois se todas as religiões têm uma experiência comum, elas são passiveis de diálogo, pois possuem um território neutro. Então, colocações quanto à generalidade das religiões e que todas têm o mesmo objetivo colocam a experiência como paradigma na elaboração teológica. A princípio, uma corrente bem conhecida no meio latino-americano origina-se do pressuposto da experiência. A Teologia da Libertação possui um paradigma na qual toda a construção teológica é pautada, trata-se do conceito de Práxis.

A Práxis é um termo originário do marxismo que denota o sentido de “modo de vida.” Este modo de vida, ou práxis, é contrastado com a teoria. Esta é a crítica da Teologia da Libertação em que a teologia deve se envolver com ideias, mas também deve transformar vidas individuais e sociedades. Para melhor compreensão, devemos retornar à filosofia de Karl Marx, na qual a Teologia da Libertação se fundamenta. McGrath resume da seguinte maneira:

A noção de materialismo é algo fundamental para o marxismo. Essa noção não representa alguma doutrina metafísica ou filosófica que afirma ser o mundo constituído apenas de matéria. Antes, é uma declaração de que uma compreensão correta acerca do ser humano deve começar pela produção de bens materiais. A forma como os seres humanos respondem a suas necessidades materiais determina todo o resto. As ideias, inclusive de ordem religiosa, são respostas à realidade material. Elas representam a superestrutura que é constituída sobre a estrutura socioeconômica. Em outras palavras, as ideias e os sistemas de crenças são reações frente a um conjunto bem definido de condições socioeconômicas. Se essas condições sofrem uma mudança radical (por meio de uma revolução, por exemplo), o sistema de crenças por elas gerado e mantido perecerá, juntamente com as mesmas.30

Nesta perspectiva, a atividade prática é mais importante do que qualquer teoria, uma vez que é através da práxis revolucionária que todo um conjunto de conceitos teóricos é destronado. Não é por acaso a afirmação de Clark de que Marx ignora completamente a epistemologia em seu sistema filosófico e que, na melhor das hipóteses, ele emprega o solipsismo em sua base, o qual é, na verdade, uma zombaria dos esforços do proletariado de se libertar. Na ética, Marx expõe uma teoria relativista, e os direitos se tornam demandas que são conquistados à força e não provados pela razão. A reivindicação de uma classe deve dar lugar a outra e somente a força decide; sucesso é o teste da verdade.31 A filosofia marxista é puramente material, preocupa-se em identificar o homem com aquilo que ele produz, ou seja, homo faber, o homem que faz.

A Teologia da Libertação nutre-se a partir desses conceitos. Por isso ela inverte a ordem colocando a práxis acima da teoria. A teologia é feita a partir da experiência contextual em que o indivíduo se encontra e é esta contextualidade que molda todo o pensamento teológico. Míguez Bonino afirma:

A teologia, como concebida aqui, não é uma tentativa de oferecer um modo correto de entender os atributos de Deus, mas uma tentativa de articular a fé, o formato da práxis concebida e concretizada na obediência. Da mesma forma que a filosofia no famoso ditado de Marx, a teologia precisa parar de explicar o mundo e começar a transformá-lo. A ortopráxis, em vez da ortodoxia, se torna o critério da teologia.32 

Assim, entendemos como a Teologia da Libertação assimila a filosofia marxista em sua arquitetônica. A Práxis ganha o papel principal na fomentação de uma nova teologia. Gutierrez afirma:

Por tudo isso a teologia da libertação nos propõe talvez não tanto novo tema para a reflexão quanto novo modo de fazer teologia. A teologia como reflexão crítica da práxis histórica é assim uma teologia libertadora, teologia da transformação libertadora da história da humanidade, portanto também da porção dela — reunida em ekklesia — que confessa abertamente Cristo. Teologia que não se limita a pensar o mundo, mas procura situar-se como um momento do processo através do qual o mundo é transformado, abrindo-se — no protesto ante a dignidade humana pisoteada, na luta contra a espoliação da imensa maioria dos homens, no amor que liberta, na construção de nova sociedade, justa e fraterna — ao dom do Reino de Deus.33

Estes vários conceitos importados da filosofia marxista conduzem os teólogos da libertação a um compromisso inalienável, assumido abertamente por eles. A Teologia da Libertação coloca a teoria contra a prática criando um dualismo, de modo que um defensor da Teologia da Libertação afirma que

“não pode acreditar que a situação das pessoas poderia mudar pela transformação da sua cosmovisão. Portanto, não é fundamental que as pessoas alterem seus hábitos de vida, sua ética sexual, sua visão de trabalho, etc. Pelo contrário, se a raiz da miséria é a opressão do sistema, o único caminho de libertação é a ruptura do sistema, a revolução [que pode ser violenta ou não violenta].”34 

