Gnosticismo digital: defendendo o corpo contra o novo gnosticismo

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1. Identidade subjetiva e o ressurgimento do gnosticismo

A cada ano sai mais um filme ou seriado sobre a relação entre o ser humano finito e a tecnologia aparentemente infinita. O enredo é sempre o mesmo: o protagonista passa por uma transformação de existência natural e limitada para uma existência mesclada com tecnologia, transcendendo seus limites. Através da tecnologia, o homem triunfa sobre doenças e dor como no filme “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”, acaba com a solidão como no filme “Ela”, desafia a mortalidade como no filme “Transcendence: A Revolução”, e transforma o seu corpo como em “Robocop”. Além disso, com a chegada da internet, vemos mais e mais pessoas preferindo existências digitais por meio de redes sociais ou vídeo games. O meme da pessoa que nunca sai de casa, que vive somente no mundo dos fóruns e dos jogos até o ponto de rejeitar o mundo “real” pode ser um pouco exagerado, mas não chega a ser falso.

Após anos tentando mostrar que não existe um aspecto imaterial do ser humano e enfatizando o material, a corrente de pensamento principal mudou o seu curso. Graças ao existencialismo e ao subjetivismo que caracterizam o pós-modernismo, estamos agora cercados de afirmações de que os nossos corpos são apenas uma extensão de nós, como se fossem um mero acessório. Não importa o que fizermos com eles – podemos alterá-los ou descartá-los da forma que quisermos. Não só isso, mas devemos fazer isso para que o nosso corpo reflita aquilo que somos de verdade: um conjunto de pensamentos ou algum tipo de identidade que é subjetiva e derivada da unidade das nossas experiências de consciência. Para sermos autênticos e felizes de verdade, temos um imperativo quase moral de moldar o nosso corpo àquilo que somos “por dentro.”

Mas será que isso está certo? Podemos alterar as nossas mentes e os nossos corpos de qualquer maneira que quisermos? A nossa identidade é tão fluida que podemos simplesmente declarar quem nós somos? Há alguma coisa de errada em fazer a vida, as amizades, ou desenvolver a nossa história somente no mundo digital? Quem é o “eu” que eu sou?

Para quem já estudou filosofia ou história da igreja, essas ideias devem parecer um pouco familiar. Além de fazerem parte daquela famosa crise existencial, essas perguntas seguem do mesmo pressuposto: que o nosso Ser real não contempla o nosso corpo material. Isso não é nada mais do que o antigo gnosticismo, revestido de tecnologia – um gnosticismo digital.

Você pode estar pensando, “Mas, como assim, não é isso mesmo? Não somos almas viventes ocupando um corpo físico só temporariamente? Não são os novos céus e a nova terra que importam, e não o mundo de hoje?” Depois de anos defendendo a existência do espírito contra o materialismo do modernismo, nós mesmos acabamos diminuindo a importância do corpo. Para podermos responder aos movimentos culturais e defender a visão bíblica do mundo, precisamos primeiro saber o que nós mesmos acreditamos sobre o assunto. Um entendimento adequado do mundo material e, principalmente, do ser humano, é necessário para desenvolver teologia sã – não somente em relação a esses assuntos, mas eles também carregam implicações para doutrinas primárias.

2. Resgatando Irineu para defender o corpo contra pressupostos gnósticos

O gnosticismo enfrentado pela igreja primitiva e o gnosticismo digital se baseiam na crença de que o material, e principalmente o corpo físico, é inferior ou até ruim, por sua própria natureza. Assim, os argumentos desenvolvidos para defender o gnosticismo dos primeiros séculos já contém as respostas das questões que estão sendo feitas hoje. E não há ninguém melhor para tratar desse assunto do que o bispo grego Irineu de Lyon.

Irineu desenvolveu um argumento detalhado defendendo o corpo no seu livro “Sobre a detecção e refutação da chamada Gnose”, também conhecido como “Contra Heresias” (Adversus haereses, ca. 180 d.C.). Como os gnósticos da época se identificavam como cristãos, o pai de igreja se baseou na Bíblia para refutar as crenças gnósticas. Vamos olhar, então, alguns dos argumentos, começando com o Novo Testamento.

