Introdução à estética cristã – parte I

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Uma análise da estética numa perspectiva histórico redentiva de criação-queda-redenção

Introdução

A beleza está presente na vida de toda a humanidade. Todas as pessoas dedicam esforços em busca de mais beleza em suas vidas. Quem não gosta de coisas bonitas? De se vestir com uma bela roupa? De admirar uma linda paisagem? De observar a harmonia presente em algo que estava desordenado. Uma coisa nós sabemos: todo o mundo gosta de beleza! Mas o que é beleza? Como julgar se algo é belo ou não? Seria meu gosto melhor que o dos outros? Por quê? Haveria uma forma cristã de pensar sobre a beleza? Indagações como essas já passaram pela mente da maioria das pessoas. E ao examinar a beleza e o papel que ela exerce na cultura e na vida da humanidade, podemos aprender muito. É possível aprender mais sobre Deus, a cultura e o homem. 

 O ramo do conhecimento que se dedica ao estudo do belo é a estética, uma área da filosofia que tem por objetivo estudar a natureza da beleza. Abraham Kuyper define estética como sendo “a ciência da beleza e do gosto; o ramo do conhecimento que pertence às belas artes e a arte crítica”.1  A dedicação a essa área do conhecimento é antiga, datada desde Platão e Aristóteles. Talvez Platão seja o pai da estética.2  Alguns teólogos cristãos ao longo da história também escreveram sobre o assunto. Entre os pais da igreja temos Irineu de Lião, Clemente de Alexandria, Basílio de Cesarea e Agostinho de Hipona. Na idade média, Tomás de Aquino e Bonaventura. Após a Reforma, Jonathan Edwards, Hans Urs von Balthasar e Herman Bavinck.3  Infelizmente, hoje em dia não existem muitos teólogos e pastores cristãos que se dediquem a pesquisar e escrever nessa área. Até no meio acadêmico secular, a estética foi deixada de lado por um bom tempo, estava em estado de hibernação; nos últimos anos, no entanto, temos visto um ressurgimento de interesse no tema.4  No Brasil, ainda não há obras publicadas no assunto sob uma perspectiva cristã.5  Entre os poucos cristãos que estão pesquisando e escrevendo na área, temos William Edgar e Robert Covolo, ambos norte-americanos.6

O objetivo deste artigo é analisar a estética sob uma perspectiva cristã Reformada e mostrar a importância do assunto e suas implicações para a igreja brasileira.7  Abordarei o tema numa estrutura “criação-queda-redenção”,8 que será apresentada em duas partes, mostrando que as escrituras sagradas fornecem princípios fundamentais para um entendimento distintamente cristão da estética. Veremos que Deus nos fez com a capacidade de contemplar a beleza, a qual foi criada por Deus e aponta para Ele, mas o pecado afetou nossa capacidade de juízo do belo, e a redenção concedida por Jesus Cristo redireciona nosso coração e nos fornece as lentes corretas para julgar e nos deleitar na maravilhosa criação de Deus.9

Parte 1 – A bela criação de Deus

1. A criação e a contemplação do belo

1.1. Distinção criador-criatura: beleza e glória

O primeiro princípio norteador que a Bíblia nos concede para um entendimento correto da estética é a distinção existente entre Deus e o homem; entre o Criador e a sua criação. A diferença é tanto metafísica (o que Deus é), quanto epistemológica (o que Deus conhece e como ele conhece). É tanto quantitativa, quanto qualitativa. O que Deus criou reflete os seus atributos, mas é ao mesmo tempo diferente Dele.10

Essa distinção entre Deus e sua criação é importante no estudo da estética, pois quando observamos a beleza em nosso mundo, estamos contemplando algo criado, um atributo da criação de Deus que reflete quem Deus é, mas é diferente Dele. Por isso a Bíblia dificilmente usa o termo beleza ao se referir a Deus. A palavra normalmente utilizada é Glória. Isso não significa que Deus não é belo, pelo contrário, Ele é mais do que belo. A beleza da criação é apenas um reflexo de toda a beleza de Deus. A glória de Deus inclui sua beleza e toda a maravilha do seu Ser. Usar essa linguagem provê uma proteção para a alteridade dos atributos de Deus.11 É importante reconhecermos a natureza limitada das manifestações terrenas da beleza. Deus criou um mundo belíssimo; cores, flores e florestas; o canto dos pássaros, um lindo pôr do sol, a imensidão azul do céu e do mar. Toda essa beleza é apenas um reflexo finito de sua Glória infinita.
 
