O poder da confissão – Parte 1

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O sentido do arrependimento est  na conscientização da gravidade de nosso pecado diante de Deus

Tem misericórdia de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade; apaga as minhas transgressões, segundo a multidão das tuas misericórdias. Lava-me completamente da minha iniqüidade, e purifica-me do meu pecado. Porque eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim. Contra ti, contra ti somente pequei, e fiz o que é mal à tua vista, para que sejas justificado quando falares, e puro quando julgares. Eis que em iniqüidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe. 
Salmos 51.1-5

O salmo 51 sempre teve um impacto muito forte na minha vida em momentos diferentes. Quem sabe isso se deva à prática que temos na minha igreja de origem de confissão pública de pecados, que provavelmente se originou nos movimentos pietistas europeus. Em todos os casos, não temos no português uma palavra que dê conta do sentido de Buße no alemão, que significa mais do que somente reconhecer um pecado, e se aproxima provavelmente do que sentimos já nos primeiros versos desse salmo.

É claro que, para entendê-lo, é preciso ler o contexto da história, relatado em II Samuel 12 e no salmo 32, provavelmente escrito depois do 51. Em todos os casos, os comentaristas concordam que esse é o maior dos sete salmos de penitência ou lamentação da Bíblia e dos mais profundos, que retratam um dos momentos mais sóbrios da vida de Davi. De acordo com Kidner, esse salmo apresenta ricos ensinamentos sobre Deus, o pecado e a salvação. Ele foi composto, em forma de música, depois do episódio com Bate-Seba. Mas isso tudo só aconteceu depois que Natan lhe contou uma história triste, que o fez trair-se e conscientizar-se do mal que havia feito. A história narrada acima mostra o poder da Palavra de Deus para mudar a História.

O pecado cometido por Davi era mais sério do que ele estava disposto a admitir. Depois de casado e com várias concubinas, Davi encantou-se com a moça, esposa de um de seus soldados de maior confiança. Ao avistá-la nua, possuiu-a e decidiu colocar o marido dela na linha de frente da batalha, onde a morte era certa. Além do adultério, Davi cometeu um assassinato hediondo, friamente premeditado. Ele traiu a sua nação, e pior: o seu Deus. Não era para menos que a sua consciência pesava, mas houve necessidade de uma parábola e o “cartão amarelo” de Natan para que ela se manifestasse. Agostinho comenta que, com isso, Natan “tirou o pecado de suas costas e colocou-o diante de seus olhos para que visse que proferia sentença tão severa contra si mesmo” (Agostinho, 1998, 905).

Conforme relato de II Samuel 12.1-13, Natan, ao saber do pecado cometido por Davi, conta uma parábola de um homem rico que não apenas negou ajuda a um esfomeado, como ainda lhe roubou o pouco que tinha. A maldição que Davi inventou para ele acabou se abatendo sobre ele, pois seu filho com Bate-Seba adoeceu e morreu, e suas mulheres passaram a ser infiéis a ele, fazendo-o virar motivo de chacota.

A canção composta por Davi, então, representa um grande desabafo, que segue a estrutura do que Girard (1992, 24) chama “dramática da libertação”:

Etapa               Breve explicação                     Símbolo

Queixa             Exposição do problema                       Preto

Súplica             Grito de apelo, prece               Roxo

Nesta primeira de três reflexões sobre esse salmo, nos concentraremos apenas nas duas primeiras etapas do canto, que Girard também considera o “mais popular dos salmos penitenciais” (idem, 40).

Nessa primeira parte do Salmo, Davi reconhece publicamente e confessa o seu pecado com todas as suas conseqüências, e pede desesperadamente perdão a Deus. Ele se queixa e apela para que Deus apague o seu pecado, como uma mancha na lousa, e o lave como um trapo de roupa suja, pois a sua visão é horrível demais para suportarmos. No prefácio de Cartas de um diabo a seu aprendiz , C.S. Lewis comenta que escrever aquele livro foi a tarefa mais fácil e mais difícil que ele empreendeu: mais fácil, pois bastou olhar para dentro do próprio coração para entender a lógica do diabo; mais difícil, de ter que encarar o horror do resultado.