3. Irineu e a defesa a partir da encarnação

Embora não haja uma antropologia tão explicitamente desenvolvida na Bíblia, há recursos suficientes para poder desenvolver um entendimento claro e consistente acerca do corpo humano e do mundo material. Irineu demonstra que tanto a encarnação quanto a ressurreição são eventos explicitamente físicos que podem nos ajudar a entender o que constitui uma Pessoa.

Já houve muitos debates ao longo da história da igreja sobre a natureza humana de Jesus e a sua encarnação. Os gnósticos, por sua vez, geralmente concordavam que, devido à natureza má da matéria, Deus não poderia ter se feito realmente homem, com um corpo físico. Alguns diziam que o Cristo se manteve separado em substância de Jesus, como se o Cristo estivesse preenchendo uma casca física sem realmente se tornar homem. Outros sugeriram que Ele meramente se fez parecer como homem, ou que o seu sofrimento foi uma mera ilusão em prol dos seus seguidores.

Se, porém, Jesus realmente encarnou, inteiramente Deus e inteiramente homem, a fisicalidade em si não pode ser má. Irineu aponta para o evangelho de João em que Jesus é chamado de filho unigênito, encarnado para a salvação do ser humano, nascido da linhagem de Davi conforme prometido. Ele aponta para o evangelho de Mateus que mostra claramente como o nascimento virginal de Jesus, o Cristo, foi necessário para cumprir as profecias. Logo no primeiro capítulo do evangelho de João, ele diz, “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus… E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade.”

Paulo corrobora esse ponto nas epístolas: o Filho prometido, gerado pela mulher, foi enviado para redimir todos os que estavam debaixo da lei para que pudessem ser salvos. Não era meramente homem, mas o próprio Deus, pois não há nenhum justo, nenhum sequer, a não ser o próprio Deus. De acordo com Irineu, “Era, ao mesmo tempo homem para poder ser tentado, e Verbo para poder ser glorificado. É, portanto, o Filho de Deus, nosso Senhor, Verbo do Pai e ao mesmo tempo Filho do homem, que de Maria nascida de criaturas humanas e ela própria criatura humana, teve nascimento humano, tornando-se Filho do homem.”

Cristo Jesus, então, é uma unidade singular, ou seja, Espírito e carne. Irineu argumenta que uma encarnação plenamente física foi necessária para completar a obra da salvação:

É pelo seu próprio sangue que o Senhor nos resgatou, se deu a sua alma pela nossa alma e sua carne pela nossa carne, se efundiu o Espírito do Pai para operar a união e a comunhão de Deus e dos homens, fazendo descer Deus até os homens pelo Espírito e elevando os homens até Deus pela sua encarnação, se nos concedeu, na sua vinda, com toda certeza e verdade, a incorruptibilidade pela comunhão o que temos com ele, perdem todo o seu valor os argumentos dos hereges. (AH 5.1.1)

Se Jesus somente parecesse ser homem, ele não teria nem carne ou sangue, justamente aquilo por meio do qual ele redimiu a humanidade. A ceia do Senhor também demonstra a importância do corpo físico para redenção; de fato, é uma celebração tão física que alguns até acusaram os cristãos de serem canibais. Ao compartilhar o sangue e o corpo de Cristo, os santos se tornam membros do seu corpo – não um espírito invisível, mas um Deus-homem feito de carne e sangue.

Gregório de Naziano concorda, elaborando o argumento de que aquilo que é unido com Cristo pode ser redimido, mas aquilo que não é unido a Ele não tem como ser resgatado. Se somente uma parte de Adão sofreu o efeito da queda, então somente aquela parte precisaria da redenção. Mas se a natureza inteira de Adão foi corrompida pelo pecado, então a sua natureza inteira precisa ser coberta pelo Salvador. Jesus, o segundo Adão, foi necessariamente inteiramente homem e inteiramente Deus para poder completar tanto a obra da revelação quanto a obra da salvação: um ato de graça que demonstra sua misericórdia para conosco.

