Poder na fraqueza: um Diálogo entre teologia da cruz e o movimento pentecostal

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1. Introdução

Em meio aos preparativos para as comemorações do nascimento de Cristo, é muito comum vermos o comércio e as casas que ainda mantém resquícios de compreensão do verdadeiro significado do natal montarem presépios, nos quais é representado o nascimento do Jesus. Apesar das variações artísticas, todas as representações dessa cena têm algo em comum: o contexto de humildade e fraqueza escolhido por Deus para vir ao mundo pela encarnação. O criador do universo escolheu nascer em uma simples e pobre manjedoura, longe dos centros de poder e despojado da glória que se imaginava adequada para o evento mais importante, até então, da história da humanidade.

Nesse sentido, podemos perceber claramente que a manjedoura já apontava para a cruz. Em ambas, vemos um Deus que decidiu agir e ser conhecido por meio da vulnerabilidade. Sua glória foi revelada na fraqueza, contrariando todas as expectativas humanas.

Portanto, falar desse Deus que se revela em fraqueza é falar da cruz.. E a teologia da cruz, fundamental ao verdadeiro cristianismo, significa que o poder de Deus se revela na fraqueza, e ele quer e pode ser encontrado em meio ao sofrimento, dor e humilhação. O sofrimento faz parte da vida do cristão e na verdade é até um sinal de sua filiação divina, sendo usado por Deus para moldar os seus à imagem de Cristo. A sabedoria divina contraria a sabedoria natural humana e só pode ser encontrada na cruz.

Esse ensino remonta ao próprio Jesus (“se alguém quer vir após mim a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me”), tendo sido desenvolvido com brilhantismo por Paulo (“nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios”; “decidi nada saber entre vós a não ser Cristo, e este crucificado”) e redescoberto com grande intensidade por Lutero (teólogo é quem compreende as coisas visíveis e posteriores de Deus enxergando-as pelo sofrimento da cruz), influenciando, a partir daí, todo o movimento evangélico, especialmente na sua ética (serviço ao próximo ao invés de dominação; valorização do mais fraco, etc.) e também seu método teológico (teologia se faz a partir da revelação de Deus na cruz, não a partir da razão, da natureza ou da religiosidade humana).

O presente texto, pretende traçar um paralelo entre a teologia e espiritualidade da cruz, especialmente a teologia da cruz de Lutero, e a teologia e espiritualidade pentecostal. Seu objetivo é responder a seguinte questão: seria a teologia pentecostal, com sua ênfase em manifestações visíveis de Deus, como o falar em línguas estranhas, profecias, curas e milagres, uma tentativa de enxergar e entender Deus a partir das “coisas visíveis e posteriores”, sendo, portanto, uma “teologia da glória”, no sentido dado por Lutero? Assim, após breve e resumida conceituação da “teologia da cruz” e “teologia pentecostal”, serão apresentadas algumas sugestões para que o movimento pentecostal não se torne uma teologia da glória e para que a teologia da cruz não seja utilizada como subterfúgio piedoso para a negação da atuação sobrenatural do Espírito Santo em meio à sua igreja ainda hoje.

2. Teologia da cruz e teologia pentecostal

Para Lutero, a cruz não é apenas um capítulo ou parte da teologia, mas uma determinada maneira de fazer teologia.1 A cruz é a base da autorrevelação divina e, portanto, da verdadeira teologia e do verdadeiro conhecimento de Deus. Dessa forma, a teologia da cruz é o centro de toda a teologia cristã, tecendo declarações sobre diversos temas teológicos: antropologia, ética, vida cristã, etc.,2 

Como bem observou McGrath, com suas teses no Debate de Heidelberg, em 1518,3 Lutero estabelece que o autêntico conhecimento de Deus ocorre na cruz de Cristo, ainda que nela ele, paradoxalmente, se oculte.4 Com isso, resta rejeitada toda forma de teologia que parta da razão ou natureza humana, independentemente da revelação. Toda teologia especulativa, ou seja, abstrações que procuram entender as “coisas invisíveis de Deus” é rejeitada.5 Estas “coisas invisíveis” são entendidas, conforme a “Demonstração das teses debatidas no capítulo de Heidelberg”, como o seu poder, divindade, sapiência, justiça, bondade, etc.,6 os quais muitas vezes se pretende erroneamente conhecer e explicar por meio da especulação racional ou de analogias com a natureza ou conceitos humanos. Elas se contrapõem às “coisas visíveis e posteriores” de Deus: humanidade, debilidade, tolice, nos termos de 1Co 1.25. Nelas Ele escolheu revelar-se.

Além disso, teologia da cruz é ciência prática, não especulação. O sentido da cruz se revela na experiência sofredora. O teólogo da cruz não foge do sofrimento, o “teólogo da glória”, que não suporta a cruz, sim. O sofrimento, por outro lado, não é buscado: ele é imposto por Deus. Ele mesmo está oculto no sofrimento, e somente pela fé podemos saber disso. Se Deus e seus caminhos nos fossem visíveis demais, não haveria necessidade de fé, por isso a fé tem mais a ver com o sofrimento do que com as obras, sejam elas divinas ou humanas.

A esta teologia da cruz, como já foi dito, Lutero contrapôs a “teologia da glória”, ou seja, a tentativa de conhecer as “coisas invisíveis de Deus” por meio das suas obras ou da sua criação, o que inclui o próprio ser humano. O teólogo da glória crê que pode conhecer Deus à parte de Cristo, especialmente à parte de sua cruz. Da mesma forma, pode-se concluir que quem não consegue aceitar ou entender a mensagem da cruz, porque isso lhe parece algo fraco e vergonhoso demais para um Deus tão grandioso e poderoso, é um teólogo da glória. O teólogo da glória é aquele “que não conhece, com o apóstolo, tão-somente o Deus crucificado e abscôndito, mas, com os gentios, vê e fala do Deus glorioso, de suas coisas invisíveis a partir das visíveis…”7

A teologia da glória, portanto, leva a uma espiritualidade de auto engrandecimento, centrada no sucesso e no poder.8 A busca por evidências tangíveis de poder espiritual (inclusive o “ver para crer”) ou por uma religião que prometa o sucesso, felicidade, riquezas ou uma “vida vitoriosa”, ao mesmo tempo em que rejeita a cruz e o sofrimento, caracteriza muito da espiritualidade evangélica contemporânea e facilmente pode ser classificada como uma teologia da glória. Por fim, as religiões legalistas, que promovem a salvação por obras, concentrando-se no esforço humano para oferecer algo digno a Deus, são também teologias da glória. Elas fazem todo o sentido à razão humana e aos nossos conceitos de justiça (“dar a cada um o que se merece”). Tais conceitos, contudo, se contrapõem absolutamente à teologia da cruz.

Mas então, surge a pergunta: e o poder de Deus? A Bíblia não nos diz que o Espírito Santo capacita poderosamente o crente para o serviço, inclusive por meio de dons espirituais sobrenaturais, como a cura de enfermidades ou realização de maravilhas? Jesus, Paulo e os cristãos primitivos não realizavam milagres ao mesmo tempo em que o evangelho se expandia por toda a parte? Sendo assim, não é legítimo esperar que Deus nos cure milagrosamente, buscando a restauração da saúde com alguém que tenha o dom de curar? Seria essa busca uma manifestação da, para usar a terminologia de Lutero, “teologia da glória”? Os pentecostais creem na atualidade dos dons espirituais, bem como na manifestação poderosa do Espírito Santo visivelmente por meio de “sinais e maravilhas”. Com isso, então, pergunta-se: a teologia e espiritualidade pentecostais tem mais a ver com a teologia da cruz ou a teologia da glória?

A proposta deste artigo é responder a estas perguntas. Contudo, faz-se necessário também definir o que se entende por “pentecostalismo”. O pentecostalismo moderno, como movimento de renovação espiritual surgido dentro da igreja cristã, possui uma diversidade de práticas e perspectivas que tornam quase impossível falar em “uma” teologia pentecostal. 9 Em consequência do avivamento de Azuza Street, em Los Angeles, Califórnia, Estados Unidos, o qual é considerado o movimento que deu origem ao pentecostalismo moderno, vieram à luz no Brasil e no mundo, na primeira metade do século XX, diversas denominações, sendo a maior de todas a Assembleia de Deus do Brasil (AD), representante do chamado pentecostalismo “de primeira onda”,10 ou “clássico.11

A simples análise da declaração de fé12 desta denominação nos mostra que sua teologia é praticamente idêntica às teologias evangelicais, em especial a batista, com exceção da ênfase na atualidade e literalidade das manifestações do poder de Deus, através do Batismo com o Espírito Santo, glossolalia e dons espirituais sobrenaturais.