A experiência humana sempre teve sua parcela importante no pensamento teológico cristão. O problema é quando ela se torna o foco da questão. Os puritanos apontavam para um papel muito especial da experiência humana quanto à salvação. A vida de fé gera frutos e uma vez que a certeza da salvação fosse abalada, os frutos oriundos da fé salvífica seriam meios de se fortalecer na fé novamente, além do testemunho interno do Espírito Santo. Ou seja, para os puritanos a experiência prática da vida de fé é um recurso necessário para buscar a certeza da salvação.35

A experiência cristã precisa ser interpretada à luz das Escrituras Sagradas, assim, esse é o trabalho da teologia. Ela relaciona-se como ciência com os diversos aspectos da realidade e da experiência interpretando-os segundo as Escritura Sagradas. A teologia verdadeira oriunda das Escrituras Sagradas gera uma experiência cristã sadia e positiva. Ela explica a experiência para que o indivíduo saiba exatamente como viver diante de Deus. É uma sabedoria, não uma teoria morta, antes é uma teoria com prática de vida. Este é o papel da experiência na vida de fé. Muitas vezes os sentimentos humanos e suas manifestações na experiência são frutos de um equivoco quanto a maneira de enxergar a realidade; é exatamente com esta compreensão que a teologia pode ainda servir para esclarecer e balizar a experiência. Agostinho aponta para esta realidade em suas Confissões. Ele descreve a angústia do ser humano em busca de descanso, mas afirma que apenas em Deus ele consegue encontrar seu descanso pleno.36

Conclusão
Portanto, estas três “fontes” vistas nestes artigos precisam ser devidamente tratadas em seus respectivos níveis sob a tutela das Escrituras Sagradas. Nestes artigos, podemos observar como as “regras do jogo” foram sendo alteradas com o passar do tempo. A Tradição tornou-se a regra de fé, pois a autoridade do homem seria mais importante do que a autoridade de Deus. A Razão tornou-se regra de fé, porque a sabedoria humana compreenderia melhor a realidade do que a sabedoria do Criador. A Experiência tornou-se a regra de fé, pois a existência humana tem primazia sobre as questões mais essênciais de um relacionamento salvífico com o Redentor. Este é o ponto principal entre estes três elementos que, quando absolutizados, tomam o lugar das Escrituras Sagradas, permitindo que toda a forma de distorção surja na construção teológica. É fundamental que estes elementos sejam considerados quando pensamos em construção teológica, mas eles somente terão seu verdadeiro valor na vida do ser humano quando considerados à luz das Escrituras Sagradas. É a Bíblia que concede significado a estes elementos, pois os direcionam de maneira correta para o alvo certo. Assim, o trabalho do teólogo é uma luta para que as Escrituras Sagradas sempre tenham a primazia e sirvam não apenas como fonte da teologia, mas também como aferidor da mesma. Assim, todo aquele que se dispõe a fazer teologia possui uma dupla tarefa interpretativa, ora interpretando as Escrituras Sagradas e ora interpretando a realidade para respondê-la com o ensino verdadeiro na dependência do Espírito Santo.