1.2. Tríade verdade-bondade-beleza

Existe uma ideia encantadora sobre a beleza que remete a Platão e Plotino e que está de acordo com o pensamento teológico cristão. Segundo ela, a beleza é um valor supremo que buscamos por si só, sem ser necessário fornecemos qualquer motivo ulterior. Desse modo, a beleza deve ser comparada a verdade e a bondade, integrando um trio de valores supremos que justifica nossas inclinações existenciais.12
 
Esse trio de valores e a forma como eles se relacionam é de fundamental importância para obtermos um juízo estético correto. Herman Bavinck tem conclusões similares as de Platão ao entender que existe certo aspecto hierárquico no relacionamento entre esses três valores supremos. Para eles, a combinação da verdade e da bondade produz a beleza.13  Ou seja, a beleza estaria um degrau “abaixo” dos outros dois valores. Esse pensamento pode nos auxiliar na busca por um entendimento estético certo. Ele reconhece o aspecto moral e de conteúdo da verdadeira beleza. Philip Ryken demonstra em seu livro, Art for God’s sake, como essa tríade de valores aparece em Êxodo 31 como um guia artístico para o povo de Deus. Ele diz que o padrão estético de Deus inclui bondade, verdade e beleza. E estes padrões não são relativos, mas absolutos. Uma visão cristã da arte se coloca em oposição a suposição pós-moderna de que não existem absolutos.14  Algo realmente belo deve ser verdadeiro e deve ser bom. A partir dessa tríade, obtemos um padrão objetivo para julgar a beleza.

Mas, uma pergunta que frequentemente surge é: Não poderia algo ser esteticamente (técnica artística, habilidade, uso das cores, iluminação) belo e moralmente ruim? Ou de conteúdo falso e herético? A resposta é sim. Mas essa beleza estética não seria plena. Para algo ser Belo com “B” maiúsculo, deve conter a soma dos três valores da tríade. A Beleza só é plenamente alcançada quando ela é esteticamente bonita (bem produzida, técnica correta), moralmente boa e contém um conteúdo correto.15 Logo, essa tríade nos fornece base para poder julgar uma obra. É preciso entender a diferença da beleza com “b” e da Beleza com “B”. Nós podemos denominar algo que contenha os três valores da tríade “Belo” com “B” maiúsculo ou simplesmente podemos usar o termo glória. Quando algo for verdadeiro, bom e belo, ele é glorioso, reflete a glória do Deus criador.

Para ilustrar a manifestação da tríade, podemos usar como exemplo, o livro do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, Terra.16 A obra é composta por fotografias que retratam a condição de vida de trabalhadores rurais, mendigos, crianças de ruas e outros grupos excluídos socialmente. Ao analisar a obra pela tríade de valores, podemos notar que o que Salgado retrata é verdade, é a condição caída do homem causada pelo pecado da humanidade. A habilidade técnica de Sebastião como fotógrafo é maravilhosa; o uso da luz, dos efeitos, do tempo. Ele é um grande fotógrafo e suas fotografias são esteticamente belas. Mas o que ele retrata ali é ruim. Não podemos dizer que aquela realidade é boa e ideal. Deus não criou o homem para viver daquela maneira. Sem o pecado, aquilo não existiria. Por isso, ao analisar a fotografia de Sebastião usando a tríade, não podemos dizer que ela é (completamente) “Bela” ou gloriosa. Falta algo ali, falta a bondade.