A partir destes pontos doutrinários fundamentais, desenvolveu-se nos meios pentecostais uma “espiritualidade pentecostal”. Tal espiritualidade caracteriza-se por uma expectativa de manifestações sobrenaturais, por meio do Espírito Santo, nos cultos e no dia a dia de cada crente. Neste ponto, contudo, há uma grande variedade de concepções sobre o assunto, dependendo do quanto a igreja local foi influenciada pelas novas tendências extravagantes do neopentecostalismo brasileiro. De qualquer forma, o que se percebe, no geral (e aqui falo por experiência própria), é que entre os pentecostais há sempre uma expectativa de que Deus faça algo sobrenatural: uma cura, uma profecia, alguém falando alguma língua estranha, um exorcismo. Na mentalidade popular, só é espiritual o culto que possui alguma manifestação sobrenatural.

Pode-se dizer que a espiritualidade pentecostal possui cinco características básicas: experiência individual, verbalismo, espontaneidade, sobrenaturalidade e biblicismo. Com isso se quer dizer que os pentecostais valorizam as experiências com o Espírito, que deveriam ser vivenciadas de forma intensa e emocional por todos; que a palavra falada tem prioridade sobre a palavra escrita, o que se traduz por uma liturgia pouco ou nada formal e mais improvisada, por vezes até descontrolada; que os crentes também “desejam e buscam experimentar o poder sobrenatural de Deus em sua própria vida por meio da manifestação dos milagres e maravilhas”.13 Por fim, quando se fala em “biblicismo”, pretende-se dizer que os pentecostais usam amplamente suas Bíblias e procuram justificar suas práticas diretamente no texto bíblico, por meio de uma leitura contemporânea de casos isolados nas Escrituras, sem maiores reflexões teológicas mais amplas. Assim, experiências de arrebatamento (2Co 12.2,3), visitação de anjos (Gn 6.7-12), ouvir vozes (1Sm 3.2-9), visões do céu e do inferno (Ap 1.11; 4.1) são facilmente encontrados entre pentecostais e justificados nestas passagens bíblicas. Em casos extremos, já tendendo para a influência neopentecostal, a teologia da prosperidade também é fundamentada em uma hermenêutica duvidosa de passagens bíblicas selecionadas.

Percebe-se, portanto, que a teologia e espiritualidade pentecostais enfatiza manifestações sobrenaturais e poderosas de Deus por meio do Espírito Santo, as quais, em muitos casos, são buscadas de forma exagerada em muitos grupos, que consideram que só há verdadeira espiritualidade se o “sobrenatural de Deus” se manifestar.14
Portanto, faz-se necessário investigar até que ponto a teologia e espiritualidade pentecostal podem ser consideradas herdeiras da teologia evangélica, e a teologia da cruz, cujas origens no meio evangélico remontam a Lutero, apresenta-se como um possível parâmetro para a avaliação do movimento pentecostal. A seguir, portanto, serão analisados alguns pontos da teologia e espiritualidade encontrados na maior denominação pentecostal do Brasil – a Assembleia de Deus – à luz da teologia da cruz de Lutero.

3. A cruz e o poder de Deus: seria o pentecostalismo uma teologia da Glória?

Foram apresentadas brevemente a teologia e espiritualidade da cruz e a teologia e espiritualidade pentecostais. A tentativa de fazer estas duas tradições do movimento evangélico dialogarem trouxe à luz o seguinte questionamento: não seria o movimento pentecostal (com sua ênfase em milagres, línguas estranhas, profecias e outras manifestações sobrenaturais) uma tentativa de encontrar Deus longe da vergonha e fraqueza da cruz, sendo, portanto, uma “teologia da gloria”? Para responder este questionamento, precisamos levar em conta diversos aspectos de ambas teologias. Vejamos.

3.1 Legalismo e justiça própria: busca incessante do Espírito e da salvação por merecimento

A teologia da cruz derruba todo legalismo e tentativa de chegar a Deus por meio de obras. A justiça de Deus não é simplesmente “dar a cada um o que é seu”, mas salvação imerecida do seu povo pelos méritos do Cristo crucificado somente. Dessa forma, toda espiritualidade fundamentada no esforço humano é inimiga da cruz de Cristo.

Relacionado a este ponto, pergunta-se: “buscar” o batismo com o Espírito Santo, por meio de diversas técnicas, não seria confiar em nossas obras e agir como os místicos medievais, que buscavam por meio de disciplinas espirituais algum tipo de experiência mística com Deus? A experiência com o Espírito Santo, por outro lado, não é algo que nos sobrevém, ao contrário de algo que se conquista por esforço ou persistência humanos? Não seria nesse sentido, então, que o pentecostalismo seria uma teologia da glória?

O conhecido teólogo pentecostal inglês Donald Gee, ao explicar como um crente pode receber o batismo com o Espírito Santo, apresentou os seguintes requisitos,15 fundamentados em Atos 2.38: arrependimento, obediência, fé nas promessas relacionadas ao batismo com o Espírito Santo e espera paciente, crendo que “Deus vai responder aos seus anseios agora”.16 A pergunta que se faz é se com isso, o batismo com o Espírito Santo passa a depender das nossas ações, e não da livre graça divina. Ele deve ser buscado. Não é totalmente obra da graça, mas resultado da obediência, fruto da vida de santificação do crente, em outras palavras. É pelo seu esforço que ele poderá obter essa bênção. E aquele que já foi batizado, mas não fala mais em línguas, pode voltar a ter essa experiência se voltar a se consagrar.17

Não estou dizendo que santificação não é importante. Óbvio que é. Mas a impressão que tenho é que na prática pentecostal, muitas vezes as coisas são recebidas de Deus por merecimento, por causa da persistência do crente ou sua justiça própria. A cruz nos mostra, porém, que Deus, de maneira “louca”, escolheu justificar pecadores, não justos. Assim, o caminho da busca pelo Espírito deve ser feito com discernimento, a fim de que a espiritualidade pentecostal não se torne uma espiritualidade de esforço próprio, e, portanto, uma teologia da glória.

Não podemos subir até Deus; ele é que desce até nós. Isso serve como alerta contra as tentativas de se usar as experiências pentecostais para subir por nossos esforços até Deus. Isso seria uma religião natural, portanto, teologia da glória.

Todo legalismo, todo esforço próprio para ganhar a simpatia de Deus ou entrar em comunhão com ele é uma teologia da glória. Assim, entender que o recebimento do batismo com o Espírito Santo é fruto de uma busca incessante pelo crente, a partir de técnicas humanas de consagração, contraria a lógica própria da cruz.

3.2 Razão natural como fundamento do conhecimento de Deus

O esforço humano para ascender a Deus é a raiz de todas as religiões humanas. Os seres humanos criam técnicas para entrarem em contato com o divino e, a partir do que observam na ordem natural ou mesmo a partir da razão humana, estipulam regras e critérios que, se imagina, facilitariam esse caminho.

O “bom senso”, a “razão” e a “natureza” indicam que, se quisermos chegar até Deus, seja ele quem for, temos que fazer algo que lhe agrade. Além disso, é natural pensarmos que o criador de todas as coisas algum dia nos julgará pelo bem ou pelo mal que fizemos em vida. Colhemos o que plantamos. Assim, se quisermos nos “salvar” do juízo divino, devemos fazer coisas boas e fugir das coisas más, e dessa forma receberemos o que merecemos, pois Deus é justo e dá a cada um o que cada um merece. Tudo isso parece bastante razoável e natural. Poucas pessoas discordariam dessas afirmações, caso aceitem que Deus existe.

A espiritualidade pentecostal, em certo sentido, possui também uma lógica perfeitamente razoável para o ser humano. Pois se Deus é o poderoso e onipotente criador de todas as coisas e nos ama, ele pode e irá manifestar-se diante de seu povo e dos incrédulos por meio de sinais, milagres, maravilhas que demonstrem e confirmem esse poder. Se ele pode fazer algo grandioso, então fará. Além disso, “poder” é entendido no sentido usual e natural do termo: demonstração de força, controle, domínio sobre a realidade. Assim, o passo seguinte é que o poder do Espírito Santo manifestado sobrenaturalmente passa a ser visto como uma “confirmação” da veracidade da mensagem pregada, a confirmação de que a pessoa que manifesta o carisma é “espiritual”.

Como resposta a isso, podemos lembrar do fundamento da teologia da cruz. Na sua primeira carta aos Coríntios, Paulo entendeu que a dificuldade fundamental daquela igreja era seu triunfalismo. Eles desfrutavam dos dons espirituais, falavam línguas desconhecidas, realizavam prodígios e maravilhas, mas estavam divididos entre si, movidos por inveja e vanglória. Achavam que já desfrutavam plenamente as bênçãos da nova existência, da ressurreição futura. Se gloriavam no poder que tinham.