______________________
1 MCGRATH, A. E., Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica, São Paulo: Shedd Publicações, 2005. P. 233.
2  MCGRATH, A. E., Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica, São Paulo: Shedd Publicações, 2005. P. 233; WOOD, L. W., Theology as History and Hermeneutics – A Post-Critical Conversation with Contemporary Theology, Lexington: Emeth Press., 2005. P. 72-74.
3  Cf. BORCHERT, D. [Ed.], Encyclopedia of Philosophy, Vol. 3, 2º Ed., Michigan: Thomson & Gale, 2006. P. 501.
4  BARTH, K., The Epistle to the Romans, Translated From the Sixth Edition, London: Oxford University Pres, 1950. P. 10.
5  GRENZ, S. J., & OLSON, R. E., A Teologia do Século 20, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003. P. 78.
6  GRENZ, S. J., & OLSON, R. E., A Teologia do Século 20, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003. P. 79.
7  Ver PANNENBERG, W., Filosofia e Teologia – Tensões e Convergências de uma Busca Comum, São Paulo: Paulinas, 2008. P. 279-280.
8  HEIDEGGER, M., Ser e Tempo, Parte I, 15ª Ed., São Paulo: Editora Vozes, 2005. P. 45.
9  HEIDEGGER, M., Ser e Tempo, Parte I, 15ª Ed., São Paulo: Editora Vozes, 2005. P. 35.
10 Ver HEIDEGGER, M., Ser e Tempo, Parte I, 15ª Ed., São Paulo: Editora Vozes, 2005. P. 79.
11 HEIDEGGER, M., Ser e Tempo, Parte I, 15ª Ed., São Paulo: Editora Vozes, 2005. P. 39.
12 THISELTON, A., New Horizons in Hermeneutics, Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1992. P. 279.
13 HEIDEGGER, M., Ser e Tempo, Parte I, 15ª Ed., São Paulo: Editora Vozes, 2005. P. 84.
14 THISELTON, A., New Horizons in Hermeneutics, Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1992. P. 279. Cf. HEIDEGGER, M., Ser e Tempo, Parte I, 15ª Ed., São Paulo: Editora Vozes, 2005. P. 33.
15 HEIDEGGER, M., Ser e Tempo, Parte I, 15ª Ed., São Paulo: Editora Vozes, 2005. P. 207.
16 THISELTON, A., New Horizons in Hermeneutics, Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1992. P. 280. Cf: PANNENBERG, W., Filosofia e Teologia – Tensões e Convergências de uma Busca Comum, São Paulo: Paulinas, 2008. P. 297-306. Ver também: WESTPHAL, M., A Hermenêutica enquanto Epistemologia, in GRECO, J. & SOSA, E., [org.] Compêndio de Epistemologia, São Paulo: Loyola, 2008. P. 651.
17 BULTMANN, R., Jesus Christ and Mythology, New York: Charles Scribner’s Sons, 1958. P. 18. WOOD, L. W., Theology as History and Hermeneutics – A Post-Critical Conversation with Contemporary Theology, Lexington: Emeth Press., 2005. P. 113.
18 LOPES, A. N., A Bíblia e seus Intérpretes, São Paulo: Cultura Cristã, 2007. P. 209.
19 WOOD, L. W., Theology as History and Hermeneutics – A Post-Critical Conversation with Contemporary Theology, Lexington: Emeth Press., 2005. P. 113.
20 Bultmann coloca que a concepção antiga de mundo é chamada mitológica porque ela se diferencia da concepção de mundo que tem sido formada e desenvolvida pela ciência desde as inserção na Grécia Antiga e que tem sido aceita por todos os homens modernos. Nesta concepção moderna do mundo o nexo de causa e efeito é fundamental. BULTMANN, R., Jesus Christ and Mythology, New York: Charles Scribner’s Sons, 1958. P. 15. WOOD, L. W., Theology as History and Hermeneutics – A Post-Critical Conversation with Contemporary Theology, Lexington: Emeth Press., 2005.  P. 114.
21 BULTMANN, R., Jesus Christ and Mythology, New York: Charles Scribner’s Sons, 1958. P. 45.
22 MCGRATH, A. E., Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica, São Paulo: Shedd Publicações, 2005. P. 233.
23 WOOD, L. W., Theology as History and Hermeneutics – A Post-Critical Conversation with Contemporary Theology, Lexington: Emeth Press., 2005. P. 115.
24 BULTMANN, R., Jesus Christ and Mythology, New York: Charles Scribner’s Sons, 1958. P. 43.
25 SARTRE, J. P., O Existencialismo é um Humanismo, Coleção Os Pensadores, Vol. XLV, São Paulo: Editora Abril Cultural, 1973. P. 22.
26 SARTRE, J. P., O Existencialismo é um Humanismo, Coleção Os Pensadores, Vol. XLV, São Paulo: Editora Abril Cultural, 1973. P. 22. WOOD, L. W., Theology as History and Hermeneutics – A Post-Critical Conversation with Contemporary Theology, Lexington: Emeth Press., 2005. P. 73.
27 WOOD, L. W., Theology as History and Hermeneutics – A Post-Critical Conversation with Contemporary Theology, Lexington: Emeth Press., 2005. P. 74.
28 SCHLEIERMACHER, F. D. E., Sobre a Religião: Discurso a seus Menosprezadores Eruditos, São Paulo: Editora Novo Século, 2000. P. 36,37.
29 LINDBECK, G., The Nature of Doctrine, Kentucky: Westminster John Knox Press, 1984. P. 31,32.
30 MCGRATH, A. E., Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica, São Paulo: Shedd Publicações, 2005. P. 136.
31 CLARK, G.,H., Religion, Reason and Revelation – Christian Philosophy, Vol. 4., Unicoi: The Trinity Foundation, 2004. P. 156.
32 BONINO, J. M., Doing Theology in a Revolutionary Situation, Philadelphia: Fortress, 1975. P. 81.
33 GUTIÉRREZ, G., Teologia da Libertação, Petrópolis: Editora Vozes, 1979. P. 27.
34 CARVALHO, G. V. R. [org.], Cosmovisão Cristã e Transformação, Viçosa: Ultimato, 2006. P. 151.
35 Não é por acaso que a Confissão de Fé de Westminster dedica um capítulo [Cap. XVIII] todo para o tratamento da certeza da salvação. Ver. HODGE, A.A., Op. Cit., 1999. P. 323-334. Ver também a explicação da pergunta 80 do Catecismo Maior comentado. VOS, G., Catecismo Maior de Westminster Comentado, São Paulo: Editora Os Puritanos, 2007. P. 232-235. Ver também: BEEKE, J., A Busca da Plena Segurança: O Legado de Calvino e seus Sucessores, Recife: Os Puritanos, 2003. P. 259-263. Beeke mostrará o papel da experiência no pensamento de John Owen e sua importância para a fé salvífica.
36 AGOSTINHO, Confissões, São Paulo: Vozes, 2010. P. 27. Ver. MCGRATH, A. E., Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica, São Paulo: Shedd Publicações, 2005. P. 237.

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