Outro exemplo de como esses três valores estão relacionados é quando os jovens analisam a beleza um do outro. Ao serem perguntados se acham aquele moço ou aquela moça bonita, alguns respondem: “Não acho ela tão bonita fisicamente, mas é uma menina muito ‘gente boa que se torna mais bonita. Ou respondem algo como:  “O acho feio, mas é muito sincero e transparente, isso o deixa mais belo. ” O contrário também é verdade: podemos achar uma pessoa fisicamente bela, mas quando seu caráter é ruim, ela tende a se tornar mais feia.  As virtudes se relacionam com a formação da beleza das pessoas. Esses exemplos demonstram como usar a tríade em nossos juízos estéticos e também mostra como o pecado rompeu essa tríade, algo que trataremos melhor ao refletir sobre os efeitos da queda na estética.

1.3. O homem e o belo

 A bíblia nos ensina que Deus criou o homem e a mulher a sua imagem e semelhança; e os colocou no jardim do Éden para que cuidassem dele, desfrutassem do alimento de suas diversas árvores, dessem nome aos animais, se multiplicassem aumentando sua família e adorassem somente a Deus. Nós sabemos que tudo o que Deus criou era bom, mas o que muitas vezes é negligenciado, ou é tratado de forma rápida e superficial é que o jardim que Deus criou para o homem habitar era lindo. Em gênesis 2.8 Moisés escreve que Deus plantou um Jardim para o homem habitar e no v.9 ele diz: “Do solo fez o Senhor Deus brotar toda sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento […]” É maravilhoso ler esse texto e perceber que Deus se “preocupou” em criar um lugar de habitação para o homem que cumprisse não apenas o propósito de oferecer um espaço para que o homem vivesse e que produzisse alimento para sua nutrição. Mas, mais do que isso, o texto nos diz que Deus criou um jardim que era agradável aos olhos do homem. Era bom e deleitoso observar o jardim de Deus com suas diversas árvores, suas flores cheirosas e seus frutos saborosos e coloridos; a multiplicidade de animais, os limpos rios correndo, o nascer brilhante do sol, e as maravilhosas estrelas reluzindo durante a noite. Deus criou um lindo jardim e deu a capacidade ao homem de contemplar e se deleitar na beleza de sua criação. A capacidade do ser humano de criar coisas belas e de contemplá-las é parte do ser imagem e semelhança de Deus. Como diz Herman Bavinck:

 A percepção do belo – não menos do que a religião, a moral, e a consciência cognitiva – é peculiar ao ser humano. A beleza e o senso da beleza respondem um ao outro, assim como o objeto e o seu sujeito conhecedor.17

Contemplação estética é parte do ser imagem e semelhança de Deus. Deixar de apreciar e buscar a beleza é deixar de ser humano em sua plenitude. A percepção estética está diretamente ligada as faculdades imaginativa e sensorial do homem. Nossas imaginações são órgãos estéticos.18 Nós somos homo aestheticus, e ignorar essa dimensão empobrecerá o ser humano.19

Essa faculdade do homem pode ser facilmente negligenciada ou distorcida e como consequência, atrofiada em prol da elevação de outras dimensões. Os racionalistas fizeram do homem um ser meramente intelectual, enfatizando a faculdade da razão e da mente. Como resposta, os românticos supervalorizaram as emoções do ser humano. Temos orbitado entre esses dois extremos: “penso, logo existo” ou “sinto, logo existo”. E a falta de entendimento do homem como um ser integral, que tem como âmago e centralidade o seu coração,20 sempre nos levará para um extremo idólatra. Esse reducionismo antropológico gera um clamor do nosso coração. Como explicou Abraham Kuyper:

É simplesmente de justiça reconhecer que, ameaçado de atrofia pelo materialismo e pelo racionalismo, o coração humano naturalmente procura em seu instinto artístico (criativo/imaginativo/estético) um antídoto contra esse processo murchante.21

O coração do homem anseia por beleza. Esse “sensus aestheticus” é parte de nosso ser; nós nos deleitamos quando contemplamos a bela criação de Deus e quando usamos nossos dons artísticos para criar. Esse processo artístico da humanidade sempre buscará pelo belo. Essa é a direção em que nossos corações estão inclinados.