O apóstolo, então, resolve confrontar essa atitude e questionar a espiritualidade dos coríntios, dizendo que ela é sobretudo sabedoria e poder humanos, ao passo que a sabedoria e poder de Deus contraria essa lógica. Mesmo com manifestações sobrenaturais, a espiritualidade coríntia, ao valorizar e entender mal essas manifestações, continuava sendo essencialmente humana! A sabedoria divina, por outro lado, se manifesta pelo contrário do que é: na fraqueza e na loucura humana (a cruz). A lógica humana, que é a lógica dos coríntios, e a lógica de Deus, que é a da Cruz, que coloca o ser humano e sua espiritualidade no seu devido lugar, se contrapõem.

Paulo diz que a “sabedoria” e o “poder” que a igreja de Corinto vinha valorizando era nada diante de Deus (1Co 1.22-25). Os judeus pediam sinais miraculosos (1Co 1.22): eles seriam o equivalente ao crente que só quer o “re-te-té” ou a prosperidade material. Querem milagres, querem o mar vermelho se abrindo, línguas de anjos. Era por isso que muitos judeus não creram em Jesus. Era um absurdo um Messias sofredor. O messias teria que ser alguém poderoso, de família nobre, vencedor. Os judeus com certeza tinham as Escrituras da época (o Antigo Testamento) em alta conta. O veneravam, procuravam seguir da melhor forma possível. Mas sua lógica e sabedoria eram humanas. Esperavam um Deus poderoso, como aquele que abriu o mar Vermelho ou que se manifestaria como um guerreiro vitorioso. Mas não. Jesus, a Palavra de Deus encarnada, desafiou toda a interpretação que eles faziam.

Para essas pessoas, um Deus sofredor é um escândalo, porque rompe com sua lógica humana que parece espiritual, mas não passa de religiosidade humana que Deus não aceita. A esses Deus responde que o Cristo crucificado é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê (Rm 1.16).

Os gregos buscam sabedoria: essa seria a lógica humana, o legalismo, os nossos conceitos de justiça, de bem e de mal. Os gregos possuíam uma sabedoria sofisticada, com pensadores importantes como Platão e Aristóteles. Em “Ética a Nicômaco”, Aristóteles ensina que justiça é “dar a cada um o que seu”. Também diz que a pessoa se torna virtuosa pela prática da virtude. Vou me tornando justo conforme pratico ações justas. Consequência disso é a justificação por obras. Sabedoria humana que rejeita a mensagem da cruz! Nós não conseguimos aceitar que Deus morreu por nós e nos justificou por sua justiça, não pela nossa. “Não é justo”, sermos salvos sem ter que fazer nada, não é justo que a justiça de alguém nos seja aplicada, não é justo que alguém morra em nosso lugar, diriam os gregos no passado e os espíritas hoje.

Deus, porém, não está preso às limitações dos conceitos e raciocínios humanos. Ele é livre e soberano. O que podemos entender de Deus, ele revelou na cruz, não na glória, segundo padrões humanos ou naturais. A cruz demonstra a completa seriedade do pecado e declara a impotência da humanidade caída para alcançar a salvação.

O apóstolo apresenta o centro do evangelho: a cruz de Cristo como poder de Deus. Essa afirmação era inaceitável para os judeus, gregos e até mesmo para boa parte da igreja. Era um escândalo: como a morte humilhante e terrível na cruz pode significar poder? Não seria melhor refletir sobre a ressurreição gloriosa de Jesus? Quem sabe falar dos seus milagres? Ou então enfatizar seu governo glorioso como Cristo ressuscitado?

A mensagem da cruz quebra com a lógica humana. Pensamos que podemos encontrar Deus em atos poderosos, mas ele se manifestou justamente na fraqueza e no sofrimento. E é ali, e não em outro lugar, que ele quer ser conhecido!

Nem todos os pentecostais pensam que o exercício dos dons comprova a espiritualidade da pessoa (ao menos em teoria), mas o fato é que a prática muitas vezes demonstra que o povo considera que só é verdadeiramente espiritual um culto, pregação ou estilo de vida se este estiver recheado de manifestações sobrenaturais, desde o falar em línguas estranhas, passando pela profecia até chegar aos milagres e curas divinas. Mais uma vez, repito: esta concepção é totalmente razoável e conforme a religiosidade humana natural. Todas as religiões defendem que seu(s) Deus(es) é/são mais poderoso(s) que os outros (ou o único verdadeiro) e que, portanto, irão demonstrar esse poder através de alguma atividade sobrenatural ou pelo empoderamento de seus seguidores. Jamais, porém, uma religião que surge do ser humano poderia imaginar que o poder de Deus se manifestaria na fraqueza, vergonha e morte da cruz, ou seja, pelo contrário do que ele é.

Alguns pentecostais tem a petulância de chamar de impiedade e falta de fé o não crer em promessas extravagantes de prosperidade, triunfo, “vitória” e conquistas materiais imediatas. Deus é poderoso e também é bom, logo, ele dará as coisas boas que pedimos, e duvidar disso ou dizer “seja feita a tua vontade” é falta de fé! Isso é pensar com a lógica do mundo, e não com a lógica da cruz. Não há lógica mais carnal e natural do que esta, ainda que esteja travestida de grande espiritualidade e “fé”.

A cruz, portanto, “crucifica” essas imagens “naturais” ou “razoáveis” de Deus, em geral antropocêntricas (e como tais, projeções e mistificações da mente humana) e voltadas para uma lógica de poder (Deus todo poderoso que se manifesta de maneira gloriosa, por meio de sinais e maravilhas) e mérito humano. Ela tem uma lógica própria, e nos ensina que, contra toda a aparência ou razoabilidade, “Deus é mais presente precisamente quando parece mais ausente”.18 Essa verdade não é uma especulação para nos ajudar a suportar o sofrimento, mas uma realidade manifesta no fato empírico da cruz e da ressurreição, “eventos empíricos” que nos demonstram a confiabilidade de Deus19. São esses eventos, e não nossas concepções naturais e “óbvias” sobre quem Deus é e faz, que devem nortear a espiritualidade evangélica e pentecostal.

3.3 Seria suficiente a fé fundamentada em sinais e maravilhas?

Foi dito acima que é comum nos meios pentecostais a expectativa de manifestações sobrenaturais do Espírito Santo. No culto pentecostal a adoração é espontânea e há sempre, mesmo que de forma latente, uma expectativa ou, no mínimo, uma abertura para que aconteça algo inesperado produzido pelo Espírito. Também vimos que a teologia pentecostal entende que os dons espirituais que produzem curas, sinais e maravilhas são uma importante demonstração de que Deus, afinal, preocupa-se com o ser humano como um todo, inclusive seu corpo e sua vida cotidiana neste mundo, não somente com sua “alma”, o que é um importante corretivo para que se evite uma espiritualidade por demais docética ou gnóstica.

Essas manifestações sobrenaturais são as mais diversas: pode ser simplesmente um ou alguns irmãos orando, adorando ou exclamando palavras em línguas estranhas (glossolalia); uma profecia proferida pelo pregador, por algum cantor ou líder de louvor ou mesmo por algum membro em algum momento de oração ou busca mais intensa por Deus; um exorcismo; alguma cura no momento de oração pelos enfermos ou no “convite”, ao final da pregação; a oração (posteriormente respondida, preferencialmente de forma sobrenatural) para que alguém encontre um emprego, seja liberto das drogas, restaure seu casamento, etc., Em que sentido, porém, a expectativa pelo sobrenatural pode contrariar a teologia da cruz?

Entendo que a espiritualidade pentecostal em sua tendência sobrenaturalista se torna uma teologia da glória quando gera aquele tipo de seguidor de Jesus que o segue porque vê seus milagres. Eles são como aquelas multidões do evangelho de João que estão encantadas com a multiplicação dos pães e os sinais que Jesus faz (Jo 6.14), e criando grandes expectativas quanto ao que ele fará (Jo 6.15), já que ele demonstrou ter grande poder. No entanto, logo eles se escandalizam com a mensagem e abandonam a fé (Jo 6.65,66) ou, mais tarde, estão entre o povo que grita “crucifica-o” àquele que antes admiravam. Isso é assim porque, como já foi falado acima, é natural ao ser humano esperar que um Deus poderoso se manifeste por meio de “sinais” (1Co 1.22: “os judeus pedem sinais”).

Muitos desenvolvem, a partir dos milagres que vivenciam ou querem vivenciar, uma visão de mundo triunfalista, onde Jesus é o guerreiro celestial vitorioso,20 que vai nos conceder o que queremos ou precisamos, rejeitando assim a dimensão fundamental de sua mensagem: o Jesus servo, que sofre em prol do seu povo e o salva em humilhação, que se manifesta em fraqueza para confundir ou sábios e poderosos deste mundo.

