Ser contra a cultura é agir em prol da cultura

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Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me deste. Eram teus, e tu os deste a mim; e eles obedeceram à tua palavra. […] 14Eu lhes dei a tua palavra; o mundo os odiou, pois não são do mundo, assim como eu também não sou. 15Não rogo que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno. 16Eles não são do mundo, assim como eu também não sou. […] 18Assim como tu me enviaste ao mundo, eu também os enviei ao mundo. […] 20E rogo não somente por estes, mas também por aqueles que virão a crer em mim pela palavra deles, 21para que todos sejam um; assim como tu, ó Pai, és em mim, e eu em ti… (trecho da Oração Sacerdotal de Jesus em favor dos discípulos registrada em João 17.6,14-16,18,20,21, A21).

A igreja é chamada a compreender a medida certa da sua relação com o mundo e a avaliar, à luz das convicções e chamados cristãos, o que o mundo é, pensa e faz.

Agora, se essa é uma afirmação válida e verdadeira, se realmente cremos nela, por que é que não buscamos tanto assim essa compreensão pela via de um estudo sério? Refletimos pouco sobre o assunto e mais reagimos, quase instintivamente, segundo nossos pressupostos. Por isso mesmo que talvez seja tão fácil errar para um lado ou para outro. E, se erramos em um ou outro ponto do espectro — na rejeição cabal e intransigente do mundo ou na adoção indiscriminada de elementos da cultura —, creio que seja fundamentalmente porque perdemos de vista o âmago da questão e nos afastamos do centro evangélico ou, em outras palavras, de um equilíbrio que brota das Escrituras.

Assim, o que realmente importa em todas as avaliações da cultura? O que está no centro mesmo quando o assunto é compreender o mundo e como se relacionar com ele?

Seja em nosso isolamento do mundo e da cultura, seja em nossa assimilação dos padrões vigentes, seja em qualquer postura que adotemos entre esses dois extremos, muitas vezes estamos focando a coisa errada.

No trecho bíblico de abertura desta reflexão, numa oração que Jesus fez ao Pai a favor de seus primeiros discípulos e, por extensão, também a favor de nós, os que vivemos em pleno século 21, com todos os desafios que se nos apresentam, vemos como o próprio Cristo, em consonância com o evangelho que ele consubstancia e nos oferece, enxerga o mundo e a cultura e o que exige de nós, seus discípulos, em resposta.

Alguns desses mesmos desafios são citados por David Platt quando analisa o encontro do cristão com a cultura em sua obra penetrante intitulada Contracultura: casamento com pessoas do mesmo sexo, racismo, escravidão sexual, questões de imigração e multiculturalismo, perseguição religiosa, aborto e pornografia estão hoje entre as mais significativas divisões entre o pensamento cristão e o pensamento pagão.1 As questões que ele levanta e busca tratar são apenas algumas daquelas que decorrem da questão central da rebeldia e insubmissão humana diante da perfeição moral de Deus. Outras poderão surgir. Algumas dessas mesmas poderão desaparecer, ou ser transmutadas, ou perder o interesse. Porque o mal interior tem seus desdobramentos e nuanças em cada momento e em cada subcultura em particular. Mas permanece o fato de que a visão de Cristo e do evangelho deve nortear nossa postura diante de todas essas coisas.

Timothy Keller contribui grandemente para o debate em seu monumental Igreja centrada,2 quando nos faz passear pelos diferentes modelos adotados pela igreja hoje em sua busca por compreender como deve se relacionar com o mundo ao redor e qual deveria ser o modelo de abordagem a adotar ou, mais precisamente, quais deveriam ser os elementos a adotar em cada modelo para uma posição equilibrada e bíblica da nossa relação com a cultura.