O meio cristão também foi afetado por esse reducionismo antropológico. Vemos isso de maneira clara nos sermões que são pregados semanalmente nas diversas igrejas pelo mundo. Em um extremo, muitos pastores pregam sermões totalmente voltados para o intelecto das pessoas, carregados de conteúdo teológico, mas sem forma, harmonia e beleza. São sermões secos, que consideram apenas a razão do ser humano. No outro extremo, vemos sermões emotivos, carregados de manipulação psicológica, sem conteúdo teológico, vazios de significado bíblico, pragmáticos e existencialmente superficiais. Dificilmente encontramos um equilíbrio entre forma e conteúdo, sermões que considerem o homem integralmente, aplicando e estimulando todas as dimensões das pessoas. Um pastor deve pregar para o homem “todo” e para isso deve buscar um sermão que envolva o intelecto, as emoções e a imaginação de suas ovelhas. Deve haver harmonia e beleza nas pregações. Não há conteúdo ou doutrina no mundo que seja mais carregada de beleza, bondade e verdade do que o evangelho de Deus, a história de redenção divina escrita pelo Senhor todo poderoso e não existe exemplo de pregador mais persuasivo, que considere todas as dimensões do homem do que Jesus Cristo. O sermão deve ter um aspecto de confrontação do pecado em busca de santificação, mas também deve ter um aspecto de deleite em busca de regozijo na verdade proclamada. Devemos valorizar a beleza nos sermões para que alcancemos “todo” o homem, e certamente ao considerarmos esse aspecto, pregaremos de maneira mais persuasiva e edificante.22
 
Deus nos comunica a sua Palavra por meio de perspectivas diversas. Ele usa narrativas, histórias, cartas, parábolas, tratados teológicos e poesias; utiliza linguagem literal e alegórica; há diversidade na forma de comunicação divina ao homem e um dos aspectos dessa diversidade é que ela alcança todas as dimensões do ser humano.23 Deus escolheu se revelar a nós de maneira orgânica,24 se acomodando ao homem sem desconsiderar a existência integral e dinâmica de sua criação. Da mesma maneira, os pastores e pregadores devem buscar utilizar de todas as perspectivas possíveis para pregar o evangelho de Jesus Cristo, instigando a mente, as emoções, a vontade e a imaginação de suas ovelhas.
 
1.4. O campo estético na sociedade: valorizando a beleza pelo o que ela é

A criação de Deus tem como parte de sua estrutura um aspecto estético, e o homem tem como parte de seu ser a capacidade de contemplação estética. A beleza e o senso da beleza respondem um ao outro, assim como o objeto e o seu sujeito conhecedor.25 Esse equilíbrio entre sujeito e objeto só é possível porque ambos têm como ponto de referência e base de sustentação o Deus trino.  Uma cosmovisão bíblica que tenha como ponto de partida a revelação de Deus e a Trindade divina como o paradigma absoluto é necessária para um entendimento correto da origem, existência e propósito da beleza. Somente dentro dessa estrutura de pensamento será possível criar e contemplar a beleza de maneira correta: diante da face de Deus e para a glória d’Ele.

A cosmovisão das pessoas definirá a forma que elas enxergam a beleza no mundo, e uma cosmovisão fundamentada sobre um coração incrédulo e sobre pressupostos antibíblicos distorcerá todo o núcleo de significado e propósito da beleza. O que é beleza? Quem a criou?  Para que serve a beleza? Qual a função do homem diante do belo? Como a sociedade deve se portar diante da beleza? São todas perguntas que serão respondidas conforme a cosmovisão de cada pessoa. Ao reconhecer que o belo foi criado e revelado por Deus ao ser humano, os cristãos devem manifestar algumas reações: em primeiro lugar, teremos um coração grato a Deus por essa maravilhosa bênção que nosso Pai nos concedeu. Em segundo, devemos apreciar a beleza e investir tempo nos deleitando nas múltiplas manifestações estéticas da criação. Em terceiro, devemos buscar desenvolver uma cultura que valoriza a tríade verdade, bondade e beleza. Em quarto lugar, como portadores da imagem de Deus, somos receptivamente criativos,26 criadores por natureza e essa capacidade deve ser valorizada pela cultura.27  Finalmente, a beleza é importante para a vida do ser humano e para a sociedade, e sua manifestação artística na cultura tem valor intrínseco, pois ela foi criada por Deus e deve apontar para Ele. Não há razão pragmática para a beleza, ela não precisa possuir valor utilitário algum. Deus simplesmente se interessa pelo belo. Ele fez as pessoas para serem belas e a beleza tem seu lugar na vida e na cultura.28
 