Assim, se nos preocuparmos mais com os “sinais e maravilhas” do que com a Palavra (que demonstra a fraqueza da cruz) para a qual esses sinais apontam, estaremos vivendo à luz de uma teologia da glória no sentido dado por Lutero. Estaremos buscando encontrar Deus nas coisas “visíveis e posteriores”, mudando o foco da cruz para manifestações de poder.

Outro possível problema da espiritualidade pentecostal quanto à expectativa por milagres e o anseio por bênçãos divinas imediatas talvez seja que por trás da busca pelo sobrenatural se esconda um desejo de glória, poder, riquezas e honra. A mensagem da cruz, nesse caso, pareceria então desprezível. Melhor oferecer algo que nos faça parecer menos “caretas” e mais “vencedores”, “felizes” e “satisfeitos”. “Minha religião é melhor, pois somos mais bem-sucedidos, Deus nos dá mais coisas do que nas outras igrejas ou religiões”. No final, essa perversão da espiritualidade pentecostal nada mais é que uma teologia da glória, que julga Deus segundo a sabedoria e as aparências humanas, que não suporta a fraqueza da cruz, pelo contrário, procura Deus em “lugares de poder “21 para satisfazer nosso anseio por poder e autossatisfação.

Portanto, ainda que milagres sejam bons e importantes, especialmente em alguns contextos, não podemos esquecer que eles não são o centro da fé cristã e que não justificam ou garantem uma vida centrada no sucesso, prosperidade ou felicidade individual. Eles são, como toda experiência, insuficientes para criar e sustentar a fé verdadeira por si sós. A seguir, veremos que, ao mesmo tempo em que as experiências humanas do sobrenatural são insuficientes para produzir essa fé verdadeira e uma espiritualidade saudável, também são incapazes de fornecer uma chave para a leitura da Bíblia e o labor teológico.

3.4 Experiência como chave para a interpretação das Escrituras e labor teológico

Ao falar sobre a espiritualidade pentecostal, foi apresentado como uma de suas características fundamentais a ênfase em experiências individuais sobrenaturais e o forte biblicismo que justifica as mais diversas práticas no culto e na vida cristã a partir de uma leitura literal de passagens selecionadas das Escrituras.

Nesse sentido, poderíamos dizer que a hermenêutica pentecostal, ao menos nas Assembleias de Deus no Brasil, por meio da sua principal editora, a CPAD, possui duas características marcantes: ela é conservadora e experimental. Por conservadora se entende que é fortemente influenciada pelo fundamentalismo, literalismo e pelo dispensacionalismo.22  Por experimental, se entende que a “experiência” é fundamental na hermenêutica pentecostal. Doutrinas e experiências pessoais ou coletivas são fundamentadas em passagens bíblicas específicas, o que demonstra um certo pragmatismo na interpretação.23

Não se nega que a experiência religiosa seja importante para a fé cristã. Ela não pode ser descartada. No ocidente, há como que uma separação entre a subjetividade da experiência e a objetividade da Bíblia e da tradição . O pentecostalismo, sendo pragmático na sua leitura das Escrituras, vive nessa tensão entre a autoridade da Bíblia, formalmente aceita, e as experiências espirituais, bastante subjetivas e as vezes questionadoras da autoridade primária das Escrituras.

À luz da teologia da cruz, poderíamos perguntar se a experiência religiosa, no movimento pentecostal moderno, não se tornou a chave hermenêutica para a interpretação das escrituras e até para a reflexão teológica. Se for esse o caso, a Bíblia segue sendo formalmente a autoridade em matéria de fé e vida cristã, mas essa autoridade em determinados momentos e situações se vê ameaçada pela experiência religiosa, que ao se tornar a lente pela qual as Escrituras são lidas, acaba por não as deixar falar, solapando, portanto, sua autoridade. Numa situação dessas, sem dúvida estaremos diante de uma teologia da glória, na medida em que um fator humano determina nossa compreensão da revelação divina. A cruz é substituída por experiências que por sua vez nada mais são que anseios humanos subjetivos. Os conceitos sobre Deus passam a ser conceitos humanos sobre quem Deus é, ou seja, ídolos.

Foi Schleiermacher, um dos precursores do liberalismo teológico, quem defendeu que o cristianismo, assim como toda religião, é o “sentimento” (gefühl) de dependência total de uma realidade infinita, de unidade com o todo, e do senso de plenitude dela resultante. Com isso, a experiência religiosa acaba por ser considerada a autoridade suprema em matéria de fé, sendo a Bíblia apenas o registro da experiência religiosa do antigo povo de Deus. Falar de Deus passa a ser falar da experiência humana de Deus.25

A ênfase na experiência religiosa típica do pentecostalismo, contudo, não vai tão longe quanto Schleiermacher, até porque se entende que essa experiência tem origem sobrenatural, não se tratando de algo místico (ser humano buscando a Deus) ou meramente “natural”. Contudo, é inegável que ao menos no âmbito de sua espiritualidade, os pentecostais tendem a permitir que a experiência os guie na sua caminhada espiritual até mais do que a própria Palavra.26 A experiência acaba condicionando a interpretação das Escrituras. Toda e qualquer prática espiritual acaba sendo justificada por uma leitura pragmática e experimental da Bíblia. Dessa forma, Deus é buscado por meio das “coisas visíveis e posteriores”, rejeitando o que poderíamos chamar de “hermenêutica da cruz”, ou seja, a interpretação das Escrituras a partir da cruz de Cristo.

Penso aqui, por exemplo, nas pessoas que são guiadas por profecias. Elas querem que Deus lhes fale diretamente e apresente a solução para os mais variados problemas ou diga qual escolha deve ser feita. Ainda que não seja tão comum, há cristãos que esperam por uma profecia dizendo com quem devem se casar, ou se devem ingressar no ministério pastoral. Já ouvi sobre um caso em que uma pessoa ouviu uma profecia no sentido de que seu marido era um entrave ao seu “ministério”, e que, portanto, o divórcio seria a melhor solução. A experiência supostamente sobrenatural, portanto, se sobrepôs ao que a Palavra de Deus diz sobre o assunto.

Há também pessoas que afirmam que o momento máximo da espiritualidade é o batismo com o Espírito Santo, como Donald Gee.27 A pergunta que fica, frente a uma afirmação dessas é: essa experiência é maior do que o impacto da a cruz na vida do cristão? Não se está com isso tirando o foco da cruz, na medida em que uma experiência de enchimento com o Espírito seria maior do que a própria conversão e arrependimento?

Crer somente no que se vivencia é outra consequência de fundamentar a fé na experiência. É como a pessoa que pensa que “Deus é bom” porque ganhou um bom emprego após pedir oração, foi curado milagrosamente, ou resolveu seus problemas. Seu conceito de Deus se fundamenta na experiência que teve. Mas, e quando vem os problemas? Deus deixa de ser bom? A pessoa deve se tornar ateia? Se a experiência humana determina nossa fé, e não a Palavra, a decepção se torna inevitável a longo prazo.

O mais irônico disso tudo é que estes pentecostais, ao colocarem involuntariamente a experiência como critério hermenêutico, acabam por se assemelhar aos seus rivais históricos, os teólogos liberais e as teologias que negam a atividade sobrenatural de Deus no mundo, e com isso a crença em milagres. Não por acaso, Schleiermacher vinha de um lar profundamente petista , sendo provável que esta influência permaneceu por toda a sua vida. Uma ênfase excessiva na experiência acaba por levar a teologia cristã para longe da fé ortodoxa conforme revelada nas Escrituras.
No geral, muitos pentecostais dizem que as Escrituras têm autoridade, que elas determinam sua teologia, e com isso criticam os teólogos liberais e mesmo os neo-ortodoxos, como Karl Barth, que rejeitam a ideia de inerrância bíblica. Porém, apesar de muitos pentecostais, teoricamente, ressaltarem autoridade das Escrituras, na prática acabam por colocar suas experiências e preconceitos como autoridade, não deixando a Bíblia falar por si mesma. O que ocorria com a filosofia aristotélica nos dias de Lutero, que indevidamente se impôs sobre a teologia, como no uso do conceito de “justiça”, ocorre hoje com as experiências espirituais de muitas pessoas. Teólogos como Barth, por outro lado, apesar de teoricamente ensinarem que a Bíblia não é infalível e muito menos inerrante, na prática mandam que sejamos sujeitos e obedientes a ela. Não basta afirmar a autoridade e suficiência das Escrituras ou da cruz. É necessário impedir que fatores externos, inclusive as experiências espirituais do intérprete, a impeçam de falar.