Keller começa explorando de modo sucinto os quatro modelos oferecidos por H. Richard Niebuhr, os quais são tratados de modo bem mais desenvolvido por D. A. Carson em Cristo e cultura.3 Os modelos de Niebuhr são: Cristo contra a cultura (afastamento), Cristo da cultura (acomodação), Cristo acima da cultura (sintético) e Cristo e cultura em paradoxo (dualista) e Cristo transformando a cultura (conversionista). Dos cinco modelos propostos por Niebuhr, quatro se encaixam com os modelos que Keller identifica em operação na igreja de hoje: modelo transformacionista (“Cristo transformando a cultura”), modelo da relevância (“Cristo acima da cultura”), modelo contracultural (“Cristo contra a cultura”) e modelo dos dois reinos (“Cristo e cultura em paradoxo”). O próprio Keller resume e explica assim esses quatro modelos que ele identifica:

O modelo dos dois reinos sublinha a bondade da criação física, a força da imagem de Deus em todos os seres humanos e a graça comum de Deus a todas as pessoas. O modelo transformacionista realça mais os efeitos profusos da queda no pecado em todos os tipos de vida, na antítese entre a crença e a descrença e nos ídolos presentes no cerne de cada cultura. O modelo contracultural enfatiza a forma da redenção de Deus por meio da história, a saber, quando ele chama e cria um novo povo, uma nova humanidade que revele ao mundo como a vida sob a liderança de Cristo pode e deve ser vivida. Por último, muitos seguidores do modelo da relevância dão muito valor à restauração que Deus faz de sua criação, na cura das nações e na ressurreição dos mortos.4

A descrição que Keller faz desses quatro modelos deixa claras duas verdades: 1) nenhum modelo se sustenta isoladamente como postura plena a ser adotada pela igreja, 2) cada aspecto ressaltado em cada modelo aponta para o âmago da questão, ou seja, aquilo que realmente importa. Em outras palavras, se unirmos os elementos destacados acima em itálico, pertencente cada um deles a um dos modelos indicados por Keller, perceberemos que estamos falando de uma narrativa bíblica maior chamada “evangelho”, a história da salvação: Criação, Queda, redenção e restauração de todas as coisas. Podemos concluir, assim, que a única postura possível da igreja diante do mundo é aquela que tem o evangelho no centro.

Em Contracultura, Platt apresenta exatamente esse argumento quando nos leva a examinar a cultura ao redor: “E se a questão mais importante hoje em nossa cultura não for a pobreza ou o tráfico de pessoas para exploração sexual; e se não for a homossexualidade ou o aborto? E se a questão principal for Deus?”.5

De fato, se temos o evangelho como nossa lente, isso deve significar que temos Deus como ponto de partida e de chegada. O evangelho é o que nos permite um equilíbrio em todas as possíveis visões da cultura. Como diz Keller:

Quanto mais distantes estivermos do centro, mais defendemos o tema de um modelo de modo reducionista, sem nos importar com as perspectivas dos outros, e então corremos o grande risco de não valorizar todos os temas bíblicos ao mesmo tempo — Criação, Queda, redenção e restauração. O centro […] representa um lugar de maior dependência em relação à malha integral dos temas bíblicos — marcado pelo esforço de unir as realidades da Criação e da Queda, da revelação natural e da revelação especial, da maldição e da graça comum, o “já, mas ainda não”, a continuidade e a descontinuidade, o pecado e a graça. Quanto mais nos aproximamos do centro […], mais mantemos nosso tema em equilíbrio com os demais…6

O evangelho está assim no centro porque vem de Deus e é, nas palavras do próprio Platt, “As boas-novas de que o Criador justo e gracioso do universo atentou para a condição de homens e mulheres, pecadores sem esperança, e enviou seu Filho, Jesus Cristo, Deus encarnado, para carregar na cruz a ira contra o pecado e na ressurreição mostrar o seu poder sobre o pecado, de modo que todo aquele que por meio de Jesus abandonar o pecado e a si mesmo e confiar em Jesus como Salvador e Senhor será reconciliado para sempre com Deus”.7 Isso é o evangelho. E por isso ele é tão perfeito para nos guiar em nossa relação com o mundo e a cultura.

Mas o evangelho também mostra, em sua perspicácia e agudeza, que nem todos serão salvos e que o mundo de hoje ainda aguarda ser restaurado. Não haverá um mundo presente totalmente rendido ao evangelho. Assim, o evangelho nos ajuda a ser nem demasiadamente pessimistas, nem inocentemente otimistas. Mas nos ensina a ser fiéis a sua mensagem e a deixar que Cristo se encarregue de garanti-la. E ele já provou, por sua vitória contra o mundo, o pecado, o diabo e o inferno, que como sua igreja podemos influenciar a cultura, mas a transformação total da nossa cultura é assunto para ele resolver.