Na segunda parte do artigo, ao tratar dos efeitos da queda no mundo, veremos como o pecado e as cosmovisões antibíblicas, que são predominantes em nossa cultura, distorcem esses princípios e consequentemente empobrecem a experiência da realidade, produzindo um mundo mecânico e artificial e reduzindo a integralidade do mundo à um aspecto especifico, que se torna o paradigma interpretativo e dominante da realidade.

1.5. Objetiva ou subjetiva? A unidade e a diversidade da beleza

Uma questão que normalmente surge nas conversas e debates sobre a estética é se existe um padrão absoluto de beleza ou se a beleza é meramente uma questão de gosto. A beleza é objetiva ou subjetiva? Esta é uma questão que muitos filósofos tentaram responder ao longo da história.29  Alguns creem que a beleza é subjetiva, meramente uma questão de gosto pessoal e artístico. Nessa visão, não existiria um padrão absoluto transcendente de juízo estético. Isso relativizaria por completo a estética e eliminaria o significado de qualquer juízo do belo.  É uma visão estética empírica “de baixo”. Esse movimento tende a desenvolver explanações puramente imanentes da verdade, bondade e beleza. Apesar dessa visão empírica da estética ter aspectos positivos, devemos rejeitar a redução da dinâmica estética apenas aos seus aspectos empíricos (o olho do observador, a habilidade do artista ou a forma da obra de arte).30 Essa visão desconsidera os aspectos morais e de significado da beleza, reduzindo-a a sua dimensão técnica/artística. Como nós vimos acima, a beleza faz parte da Criação de Deus, foi revelada por Ele ao ser humano e como consequência tem uma dimensão moral/pactual e de significado/metafísica.

Ao considerarem a beleza de maneira apenas empírica, as pessoas normalmente se situarão em um de dois extremos que devem ser evitados. Elas terão uma visão estética relativista ou uma visão estética aristocrática.31 Na visão relativista, não existe padrão para julgar a beleza, toda tentativa de juízo estético se torna opressiva e intolerante. Na visão aristocrática, somente aqueles que são conhecedores e treinados em crítica artística são capazes de criar e julgar a beleza.32  Como consequência, há uma rejeição da cultura popular em prol da alta cultura.33 Como então responder a essa questão? Se a beleza não é totalmente relativa e se um padrão aristocrático da alta cultura não é o que necessariamente define o que é belo ou não, como se posicionar?

Creio que a doutrina da “organicidade” desenvolvida pelo teólogo holandês Herman Bavinck pode nos auxiliar na formulação de uma resposta cristã para a questão. Bavinck entendia que organismo é a imagem que melhor expressa a essência da criação e da revelação de Deus.

Num texto de introdução ao pensamento de Bavinck, James Eglinton explica que a linguagem orgânica era a forma preferida de ele comunicar sua cosmovisão “trinitária”. Para Bavinck, a existência e o significado de todas as coisas criadas derivam do Deus Triuno, de forma que não apenas a teologia, mas toda a criação, história, revelação e ciência exibem uma coerência multifacetada, triuniforme, em outras palavras, orgânica.34
 
Bavinck aplica esse pressuposto teológico a todas as áreas do conhecimento.35 Para o objetivo deste artigo, exploraremos como ele se aplica na estética filosófica. Organicidade para Bavinck é a forma como as obras de Deus refletem o seu ser triuno. A trindade ad intra implica em organicidade ad extra.36 A unidade e a diversidade das obras de Deus refletem a unidade e a diversidade do seu Ser.37 Aplicando isso à estética, entendemos que a organicidade das coisas criadas é um reflexo da “beleza” de Deus. Na perfeita união da unidade e trindade de Deus encontramos tanto singularidade quanto diversidade, que se manifestam na beleza da criação divina.