O fato é que a teologia pentecostal corre o risco de se tornar muito centrada no ser humano e seus anseios imediatos, especialmente quando experiências puramente emocionais, que se passam por espirituais, mas são totalmente carnais, adentram a igreja, sendo justificadas a partir das Escrituras por meio de uma leitura experiencial e pragmática. Nesse caso, sem dúvida, estamos diante de uma teologia da glória, que parte do ser humano para chegar a Deus.

Quando experiências sobrenaturais poderosas se tornam necessárias e indispensáveis para o culto e a vida cristã, a tendência é a banalização do carisma, que perde seu caráter espontâneo e sobrenatural. O choro, os gritos de “aleluia” e “glória a Deus”, as línguas estranhas, as profecias, etc., acabam por se tornar chavões repetitivos, superficiais e forçados. Os membros glorificam a Deus sem sequer prestar atenção ao sentido da frase mencionada pelo pregador, ou sem que ele tenha falado algo realmente profundo. A entonação de voz de quem está no microfone passa a ser fundamental para que pareça que o Espírito Santo está presente no culto, e as exclamações espontâneas são feitas muitas vezes com base nisso. Não há mudança de vida nas pessoas que visivelmente parecem ter tido um encontro com Deus. Alguns sentem algum tipo de emoção e entendem que é Deus falando. Com isso, muitos desejos egocêntricos são justificados com base em sentimentos subjetivos do coração humano, que é “enganoso e desesperadamente corrupto”, como disse o profeta Jeremias.

Não se pode, porém, confundir os sentimentos e desejos subjetivos do coração enquanto se ora ou adora com a voz de Deus por meio do seu Espírito confirmando a sua vontade para a vida da igreja ou do crente em determinada situação. Uma coisa não é sinônimo da outra, e muitas vezes são coisas radicalmente opostas. Tão ruim quanto não orar ou “sentir” a presença de Deus é pensar que nossas orações, muitas vezes interesseiras e carnais, apesar de contínuas e ardorosas, confirmam e legitimam nossos desejos egoístas ou planos mirabolantes e sem futuro. Enfim: discernimento espiritual é tudo, e parece ser o que mais nos tem faltado em nosso tempo, em que a cruz deixa de ser padrão para avaliação de nossos desejos, sendo colocada em seu lugar outras coisas humanas. Tenta-se produzir artificialmente uma espiritualidade “avivada”. Nessas situações, é bastante difícil para grande parte da igreja discernir entre a legítima e a artificial experiência espiritual, e é muito triste quando chavões e expressões emocionais vazias são confundidos com a manifestação do Espírito.

Situação semelhante ocorreu nas campanhas de avivamento de Charles Finney, que pensava poder produzir avivamentos desde que fossem seguidos certos passos, como música adequada, frases de efeito, tom de voz, etc.29 Avivamento verdadeiro, experiências profundas com o Espírito desfrutadas por toda a comunidade, não podem ser planejados ou produzidos pela igreja ao seu bel prazer. O Espírito Santo opera sobrenaturalmente, visitando a igreja quando bem entender. Da nossa parte, só podemos jejuar e orar para que essa visitação nos sobrevenha, pois o avivamento “é um poderoso e soberano derramamento do Espírito Santo.”30

Portanto, a experiência humana artificialmente produzida não pode se tornar o critério normativo para a compreensão da vida cristã, da Bíblia e para o nosso falar sobre Deus. O biblicismo e a ênfase em experiências individuais e no sobrenatural, além da espontaneidade e da oralidade, mencionados no segundo capítulo deste trabalho, estão profundamente interligados nesse ponto.

Lutero nos lembra que a presença divina na cruz só pode ser experimentada pela fé, que não se fundamenta nos sentidos. Fé é a certeza das coisas que não se veem, como está escrito em Hebreus. Se precisamos de experiências visíveis maravilhosas para crer em Deus, não poderemos vê-lo presente na cruz, pois ali sua manifestação foi em fraqueza, vergonha e dor. A expectativa por experiências espirituais extraordinárias nos impede de nos conformarmos ao Deus crucificado.

Com isso, não se está afirmando que a fé não se fundamenta em fatos ou acontecimentos. Pelo contrário, a fé cristã se baseia em fatos históricos, mas não nos fatos cotidianos de nossa vida. Nossas experiências naturais nos fazem concluir em momentos ruins de nossa vida que Deus está longe, quando na verdade a própria cruz demonstrou e Paulo atestou no seu sofrimento, é exatamente ali e então quando Deus está mais presente. É o paradoxo. Nossa experiência simplesmente está errada. As coisas não são como elas parecem ser. Deus está mais intimamente envolvido em nossa vida, muitas vezes, quando parece que menos o experimentamos.31
Assim, a espiritualidade pentecostal como um todo pode aprender com a teologia da cruz. Ela, e não nossas experiências subjetivas, deve ser o ponto de partida e critério para nossa teologia e vida espiritual! Do contrário, o que teremos é uma teologia e espiritualidade humanista, que apenas na aparência parece centrada na cruz, mas que no fundo é essencialmente uma teologia da glória antropocêntrica que não conhece o Deus verdadeiro.

3.5 História do movimento pentecostal como demonstração da cruz na vida da igreja

Um dos pontos importantes da teologia da cruz é que ela humilha os conceitos humanos sobre Deus e sua ação no mundo. Deus se revela pelo contrário do que é, manifestando seu poder no que nós consideramos fraqueza, vida onde só vemos morte, sabedoria no que nos parece loucura.

Paulo, escrevendo para os cristãos de Corinto, combate o triunfalismo e a tendência carnal daquela igreja de avaliar as coisas segundo as concepções humanas. Dessa forma, ele escreve em 1Co 1.26-29:

Irmãos, observai o vosso chamado. Não foram chamados muitos sábios, segundo critérios humanos, nem muitos poderosos, nem muitos nobres. Pelo contrário, Deus escolheu as coisas absurdas do mundo para envergonhar os sábios; e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes. Ele escolheu as coisas insignificantes do mundo, as desprezadas e as que são nada para reduzir a nada as que são, para que nenhum mortal se glorie na presença de Deus.

Se olharmos para a história do movimento pentecostal moderno, especialmente no Brasil, constataremos que essa aparente descrição paulina do nível social dos membros da igreja de Corinto é muito semelhante às igrejas pentecostais, especialmente as Assembleias de Deus. Principalmente nas primeiras décadas do movimento pentecostal no Brasil, os membros da Assembleia de Deus brasileira pertenciam aos níveis mais simples e humildes da sociedade: pessoas pobres ou de classe média baixa e com pouca instrução. A história da Assembleia de Deus é a história de seres humanos desprezados pela sociedade em que viviam e que, em meio a muita fraqueza e sofrimento, construíram a denominação e ajudaram grandemente na expansão do evangelho em nosso país e em vários lugares do mundo, especialmente naqueles mais pobres.

Já nas suas origens em terras brasileiras, a Assembleia de Deus começou em meio a muito sofrimento e humilhação. Missionários suecos radicados nos Estados Unidos chegaram sem qualquer apoio oficial e sem qualquer recurso financeiro ou forma de sustento. O lugar escolhido, conforme a direção do Espírito Santo, foi o estado do Pará, na região norte do país, uma das menos desenvolvidas e mais pobres. Após alguns cultos em uma igreja batista em Belém, foram expulsos junto com alguns membros por causa das manifestações do Espírito Santo. Foi então criada uma nova igreja, que logo adotou o nome de sua congênere norte-americana. Sabe-se que os missionários Daniel Berg e Gunnar Vingren juntavam dinheiro para comprar Bíblias, Novos Testamentos e evangelhos, tendo distribuído milhares deles ao longo dos anos. A expansão da igreja era acompanhada pela expansão da Bíblia.32

Muitas perseguições aos pentecostais foram relatadas em todo o Brasil nas origens da Assembleia de Deus. Emílio Conde relata perseguição em dezessete dos 22 estados, com maior incidência no Nordeste. Foram relatados diversos casos de perseguição especialmente nas décadas de 20, 30, 40 e 50 com missionários e pregadores ameaçados, templos incendiados, pessoas espancadas e apedrejadas, livros queimados, etc. Em muitos casos as perseguições foram estimuladas por padres católicos locais. Jornais locais também publicavam e seguem publicando diversas reportagens caluniosas e injuriosas ou pelo menos tendenciosas, depreciando e ridicularizando o movimento.33

Nesse cenário, o que se viu foram irmãos e irmãs que carregaram pesadas cruzes, sendo desprezados por todos: pela sociedade, por sua pobreza, ignorância e irrelevância; pelos meios evangélicos já estabelecidos, por seu suposto fanatismo, misticismo e irracionalismo. A glossolalia, as profecias, as curas miraculosas e os dons sobrenaturais do Espírito, aliados ao despreparo teológico e falta de instrução formal dos líderes pentecostais eram e seguem sendo vistos como loucura pelos sábios e instruídos teólogos e estudiosos das igrejas evangélicas tradicionais. Para os incrédulos, a rígida ética do movimento, aliada ao aparente irracionalismo das manifestações do Espírito, faz o pentecostalismo parecer desprezível, uma religião de fanáticos alienados.