Na Oração Sacerdotal de João 17, ouçamos o próprio Cristo enquanto ora, já tendo a cruz como alvo e fim de sua breve existência terrena. Percebamos quão embebidas da Boa Notícia estão as suas palavras. Vejamos quanto há aqui de Criação, Queda, redenção e restauração para nos orientar em nossa abordagem ao mundo. Eis o que ele nos revela:

1. Éramos do mundo quando fomos dados pelo Pai a Cristo e, uma vez entregues a Cristo, passamos a pensar como ele, a viver como ele, a enxergar tudo como ele.

“Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me deste. Eram teus, e tu os deste a mim; e eles obedeceram à tua palavra” (v. 6).

Devemos sempre lembrar que fomos resgatados do império das trevas para o reino do Filho amado de Deus (Cl 1.13). Recebemos o dom da salvação (Ef 2.8) e fomos dados como presente a Cristo (Jo 17.6). Todas as pessoas que hoje não vieram à fé em Cristo Jesus como seu Senhor e Salvador são alvo da mesma graça. Essa consciência deve ajudar-nos a arder em paixão pela salvação de almas e a ser compassivos e pacientes com quem hoje está na mesma situação em que um dia estivemos. O fato de que éramos do mundo como os que hoje no mundo estão deve sempre nos humilhar pelo tamanho da graça que nos alcançou e pelo fato de no fundo sermos feitos do mesmo material que todos os seres humanos: somos nada mais que pecadores salvos pela graça.

Se, uma vez pertencentes a Cristo, temos agora sua mente (1Co 2.16), o evangelho garante assim que é dele que vem o poder para as pessoas retornarem para Deus e abandonarem seus caminhos maus e em oposição a ele. Não há aspecto da cultura que não possa ser redimido por ele. As lutas a favor da liberdade e contra a escravidão, seja ela econômica, social, sexual ou religiosa; a favor do casamento e contra tudo o que deseja minar a sagrada e divina instituição da família; a favor da vida e contra o abuso dos direitos do outro; a favor de viúvas, órfãos, desvalidos, marginalizados e estrangeiros e contra as injustiças humanas só serão vencidas pelo amor, graça, esperança e fé que o evangelho pode oferecer.

Por último, não só vivemos como ele viveu ou pensamos e agimos como ele pensa e age. Em nosso esforço por levar Cristo aos que perecem, somos chamados por ele a também enxergar a todos como ele enxerga. Isso implica ação severa contra o pecado e o que desagrada a Deus, bem como confronto de pecadores, mas sempre com o olhar compassivo de quem entende que a graça de Deus pode repousar agora mesmo sobre o homem ou mulher que está diante de nós, morando na porta ao lado, sendo um integrante da nossa família biológica, um colega de trabalho ou de escola, alguém que encontramos atravessando a rua. Uma pessoa de alta compostura moral ou um ser abjeto e vil, dominado até a medula por seu estado de corrupção total. O evangelho encontra a todos: religiosos e irreligiosos, moralistas e libertinos, publicanos e fariseus. Mas precisamos enxergar, como Jesus, para além do que se mostra e assim contemplar o coração carente da graça salvadora e o grande poder residente no evangelho.

2. Por guardarmos assim a sua Palavra, fomos, somos e seremos odiados pelo mundo, pois essa nossa determinação em nos manter fiéis a Cristo indica que não pertencemos mais ao mundo (cf. v. 14). E, portanto, permanecer no mundo, algo necessário para a igreja ser igreja e cumprir o seu papel, requer a proteção divina (cf. v. 15).

“Eu lhes dei a tua palavra; o mundo os odiou, pois não são do mundo, assim como eu também não sou. Não rogo que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno” (v. 14,15).

Não deve nos surpreender que sejamos estranhos neste mundo. Na verdade, mais que isso. Simplesmente somos uma afronta a um mudo que se afasta cada vez mais da Palavra de Deus, da sua lei e do escopo seguro do seu amor e juízo. O grau em que somos odiados deve indicar o grau da nossa fidelidade. Mas o ódio que recebemos deve sempre encontrar no nosso amor a sua contrapartida.