Usemos como exemplo a beleza humana. Os padrões de beleza atribuídos pela cultura pressupõem unidade, mas um padrão de beleza só pode ser verdadeiramente bíblico se ele envolver tanto unidade quanto diversidade. Ou seja, nenhuma só pessoa vai ser capaz de mostrar e refletir sozinha a beleza como padrão ideal que o ser humano foi criado para exemplificar e mostrar como revelação da glória de Deus. Logo, o padrão ideal de beleza jamais será satisfeito em uma única pessoa branca de olhos azuis, pois essa pessoa não refletirá a beleza multifacetada que é manifestada por uma pessoa negra de cabelo pretos; então, uma pessoa sozinha jamais conseguirá ser um padrão estético para toda a humanidade. Será necessário a união da diversidade das pessoas, com suas características específicas, para refletir a glória da beleza divina no homem. A plenitude da beleza humana se manifesta na unidade da diversidade de todos os povos e nações por todo o mundo criado por Deus, e o motivo disto é a trindade.38
 
E este conceito de organicidade estética também se aplica às múltiplas áreas de manifestação do belo na criação de Deus. Isso traz um equilíbrio entre a objetividade e a subjetividade da beleza. Enquanto existem os padrões objetivos da verdade, bondade e técnica artística, também existirá espaço para diversidade de gostos pessoais na contemplação da beleza. Se o que uma pessoa admira artisticamente é verdadeiro, bom e tecnicamente bem executado, isso pode ser legitimamente belo para ela e pode não ser para outra pessoa, sem que uma necessariamente tenha um gosto melhor do que a outra. Existirá espaço para diversidade de gostos que não nos leve a um relativismo estético, e um padrão objetivo de juízo estético sem que isso gere uma aristocracia estética. Há espaço para discordância e apreciação de uma opinião distinta.39

Continua na segunda parte, que será publicada na  próxima edição da Revista Teologia Brasileira.