Os sociólogos falam em uma “função social” do pentecostalismo. Várias explicações foram propostas. Alguns defendem que o movimento possui uma função resignadora para os excluídos da sociedade, deslocando aspirações e conflitos para o âmbito espiritual. Outros defendem que o pentecostalismo promove a resistência aos padrões sociais, na medida em que prega uma fortíssima rejeição ao mundo, que é do diabo. No lugar disso, surge uma nova comunidade eclesial, onde os irmãos têm um relacionamento fraterno e solidário. Por fim, para outros pesquisadores, o pentecostalismo possui uma função mobilizadora, buscando romper com o status quo.34 Qualquer que seja o caso, o que se pode concluir desses modelos explicativos é que o movimento pentecostal e a Assembleia de Deus são vistos pelos estudiosos como um movimento constituído principalmente por pessoas mais simples e empobrecidas, geralmente desprezadas pela sociedade.

A situação hoje não é muito diferente das origens da Assembleia de Deus, apesar dela ter alcançado mais pessoas de classe média e alta, os quais ainda são uma pequena minoria dentro da denominação. Poucos anos atrás, segundo o censo de 2010, os pentecostais (agrupados pelo IBGE junto com os neopentecostais) somavam mais de 25 milhões, num universo total de 42 milhões de evangélicos. Isso significa que mais da metade dos evangélicos do Brasil são pentecostais ou neopentecostais. Destes 25 milhões, praticamente a metade (12,3 milhões) pertenciam às Assembleias de Deus.35 Isso significa que uma minoria expressiva da população brasileira (pouco mais que 6%) se considera membro dessa que é a maior denominação evangélica do Brasil e uma das pioneiras do movimento pentecostal. Em dez anos, a Assembleia de Deus passou de 8,4 milhões de membros para 12,3 milhões,36 um crescimento de quase 50% num intervalo de tempo bastante curto. Mesmo hoje, com o crescimento da denominação e sua expansão também entre setores da classe média e alta, o sentimento de rejeição e perseguição segue entre os membros. Uma pesquisa realizada pelo sociólogo Ricardo Mariano, de 100 fiéis de igrejas pentecostais diversas, 24 disseram sofrer perseguições/discriminações e problemas com frequência, enquanto 53 afirmam que isso ocorria as vezes.37

Os índices do IBGE indicam que a maior parte dos membros de igrejas pentecostais são pardos ou negros (14 milhões contra 10 milhões, sendo que na Assembleia de Deus são 7,5 milhões contra 4,5 milhões de brancos), sendo que mais de 7 milhões não possuem instrução ou possuem apenas ensino fundamental incompleto, enquanto apenas 659 mil possuem curso superior completo e 3,3 milhões superior incompleto. Dos 10 milhões de pentecostais em atividade mais de 70% ganha até dois salários mínimos, e apenas 24 mil pessoas recebem mais de 20 salários mínimos. Dos 20 milhões de pentecostais, mais de 13 milhões vivem em lares com renda per capta de até um salário mínimo.38 Esses números, portanto, nos confirmam que o pentecostalismo continua a ser uma religião mais popular entre as classes mais baixas, com níveis de renda e escolaridade inferiores.

Vale lembrar que o movimento pentecostal muitas vezes foi rejeitado justamente por essa aparente fraqueza, por ser composto por pessoas simples e desprezíveis aos olhos humanos. Isso, por si só, já deveria nos alertar quanto aos riscos de se perder algo importante nas tentativas apressadas em descartar o movimento como uma teologia da glória ou uma prática herética produzida por pessoas ignorantes.

De tudo isso, podemos concluir que o movimento pentecostal continua desafiando as instituições sociais e eclesiásticas tradicionais, apesar da crescente institucionalização da sua principal denominação. A Assembleia de Deus, em muitos aspectos, já não é mais a mesma igreja que foi há cinquenta ou cem anos atrás. Verifica-se uma institucionalização da liderança, práticas centralizadoras nas mãos do “pastor presidente”, que por vezes parece um típico “coronel nordestino”, acúmulo de patrimônio nas mãos de alguns líderes em detrimento dos demais obreiros e dos membros, presença e descrições mais positiva na mídia e na sociedade. O triunfalismo neopentecostal também ingressou em suas fileiras. Em algum momento o carisma, o poder do Espírito, ganhou autonomia e foi desligado ou parcialmente desligado da cruz em muitos lugares. Tudo isso, contudo, quanto visto da perspectiva da intenção central do movimento pentecostal e dos fundadores da instituição nas suas origens, parece ser bastante estranho. Nas suas origens, como movimento, o pentecostalismo da Assembleia de Deus vinha acompanhado de cruzes nas vidas do seus líderes e membros, que pareciam não se importar com esse fato. O importante era a expansão do evangelho em todo o país, incluindo os mais pobres e humildes. O poder do Espírito não era um fim em si mesmo, mas uma capacitação para que pessoas simples pudessem colaborar com o crescimento do evangelho em todo o país, o que de fato ocorreu. Não há traços de orgulho e triunfalismo nessa expansão. Humilde e silenciosamente, a igreja cresceu exponencialmente. O que parecia impossível aconteceu: um movimento composto por pessoas simples, pobres e pouco instruídas cresceu, consolidou-se e se tornou na Assembleia de Deus a maior igreja evangélica do país em poucas décadas. O poder de Deus se manifestou na fraqueza humana.

Assim, pela sua história e intenção original (expansão do evangelho por meio do poder do Espirito Santo), e despojado das características já mencionadas nos tópicos anteriores, mais típicas do neopentecostalismo, o movimento pentecostal parece plenamente vivenciar na prática a teologia da cruz. Os desdobramentos posteriores, porém, levaram a uma parcial distorção dessa intenção original (ao invés de enchimento de poder para evangelização e edificação coletiva, busca de milagres, sobrenatural com propósitos pragmáticos e egoístas ou segurança diante de Deus ou mero crescimento de igreja). Com isso, parte do movimento pentecostal se tornou uma teologia da glória, que busca o Espírito justamente para fugir da cruz na vida do cristão e da igreja, cruz essa que nunca foi negada pelos pioneiros do movimento e que segue sendo carregada por parte expressiva dos seus crentes.

3.6 A cruz usada como subterfúgio para a descrença e para um cristianismo domesticado ou derrotista

Diante de tudo o que foi falado, entendo que uma espiritualidade pentecostal saudável constitui-se em importante elemento para a espiritualidade contemporânea. Por vezes a ênfase no Deus que se revela na cruz e no sofrimento pode também ser mal interpretada, e talvez a perspectiva pentecostal possa ajudar o cristão a ter uma perspectiva mais ampla do significado do poder de Deus manifesto na cruz e sua manifestação entre o seu povo hoje.

Em situações práticas, a perspectiva pentecostal nos ajuda a evitar o extremo do fatalismo. Exemplificando: se por um lado, em uma situação de enfermidade e sofrimento, não podemos exigir de Deus a cura ou alimentar falsas esperanças triunfalistas, por outro lado, também não devemos aceitar a dor somente por falta de fé ou por achar que Deus não existe ou nos abandonou, ou não é bom, ou não mais opera sobrenaturalmente entre seu povo.

De fato, a verdadeira fé é a confiança na soberania e poder de Deus em meio ao sofrimento. Mas o “seja feita a tua vontade” não pode se tornar numa desculpa cínica e piedosa para a falta de confiança em Deus. A verdadeira espiritualidade é saber que na dor, na cruz, Deus se faz presente de uma maneira muito especial. É crer em Deus contra toda a aparência ou esperança. E nessa confiança, devemos estar abertos à atuação sobrenatural de Deus por meio do seu Espírito, manifesto nas vidas e orações de irmãos em Cristo, que inclusive podem ter um dom espiritual apropriado para a ocasião.

Assim, a teologia da cruz não pode ser usada como subterfúgio piedoso para a rejeição da ação sobrenatural de Deus por meio do seu Espírito ainda hoje, ou seja, para a rejeição da atualidade dos dons espirituais extraordinários.