Calvino também ressalta que a grande força do seu efeito está na honestidade rara com que Davi expressa a gravidade do seu caso, que deixou marcas profundas não apenas nas pessoas ofendidas, mas, em última instância, significou um pecado contra Deus mesmo e a necessidade contrastante de uma remissão por graça superabundante.

Duas passagens nos vêm à mente nesse contexto: Marcos 2.5, quando Jesus diz ao aleijado, para escândalo dos fariseus: “Filho, os teus pecados estão perdoados.” Pois, se desde Davi, pelo menos, os judeus sabem que todo pecado é cometido contra Deus e que só ele pode perdoá-los, então Jesus se coloca, em última instância, na condição de Deus, tornando-se herege e escandaloso aos olhos dos fariseus.

A outra passagem é o salmo 32.3, em que o salmista mostra a mesma convicção do poder da consciência e da confissão: “Enquanto calei os meus pecados, envelheceram os meus ossos pelos meus constantes gemidos todo o dia.” Neste sentido, o retorno de Davi para o seu Senhor em arrependimento lembra o do filho pródigo e a confissão do ladrão arrependido no dia da crucificação de Jesus, sem falar da mulher adúltera que Jesus absolve de maneira tão sábia.

Calvino destaca ainda a razão para o profundo desejo de Davi de ser lavado e regenerado: ele tinha consciência do pecado que lhe tirava a paz e torturava a mente. Isso mostra a profunda sondagem que ele deveria ter feito no seu coração e a descoberta de que só Deus mesmo seria capaz de redimi-lo, por mais que os seus súditos tentassem consolá-lo ou enfraquecer a gravidade do caso, gerando uma paz falsa.

Calvino lembra ainda Romanos 3.3-4, em que Paulo destaca a justiça, a fidelidade e a verdade de Deus, que jamais pode ser negada pelo homem, por mais que seja santo ou pior que seja o pecado cometido:

E daí? Se alguns não creram, a incredulidade deles virá desfazer a fidelidade de Deus? De maneira nenhuma! Seja Deus verdadeiro, e mentiroso, todo homem, segundo está escrito: Para seres justificado nas tuas palavras e venhas a vencer quando fores julgado.

Entretanto, embora Davi observasse, no versículo 5, que foi concebido em pecado, não parece querer defender alguma tese de que o pecado seja o sexo mesmo. Agostinho explicita o pressuposto desse versículo: Davi foi concebido em pecado por ser filho de Adão, e não Jessé. “Pecado” aqui, portanto, está no sentido de natureza pecaminosa. Trata-se do sentido ontológico. Com esse recurso de linguagem figurada, Davi dá vazão a todo o horror que olhar para o seu próprio pecado deve lhe ter causado. A idéia central, então, aparentemente é esta: todo pecado é cometido, em última instância, contra Deus, e, portanto, só ele tem o poder de perdoar e curar o pecador.

No comentário de Stott, quanto mais grave o pecado, mais sentimos a necessidade da misericórdia de Deus. À semelhança do salmo 32, Davi usa três palavras diferentes para se referir ao pecado: transgressão, no sentido de limites ultrapassados; pecado, ou erro; e iniqüidade, referindo-se ao estado depravado da natureza.

A essência do pecado é a rebeldia contra Deus (…) É verdade que Davi pecou contra Bate-Seba e Urias, contra sua família e nação, mas antes, e ainda mais que tudo, ele ofendeu o amor e a Lei de Deus. Compare Romanos 3.4, onde Paulo cita essas palavras para estabelecer a justiça inabalável de Deus ao lidar com seres humanos. Se a essência do pecado é rebelião, sua origem está na nossa natureza caída (Stott, 1997, 63).

Em seu comentário aos salmos, Agostinho comenta: “Muitos querem cair com Davi, mas não querem se levantar com ele (…) A queda dos grandes não deve dar prazer aos menores, mas sirva a sua queda para incutir temor aos que estão abaixo” (Agostinho, 1998, 899-900).