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___________________________________________
1KUYPER, Abraham. Calvinismo. 2 Ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2015, P. 161.
2BAVINCK, Herman, 25 Essays on Religion, Science, and Society. Baker Academic, 2008.
3COVOLO, Robert. Herman Bavinck’s Theological Aesthetics: A Synchronic and Diachronic Analysis. TBR 2, 2011, p. 155-156. SHERRY, Patrick, Spirit and Beauty. London: SCM, 2002.
4EDGAR, William. Beauty Avenged, Apologetics Enriched. Westminster Theological Journal  63, 2001, p, 107.
5Existem algumas obras publicadas sobre a arte sob uma perspectiva cristã. Essas obras inevitavelmente irão tocar no tema da estética, mas de forma superficial. Ainda não temos uma obra que se aprofunde na filosofia do belo guiada por pressupostos cristãos. Exemplos de visão cristã sobre a arte são: Francis Schaeffer, A arte e a bíblia (Ultimato, 2010). Hans Hookmaaker, A arte não precisa de justificativa (Ultimato, 2010), A arte moderna e a morte de uma cultura (Ultimato, 2015). Laurel Gasque, Rookmaaker: Arte e Mente Cristã (Ultimato, 2012). Leonardo Ramos, Marcel Camargo, Rodolfo Amorim,org, Fé cristã e cultura contemporânea: Cosmovisão cristã, igreja local e transformação integral (Ultimato, 2009). Abraham Kuyper, Calvinismo (São Paulo: Cultura Cristã, 2015).
6Covolo faz doutorado no seminário Fuller e na universidade Livre em Amsterdã. Sua pesquisa tem foco na relação da teologia com a moda.
7Minha intenção é introduzir o assunto sob uma perspectiva cristã e demonstrar a importância de reflexão sobre o assunto, principalmente para os pastores e líderes da igreja contemporânea. Reconheço que alguns temas necessitam de um tratamento mais profundo. Se Deus permitir, isso será feito em um artigo maior futuramente.
8Reconheço a facilidade com que o aspecto da redenção pode ser abusado nessa estrutura, como um “mero” retorno ao original. Considero a redenção com um meio para um fim, o início da restauração que ainda será consumada com a volta de Jesus Cristo. É importante termos isso em mente ao considerar os efeitos da redenção na criação.
9É crucial que os cristãos entendam o papel da beleza em suas vidas e sua atuação na cultura em que estão inseridos. Também é importante esse entendimento pelos pastores e líderes da igreja. Com isso em mente, farei aplicações antropológicas, homiléticas e apologéticas, buscando ser o mais prático possível e sensível a vida diária da igreja.
10BHANSEN, Greg. Always Ready. Digital Edition, 2011, P. 17-18.
11COVOLO, Robert. Herman Bavinck’s Theological Aesthetics: A Synchronic and Diachronic Analysis. TBR 2, 2011.
12SCRUTON, Roger. Beleza. São Paulo: É Realizações, 2013, p. 12.
13COVOLO, Robert. Herman Bavinck’s Theological Aesthetics: A Synchronic and Diachronic Analysis. TBR 2, 2011.
14RYKEN, Philip. Arts for God’s Sake. P&R Publishing, 2006.
15Isso significa que toda a Beleza produzida por incrédulos só é possível pela ação da graça comum de Deus. Um incrédulo pode ter a habilidade e o conhecimento artístico para produzir algo “esteticamente” belo, mas será necessário a revelação especial de Deus para um entendimento correto da verdade e da bondade. Isso não elimina a possibilidade de o descrente produzir uma obra que contenha verdade, bondade e beleza. Pela graça comum, Deus distribui as habilidades e dons e ilumina a mente de alguns para que “entendam” em parte a verdade e a bondade sem que os conceda o arrependimento para a vida em Cristo.
16SALGADO, Sebastião. Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
17BAVINCK, Herman, 25 Essays on Religion, Science, and Society. Baker Academic, 2008.
18SMITH, James. K. A. You are what you love. Kindle edition: Brazos Press, 2016.
19EDGAR, William. Beauty Avenged, Apologetics Enriched. Westminster Theological Journal 63, 2001.
20Uso o termo coração no sentido bíblico como sendo a centralidade do homem, de onde provem as fontes da vida (Pv 4.23). Para um aprofundamento, recomendo os livros: Wadislau Martins Gomes, Aconselhamento redentivo (São Paulo: Cultura Cristã, 2004). James K. A. Smith, You are what you love e os escritos de Herman Dooyweerd.
21KUYPER, Abraham. Calvinismo. 2 Ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2015, p. 150.
22Para um excelente exemplo de como pregar para o homem integralmente, recomendo os sermões do Rev. Emílio Garofalo Neto, que estão disponíveis no site da igreja presbiteriana Semear: http://ipsemear.org/sermoes-audio/ Também recomendo o livro de Cornelius Plantinga Jr, Reading for Preaching: The Preacher in Conversation with Storytellers, Biographers, Poets, and Journalists e os artigos do Rev. Wadislau Martins Gomes, Psicologização do púlpito e relevância na pregação e Pregação e aconselhamento: uma aproximação multiperspectiva, ambos disponíveis na página da Fides Reformata: http://cpaj.mackenzie.br/fidesreformata/artigos.php