Não podemos imaginar que o que Cristo pede a Deus a nosso respeito seja tão fácil de cumprir sem o auxílio do seu poder que atua em nós. Precisaremos sempre contar com a graça divina para saber transitar em meio ao mundo, entre os que nos odeiam e diante de suas bandeiras anti-Deus. E não pensemos que essa proteção significa necessariamente escaparmos às dificuldades, à perseguição, à tortura, à prisão ou até à morte. Poderá ser o caso. Mas a proteção maior é a de não nos deixarmos corromper por esse mundo e nos mantermos fiéis ao Cristo do evangelho, que nos salvou e continua a interceder por nós.

3. Não só estamos no mundo, mas fomos enviados com uma missão (cf. v. 18). Isso porque o alvo de Cristo em sua oração como Sumo Sacerdote intercessor não somos apenas nós, os que viemos do mundo, mas ele também fixa o seu olhar salvífico sobre o próprio mundo, para ganhar aqueles que ainda crerão por meio da nossa mensagem, a mensagem do evangelho (cf. v. 20).

“Assim como tu me enviaste ao mundo, eu também os enviei ao mundo. […] E rogo não somente por estes, mas também por aqueles que virão a crer em mim pela palavra deles…” (v. 18,20).

Não podemos descansar imaginando que nossa relação com o mundo é a de meros observadores em oração. Precisamos levantar nossa voz a favor de Deus, de Cristo e do evangelho e contra o sistema anti-Deus que podemos chamar de mundanismo, numa ampliação do sentido mais comumente aplicado ao termo. Nossa missão é verbal e não só postural e procedimental.

Além disso, a missão a que somos chamados mostra que nós não somos o centro do universo. Cristo é o centro. E seu amor repousa sobre tantos quantos ele ama e deseja escolher e trazer para si. Se Cristo está empenhado em remir alguns dentre a cultura, como não estaríamos nós?

Acho muito pertinente o subtítulo da obra de Platt que citamos acima, o qual nos lança um convite: “Um chamado compassivo para confrontar um mundo de pobreza, casamento com pessoas do mesmo sexo, racismo, escravidão sexual, imigração, perseguição, aborto, órfãos, pornografia”! Pelas nossas convicções que brotam do evangelho acerca de Deus e do mundo, agimos e atuamos como aqueles que abrem olhos e mentes, mas de forma amorosa e compassiva, confrontando pessoas em suas visões equivocadas.

Justamente o fato de sermos contra a cultura indica que somos a favor dela. Mas em que sentido? Somos contra tudo o que se opõe a Deus e o quer tirar do centro. Mas somos a favor de tudo o que seja capaz de conduzir os que precisam reencontrar o caminho traçado por Deus para a redenção da humanidade.

Somos contra sem termos de adotar uma visão romântica de que podemos conquistar e dominar a cultura, as artes, a política, o Estado, as instituições, as famílias. Seremos contra pela nossa simples presença. É assim que o sal salga: pelas suas propriedades intrínsecas e inseparáveis. É assim que a luz ilumina: pelo seu fulgor e calor inerentes.

Mas somos a favor pelo simples fato de sermos um reflexo do evangelho e o proclamarmos sem nos acanharmos, certos de que ele é o poder de Deus para todo aquele que crê (Rm 1.16). A nossa proclamação do evangelho é difícil de ouvir para os ouvidos da nossa cultura moderna, como foi em todos os tempos, mas é justamente o que pode salvá-la e o que demonstra o nosso amor. Quando, por exemplo, lanço o olhar sobre o âmbito mais restrito da minha família, quero sempre comunicar a meus filhos que minhas censuras e reprimendas, minha exposição da verdade sobre Deus e sobre eles, será dura de ouvir, mas desesperadoramente necessária e a minha maior prova de amor.

Que assim seja a demonstração do nosso amor pelo mundo que Deus criou, não hesitando jamais em proclamar a mensagem dura e desconfortável que o pode salvar. A mensagem do evangelho é de uma natureza tal que, ao mesmo tempo, nos aflige em nosso conforto, mas nos conforta em nossa aflição.

Assim devemos ser em relação à cultura: sempre contra e sempre a favor. Não há garantias de que a cultura será integralmente redimida, mas, pela simples presença da igreja, ela certamente será abençoada. E muitos serão transformados.

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1São Paulo: Vida Nova, 2016.
2São Paulo: Vida Nova, 2014.
3São Paulo: Vida Nova, 2012.*VER*
4Igreja centrada, p. 268.
5Contracultura, p. 16.
6Igreja centrada, p. 280.
7Contracultura, p. 9.

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