A partir do exemplo de Davi, pode-se concluir que a consciência ou não dos nossos atos pode vir a ser mais fundamental do que o próprio ato, principalmente quando ele traz o arrependimento sincero, e não a acusação perpétua, que é obra do diabo (Salmos 12.10). Como dizia, se não me engano, Martinho Lutero: “Mente vazia, oficina do diabo”, ou seja, nossa mente ou consciência pode ser usada por Deus ou pelo diabo. A linha de separação é tênue. Os poderes de destruição e libertação da mente estão sendo descobertos somente em dias recentes, mas sempre marcaram a humanidade. A pergunta é: o que fazemos de incrível a pavoroso potencial – entregar-nos à culpa ou partir para a confissão sincera?

Como comenta Élben M. Lenz César:

A pessoa esperta é aquela que rompe o ciclo da cegueira e do orgulho e confessa corajosamente a Deus: “Eu mesmo reconheço as minhas transgressões e o meu pecado sempre me persegue” (Salmos 51.3). É nesse precioso momento que a pessoa esperta rompe com o passado e inaugura uma nova época. Essa é a passagem de um tempo para outro, de uma situação para outra, de um lugar para outro. A pessoa esperta não enrola, não mente, não rodeia, não foge, não comete suicídio moral. Ela arranca a venda que está em seus olhos, usa colírio para enxergar melhor (Apocalipse 3.18), joga fora o telescópio com o qual via à distância o pecado alheio (Mateis 7.3) e dispensa a multidão de advogados de defesa que havia contratado. A pessoa esperta olha para dentro de si mesma e se descobre pecadora desde o dia de seu nascimento, desde o dia de sua concepção. Então admite tranqüilamente que Deus tem razão em condená-la (Lenz César, 120).

É claro que as marcas sempre ficarão, tanto que Davi teve que pagar um alto preço. E como bem coloca Lenz César, ele não assume apenas a culpa, mas também o castigo. O fato, entretanto, é que o arrependimento não apenas parece ter aliviado o peso da sua consciência, mas efetivamente redundado em restauração. Como se lê no livro de Lamentações, a confissão traz esperança, restauração e sentido na vida: “Quero trazer à memória o que me pode dar esperança. As misericórdias do SENHOR são a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim” (Lamentações 3>21-22).

Você já se sentiu miserável por ter cometido algum pecado? Se não, de duas uma: ou você não tem pecado e, portanto, está prontinho para ser canonizado, ou não tem consciência. Davi nos mostra como a consciência, por mais que seja importante para vivermos uma vida realmente humana, para termos uma identidade, para sermos cidadãos, esposas e maridos responsáveis, trabalhadores honestos etc., é algo deveras terrível quando nos acusa. Então, para evitar que ela se volte contra nós, não basta deixar de fazer coisas que nos acusem, pois também existe algo chamado “falsa culpa”. É preciso fazer o que Davi fez: compor um cântico público de arrependimento ou contrição, não porque a graça divina não bastasse, mas para a nossa própria paz de espírito diante de nós mesmos e da sociedade. Somente assim nos daremos conta do poder da confissão, entendida como Buße .

AGOSTINHO, Santo. Comentários aos Salmos , São Paulo: Paulus, 1998 (Coleção Patrística).

CALVINO, João. Comentário aos Salmos, in www.ccel.org/c/calvin , 2006.

GIRARD, Marc. Como ler o livro dos salmos , 2a. ed. São Paulo: Paulus, 1992.

KIDNER, Derek. Salmos 1-72, 3a reimpressão, São Paulo: Vida Nova, 1992.

LENZ CÉSAR, Elben M.. Refeições diárias com o sabor dos salmos . Viçosa: Ultimato, 2003.

LEWIS. C.S. Cartas de um diabo a seu aprendiz . São Martins Fontes, 2005.

STOTT, John, Salmos favoritos , São Paulo: Abba Press, 1997.

 

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