23Para um estudo do uso das perspectivas na teologia veja Vern Poythress, Teologia Sinfônica (São Paulo: Vida Nova, 2016); e John Frame, A doutrina do conhecimento de Deus (São Paulo, Cultura Cristã, 2010).
24BAVINCK, Herman, Dogmática Reformada – Prolegomena, Vol. 1. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 434-438.
25BAVINCK, Herman, 25 Essays on Religion, Science, and Society. Baker Academic, 2008.
26GOMES, Wadislau Martins, Todo Mundo Pensa, Você Também. Brasília, DF: Monergismo, 2013, p. 34. Wadislau cita Van Til ao dizer que o ser humano é receptivamente criativo. “ Isso significa que recebemos tudo de Deus para atuarmos criativamente sobre as obras de suas mãos […] assim, imaginamos criativamente sobre aquilo que recebemos…”
27Uso o termo “criativo” reconhecendo que o ser humano é um subcriador. Sua atividade criativa é análoga a atividade criativa de Deus. O homem não é capaz de criar a partir do nada. Sua criação sempre é um ato transformativo. Como diz Dorothy Sayers: “Ele (Deus) criou o mundo do nada, mas não temos como criar qualquer coisa que seja do nada. Só o que podemos fazer é rearranjar as unidades inalteráveis e indestrutíveis da matéria no universo e reconstruí-las de novas formas”. SAYERS, Dorothy. A mente do Criador. São Paulo: É Realizações, 2015. p.44.
28SCHAEFFER, Francis. A Arte e a Bíblia. Viçosa, MG: Ultimato, 2011, p. 24-25.
29Não é minha intenção apresentar as respostas a essa pergunta de cada escola filosófica. Isso requereria mais tempo de pesquisa e um trabalho maior. Meu objetivo é dar uma resposta cristã para a pergunta e argumentar que somente sob pressupostos cristãos esse dilema pode ser resolvido.
30Herman Bavinck Theological Aesthetics, pág 46. Bavinck usa esse termo para se dirigir ao moderno movimento empiricista. Ele atribui a essa escola estética alguns pensadores como: David Hume, Edmund Burke e Charles Darwin.
31Essas duas visões pressupõem uma dicotomia entre o objeto e o sujeito: A visão relativista, que super-enfatiza a singularidade de cada sujeito acaba por negar o próprio conceito e a experiência da beleza como um ideal. A perspectiva aristocrática torna beleza algo arbitrário (nômico), algo sobre-imposto ao objeto.
32Ao analisar o desenvolvimento da estética ao longo da história, o filósofo francês Gilles Lipovetsky e o crítico de arte Jean Serroy denominam o segundo movimento estético de “A estetização aristocrática”. Para eles, durante todo esse ciclo, o intenso processo de estetização (elegância, refinamento, graça das formas) em vigor nas altas esferas da sociedade é o princípio orientador das relações sociais, um processo elitista de estilização das formas, de estetização das normas da vida e dos gostos.
33Abordarei melhor o assunto ao tratar dos efeitos da queda na estética.
34Citação retirada do artigo do Rev. Gustavo Vilela Monteiro, Trindade, Organismo e o Reino de Deus: Aplicações eclesiológicas do pensamento orgânico de Herman Bavinck (A ser publicado em um livro por Editora Monergismo). A citação original é de James Eglinton, “Introduction,” in The Christian Family, by Herman Bavinck (Grand Rapids, MI: Christian’s Library Press, 2012), xi
35Gustavo Vilela Monteiro, Trindade, Organismo e o Reino de Deus: Aplicações eclesiológicas do pensamento orgânico de Herman Bavinck, p, 3 (A ser publicado por Editora Monergismo).
36Ibid, p, 6.
37BHANSEN, Greg. Always Ready. Digital Edition, 2011, p. 30,40. Bahnsen diz: “O mundo foi criado por meio da palavra de Deus (Gn 1.3; Jo 1.3; Col 1.16; Heb 1.2) e portanto, reflete a mente e o caráter do próprio Deus (Rm 1.20) […] A mente de Deus nos fornece ambos, diversidade e ordem de todas as coisas, assim garantindo a realidade dos particulares (multiplicidade) e assegurando sua inteligibilidade (unidade)”.
38Devo este pensamento a conversas pessoais com o Rev. Gustavo Vilela Monteiro.
39Paulo aplica o mesmo princípio orgânico em 1 Coríntios 12, quando explica a relação de unidade na diversidade que existe na igreja, que é corpo de Cristo.

1 COMENTÁRIO

  1. Excelente artigo! Estou preparando uma material sobre o assunto para discipulado de crianças e é exatamente o que eu queria, algo que fosse além da beleza estética reducionista.
    Só uma observação. Quanto a perspectiva aristocrática. Entendi o argumento e ele é válido, porém a diversidade não pode abrir espaço para o não desenvolvimento da técnica e o conformismo. Esmero é uma característica de Ex 31. Há de se julgar a arte pelas condições de aquisição da técnica, isso é justo, porém esse parâmetro não pode justificar sua falta de progresso dentro, é claro, das condições oferecidas pelo contexto. Sempre, em qualquer contexto, buscar exceder, não pela auto exaltação mas para a Glória do nosso Habilitador, do nosso grande Deus!

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