Se por um lado a vida cristã não deve estar direcionada para perceber a presença divina principalmente nas manifestações visíveis de poder, não podemos deixar de estar abertos para a ação extraordinária e visível do Espírito de Deus. Essa falta de abertura também seria uma teologia da glória, na medida em se estabeleceria uma espiritualidade estritamente racional na qual a ação divina estaria domesticada por nossa interpretação das Escrituras e conforme os paladares intelectuais mais refinados. Conceitos como Deus não pode se manifestar ou estar presente senão pela pregação da Palavra e da ministração dos sacramentos parecem por demais estritos e limitados. Se o Espírito não pode, na prática, agir livre e espontaneamente ainda hoje, ele na prática fica sob o controle humano, por meio de um discurso aparentemente piedoso, mas que se fundamenta, na sua rejeição da ação extraordinária do Espírito Santo, em sabedoria humana.

A teologia pentecostal, portanto, entende que Deus se manifesta hoje especialmente por meio da pregação da Palavra e ministração do batismo e da santa ceia. A salvação é comunicada e recebida por estes meios, sendo a cruz o seu fundamento. Contudo, o Espírito Santo tem liberdade para agir, e segue agindo de maneiras que nos surpreendem. Deus pode ser percebido por meio dos dons extraordinários do Espírito quando exercidos na igreja para a edificação do corpo de Cristo. Não podemos controlar a ação de Deus, ainda que saibamos que ele agirá sempre conforme a sua Palavra. Considerando, porém, que as Escrituras não são uma coleção de livros que minuciosamente tratam da ação de Deus no mundo ou na vida do seu povo, há um amplo espaço para a ação do seu Espírito. Assim, em meio às diversas cruzes, é legítimo esperar (no sentido de ter esperança, não de determinar!) que Deus possa agir e reverter nossa situação, aqui e agora, seja por meio de uma cura miraculosa, seja pelo livramento em uma situação de opressão, usando pessoas capacitadas pelo Espírito Santo, por meio de dons espirituais sobrenaturais. Ainda que Deus se revele no sofrimento da cruz e em nossas cruzes diárias, sendo essa a realidade da existência cristã nessa vida, é muito bom quando podemos experimentar concretamente a bondade de Deus por meio de alguma bênção que ele graciosamente nos concede pela ação inexplicável e não controlada do seu Espírito, sobrenaturalmente. Nessas situações, podemos dizer “Deus é bom” não somente pela fé, mas porque experimentamos essa bondade concretamente em nossas vidas!

4. Conclusão: poder na fraqueza

“A visitação de Deus por meio do Espírito constitui os crentes como um povo plenamente escatológico que vive a vida do futuro no presente enquanto aguarda a consumação.”39 Essa é uma das teses de Gordon Fee, famoso escritor, exegeta, professor e pastor ordenado pela Assembleia de Deus dos Estados Unidos, no seu livro Paulo, o Espírito e o povo de Deus. Com isso, entende-se que os cristãos desde já vivem na perspectiva do fim, que já foi inaugurado pela ressurreição de Cristo. Vivemos no presente carregando a marca da eternidade.40

Na realidade presente, o Espírito pode ser entendido como “prova”, “garantia” ou “pagamento inicial” de nossa futura ressurreição e glorificação. Já fomos justificados, já desfrutamos dos primeiros frutos da ressurreição, mas ainda não recebemos corpos imperecíveis, não fomos glorificados, ainda estamos sujeitos aos efeitos da morte e da corrupção.41
O Espírito Santo, conforme Paulo, é o “sinal”, no sentido de “pagamento inicial” ou “garantia” da glorificação futura (2Co 1.21,22; 5.5; Ef 1.14). Com isso, por meio desse Espírito, já podemos desfrutar, aqui e ali, alguma coisa desse poder futuro que nos transformará e glorificará definitivamente. O Espírito habita em nós, enquanto povo de Deus, como presença divina capacitadora, cumprindo promessas do Antigo Testamento sobre a habitação de Deus entre o seu povo e a sua transformação. Ele nos capacita não apenas a suportar o presente no aguardo da consumação final, mas nos capacita a suportar esse futuro com energia. Sua presença poderosa nos dá a certeza dessa consumação final.42 Fee enfatiza o fato de que, em Paulo, a ênfase não é tanto no futuro ansiosamente aguardado, mas na realidade presente do Espírito como confirmação do futuro que está em andamento. Assim, em certo sentido, pelo Espírito Santo podemos “viver a vida futuro na existência do presente enquanto juntos aguardamos a consumação.”43

Já foi falado anteriormente que Paulo rejeita o triunfalismo da igreja de Corinto, que imaginava que já estava vivendo plenamente a vida da ressurreição. A interpretação dada por Gordon Fee sobre a realidade da vida do Espírito no presente reconhece esse triunfalismo e não compactua com ele. Nas suas palavras:

O Espírito, que os coríntios chegaram a compreender de modo triunfalista (isto é, como se ele os conduzisse isentos das provações e dificuldades da vida terrena), é antes a garantia, o pagamento inicial feito por Deus, de que esses corpos também se destinam para o futuro “Espiritual! (=glorificado).

Aos coríntios, portanto, Paulo fala da vergonha e loucura da cruz, e também diz que esteve entre eles “em fraqueza, temor e grande tremor”, ao mesmo tempo em que sua pregação consistiu não em retórica (manipulação pelo discurso), mas em “demonstração do poder do Espírito”, o que claramente indica algum tipo visível de operação desse Espírito que não pode ser resumido à pregação, ou seja, algo sobrenatural aconteceu e confirmou sua pregação. Portanto, ao que tudo indica a igreja primitiva tinha a cruz e também os carismas, que por si sós não significam teologia da glória. A distorção de seu uso, a exigência de que sempre ocorra algo “sobrenatural”, isso sim me parece teologia da glória.

Entendo, da mesma maneira, que a vida do Espírito é desde já uma pequena antecipação de nossa glorificação futura. Isso não significa que podemos viver de forma triunfalista, fugindo ou “repreendendo” a cruz em nossas vidas. Nossa realidade aqui passa pela nossa morte, a qual é simbolizada pelo batismo. Aguardamos a ressurreição, mas já vivemos em novidade de vida aqui, o que aponta para o fato de que nos identificamos desde já não somente com a morte de cristo, mas também com sua ressurreição (Rm 6.4,5). Assim, a dimensão da vida futura não é totalmente futura, mas já pode ser vivida, até certo ponto, aqui, pelo Espírito que nos foi dado.

Como já foi exposto acima, que nossa realidade presente é escatológica. O futuro se faz presente por meio do Espírito poderosamente. Os sinais, milagres, dons extraordinários e outras manifestações do Espírito são um sinal da realidade futura, pequenos vislumbres de nossa glorificação final, da vitória sobre a morte, o mal e todo sofrimento. Essa realidade, porém, é vivida no presente de forma radical em meio a todo tipo de fraquezas. O poder de Deus se manifesta em meio a nossa fraqueza, que nunca será eliminada antes de nossa ressurreição. Como leciona Gordon Fee, “a presente existência escatológica é vivida no meio radical entre todos os tipos de fraquezas, conhecendo o poder do Espírito, que vem em nosso auxílio pela oração.”44

Na cultura americana, que influenciou bastante nossa cultura, há uma tendência bastante grande de vivenciar o futuro como um aspecto do “já”.45 Em alguns casos, isso se traduz em uma “síndrome de otimismo”, onde não há espaço para a dor e o sofrimento, que é então sublimado ou escondido. Alguns teólogos chamam essa tendência de “ressurreicionismo.”46  Isso se reflete na cultura e também na piedade e adoração contemporânea. Fingimos que uma cruz de espinhos é motivo para celebrar ao invés de lamentar. Culto fúnebre passa a ser “celebração” de despedida. O mal não é encarado como mal. A cruz não é assumida.47

A teologia faz bem em evitar essas tendências, pois elas possuem quase todos os elementos criticados nos tópicos anteriores deste capítulo. A pregação paulina não apresenta a cruz como apenas um detalhe no caminho da ressurreição e glorificação de Jesus. Pelo contrário, a ressurreição dá sentido à cruz, mas esta última segue sendo o centro de gravidade da vida cristã.48

Contudo, a rejeição ao triunfalismo não pode implicar o endosso de uma postura derrotista e conformista. Isso seria rejeitar o ensino de Paulo sobre a presença capacitadora atual do Espírito Santo na vida do crente.
Parece que há uma linha muito tênue entre triunfalismo e poder do Espírito e viver à luz da cruz e derrotismo. Todo cristão deveria se perguntar em que ponto está entre estes dois extremos. O cristão deve procurar viver paradoxalmente as duas realidades: aceitar suas fraquezas, confiando na Cruz, e ao mesmo tempo viver cheio do poder do Espírito Santo que ressuscitou Jesus dentre os mortos. Isso porque há um paradoxo no pensamento paulino que trata do assunto, e por nossa dificuldade em lidar com esse paradoxo, costumamos ressaltar mais um dos extremos do que o outro. Nas palavras de Gordon Fee:

Tudo isso reflete a postura teológica básica da existência cristã como uma realidade marcada pelos aspectos do “já” e do “ainda não”, uma tensão que Paulo foi capaz de conjugar, ao contrário de muitos cristãos de tempos depois. Para ele, não se tratava simplesmente de uma tensão na qual o presente era todo fraqueza, e o
 futuro (próximo), todo glória. O futuro tinha realmente invadido o presente, como se comprova pelo dom do Espírito; e considerando que o Espírito significada a presença do poder de Deus, tal dimensão do futuro já havia chegado em certa medida. Portanto, o sofrimento do presente é uma marca do discipulado, cujo modelo é nosso Senhor crucificado. Mas o mesmo poder que ressuscitou o Crucificado está atuando também em nosso corpo mortal.49

O Espírito significa a presença de grande poder, poder para transbordar em esperança (Rm 15.13), poder as vezes atestado por sinais e maravilhas e, outras vezes, pela alegria no meio de grande aflição. Contudo, justamente porque o Espírito não trouxe o fim definitivo, mas somente o começo do fim, o poder não significa perfeição final na presente era; antes, ele conduz à maturidade em Cristo.50 (grifos nossos)

Portanto, a ressurreição representa a esfera do “ainda não” (aquilo que se aguarda para o final dos tempos), a qual se demonstra por meio de pequenos vislumbres desta glorificação futura através do Espírito Santo. No entanto, a sombra da cruz permanece sobre a existência cristã no aqui e agora. Antes de compartilhar a vida da ressurreição, precisamos morrer com Cristo, o que é simbolizado (mas não esgotado!) pelo batismo. Participamos agora da morte de Cristo e, até certo ponto, de sua ressurreição, para depois participarmos definitivamente da sua glorificação no futuro. E por isso, o sofrimento não é nenhuma aberração na vida cristã: “Se com ele sofremos, com ele também seremos glorificados” (Rm 8:17).
A teologia pentecostal talvez nos ajude a lembrar que a cruz não é sinônimo de derrotismo, conformismo ou cinismo diante do mal e do sofrimento. O Espírito de Deus operou e ainda opera sobrenaturalmente entre seu povo. A teologia da cruz talvez ajude o pentecostal a entender que o poder de Deus opera, se aperfeiçoa e se manifesta na fraqueza humana, e que, portanto, ele se manifesta principalmente pelo contrário do que é, ou seja na aparente derrota e humilhação ocorre a verdadeira vitória sobre o mal. E assim, tanto a teologia da cruz como a teologia pentecostal andam juntas para a edificação do corpo de Cristo.

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1LOEWENICH, 1987, p. 14.
2McGRATH, Cruz, teologia da. In:  Dicionário de Paulo e suas cartas, 2008, p. 355.
319. Não se pode designar condignamente de teólogo quem enxerga as coisas invisíveis de Deus compreendendo-as por intermédio daquelas que estão feitas; 20. mas sim quem compreende as coisas visíveis e posteriores de Deus enxergando-as pelos sofrimentos e pela cruz. Lutero, 2004, p.
4McGRATH, 2014, p. 202.
5LOEWENICH, op. cit., p. 19.
6LUTERO, op. cit., p. 49
7LOEWENICH, op. cit., p. 20.
8VEITH JÚNIOR, 2015, p. 59.
9ARAÚJO, 2007, p. 557.
10Esta é a classificação de Paul Freston, segundo o qual o pentecostalismo poderia ser dividido em três “ondas”: a primeira, representada pela Assembleia de Deus e Congregação Cristã do Brasil, que teve início na década de 1910; a segunda, nos anos 50 e 60, com o surgimento de novas denominações, como Quadrangular, Deus é Amor e O Brasil Para Cristo; e a terceira, no final dos anos 70 e início dos anos 80, com a Igreja Universal e Igreja da Graça, além de várias outras neopentecostais. FRESTON, 1996, p. 108.
11MARIANO, 1999, p. 24, 25. O autor distingue o neopentecostalismo do pentecostalismo clássico especialmente pela ênfase do primeiro na teologia da prosperidade e nas noções de guerra espiritual, com o progressivo abandono da ênfase pentecostal na glossolalia e na rígida separação do mundo (“santificação”). De uma forma geral, este artigo aceita esta distinção e a pressupõe quando fala de neopentecostais ou pentecostais.
12A declaração de Fé da Assembleia de Deus pode ser encontrada em todas as edições do jornal Mensageiro da Paz. Atualmente a igreja está trabalhando em uma declaração de fé mais elaborada e precisa, na qual, segundo informações preliminares, será adotada uma perspectiva soteriológica explicitamente arminiana.
13ARAÚJO, op. cit., p. 288.
14Faço aqui uma observação sobre as descrições feitas nesse artigo sobre a teologia e espiritualidade pentecostais. Alguns poderiam sentir-se ofendidos e dizerem: “não podemos generalizar. Nem todos os pentecostais são assim. Na minha igreja não é assim, etc., ”. De fato, generalizações são problemáticas. Em resposta a essas possíveis objeções, contudo, afirmo o seguinte: primeiramente, decidi falar não somente sobre a teologia pentecostal, mas também sobre a espiritualidade pentecostal, justamente porque muitas vezes a teoria difere da prática. No plano teórico, sem dúvida, a teologia pentecostal não precisa ser triunfalista. Contudo, na prática cotidiana, o que se vislumbra é que em meio às igrejas pentecostais há espaço para todo tipo de experiências que confrontam a lógica da cruz. Essas práticas não estão em todos lugares, é verdade. Mas são cada vez mais comuns e populares em todos os meios pentecostais, especialmente em virtude da influência do movimento neopentecostal. Em segundo lugar, ainda que não seja uma consequência necessária da teologia pentecostal, as práticas que hoje vemos e que são descritas neste trabalho são uma potencialidade desta teologia. A ênfase nas experiências espirituais e na liberdade do Espírito pode (mas, penso eu, não deve) degenerar em ênfases em experiências humanas meramente emocionais e em libertinagem espiritual onde todo o tipo de práticas bizarras é justificada como sendo obra livre do Espírito, que não pode ser controlado. Quero ressaltar, porém, que entendo que essas práticas não precisam fazer parte da espiritualidade pentecostal, e por isso escrevi esse trabalho com a intenção não de destruir ou simplesmente criticar os pentecostais, mas para sugerir uma avaliação do que é feito em nome do Espírito de Deus.
15GEE, 1987, p. 36-39.
16Ibid., p. 39.
17Ibid., p. 56.
18HORTON, 2013, p. 63.
19Ibid., p. 63.
20PEREIRA, 2015, p. 39
21HORTON, op. cit., p. 44.
22PEREIRA, op. cit., p. 94-96.
23Ibid., p. 98.
24TILLICH, 1999, p. 220.
25GRENZ e OLSON, 2013, p. 49-52.
26Inegável também que em muitos contextos muito do que se atribui ao Espírito Santo é na verdade bastante humano.
27GEE, op. cit., p. 25: “Mas o momento do batismo com o Espírito Santo de alguém pode ser muito bem o seu momento espiritual máximo e até mesmo físico, consciente para a vida inteira.”
28Os pietistas enfatizavam a experiência religiosa, e, portanto, a teologia de Schleiermacher não foge muito das suas origens petistas, na medida em que reduz a religião ao “sentimento” e à experiência religiosa. GRENZ e OLSON, op. cit., p. 45.
29FERREIRA, 2015, p. 55.
30Ibid., p. 55.
31HORTON, op. cit., p. 87.
32OLIVEIRA, 2003, p. 64-66.
33ARAÚJO, op. cit., p. 637-654, vocábulo “perseguição”.
34DREHER, 1999, p. 230.
35IBGE, 2012. http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/caracteristicas_religiao_deficiencia/caracteristicas_religiao_deficiencia_tab_xls.shtm. Acessado em 19/07/2016.
36 http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/06/29/censo-2010-aponta-migracao-de-fieis-da-universal-do-reino-de-deus-para-outras-igrejas.htm. Acesso em 19/07/2016
37MARIANO, op. cit., p. 79.
38 http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/caracteristicas_religiao_deficiencia/caracteristicas_religiao_deficiencia_tab_xls.shtm.
39FEE, 2015, p. 75.
40Ibid., p.78.
41Ibid., p. 80.
42Ibid., p. 83.
43Ibid., p. 89.
44Ibid., p. 175.
45Ibid., p. 178.
46WHESTELLE, 2008, p. 168.
47HORTON, op. cit., p. 55, 56.
48McGRATH. In: 2008, p 358.
49FEE, op. cit., p. 181.
50Ibid., p. 182.

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