4. Irineu e a defesa a partir da ressurreição

Assim como sua encarnação, a ressurreição de Jesus foi profetizada por muitos anos antes de acontecer, e confirma a sua identidade como Cristo, Deus acima de todas as coisas, inclusive da morte. Sua ressurreição não foi metafórica ou meramente espiritual; os evangelhos contam como ele comia e bebia, mas também conseguia entrar em quartos fechados. Jesus voltou no seu próprio corpo, embora glorificado. Ele passou tempo com os seus discípulos, conversando e ensinando da mesma forma que havia feito antes; eles conseguiam mesmo pôr as mãos nas suas feridas e ver as cicatrizes da crucificação. Isso não é incidental, algo meramente conveniente só para seus discípulos poderem reconhecê-lo, mas demonstra que seu corpo físico faz parte do seu próprio Ser encarnado. Esse corpo não foi descartado nem transformado em algo exclusivamente espiritual; não. Jesus ressuscitou em espírito e em carne, confirmando que os filhos decaídos de Adão podem ser salvos não em parte, mas em toda sua natureza e ser. Irineu aponta para 1Coríntios 15, dizendo: “Jesus se constituiu a primícia da ressurreição, porque, como o cabeça ressuscitou dos mortos, assim devem ressuscitar os outros membros” quando a hora chegar. Pois tendo morrido em Adão, seremos vivificados em Cristo.

A ressurreição corporal de Jesus mantém o vínculo entre Deus e a humanidade estabelecida por meio da sua encarnação. Se o corpo físico fosse uma casca limitadora como sugere Platão, ou uma manifestação de maldade, não seria, nem poderia ser ressuscitado em glória. Mas, de acordo com Paulo, sem a ressurreição corporal, o evangelho inteiro desaba. 1Coríntios 15 demonstra a necessidade da ressurreição real e corporal para a volta do reino e a restauração do mundo.

Essa vinda dos novos céus e nova terra promete redenção e libertação de tudo que foi resultado do pecado. Entendemos que seremos ressuscitados e restaurados para a forma que Deus nos criou no início, sem corrupção, sem sofrimento, sem tudo aquilo que faz parte da queda. Seremos completos e glorificados, unidos mais uma vez com o Senhor. Sendo assim, se o corpo físico for ressurreto e não descartado como vemos em Jesus e na explicação de Paulo, então não temos como acreditar que o corpo material é inerentemente mau. E se continuamos com o nosso corpo glorificado na ressurreição, podemos ver como ele não é uma mera casca para o nosso espírito habitar de uma forma passageira e temporária. Jesus continua com o seu próprio corpo, bem como nós continuaremos com os nossos, pois fazem parte de quem nós somos.

Há alguns que acusam os escritores do Novo Testamento de serem indevidamente influenciados pelo pensamento helenista da época. Eles dizem que, por mais que eles tenham se defendido do gnosticismo, ainda há uma espécie de dualismo no texto que não se acha no Antigo Testamento. Embora a ressurreição tenha um papel muito maior no Novo Testamento, não significa que o Antigo Testamento não toque no assunto. Muito ao contrário. Sendo assim, vamos acompanhar Irineu nos seus argumentos do Antigo Testamento.

5. Irineu e a defesa a partir da criação

Na verdade, nem precisamos procurar tanto. Irineu começa logo com a própria história da criação em Gênesis, que relata a criação material do homem, criando-o da própria terra que Deus acabara de estabelecer. A mulher vem logo depois, criada do corpo físico do homem. E não só eles, mas a criação em si: temos a descrição detalhada da criação do mundo que nós mesmos conhecemos – os mares, as plantas, os animais. Irineu argumenta que, se o mundo foi feito dessa forma por ninguém menos que Deus, e se a vontade dele não pode ser suprimida, então o mundo criado deve ser aquele que Ele mesmo designou. Segundo Irineu, se Deus quisesse que a existência fosse exclusivamente espíritual e etérea, ele teria criado o mundo dessa forma. Isso sugere que o mundo é como Ele pretendia que fosse: material e imaterial, físico e espiritual. Podemos confirmar isso com o que Ele declara ao final de cada dia da criação: Deus vê que o que Ele fez era Bom. Ele não reserva essa declaração somente para a humanidade, mas também a proclama a respeito das plantas, dos animais, e dos mares. Além disso, esse mundo é descrito como a primeira revelação de Deus, trabalhando para a sua glória – cada rugido das ondas, cada canto de pássaro se juntando para criar uma bela canção de louvor ao Senhor do universo.

Tudo isso acontece bem antes da entrada de qualquer maldade na história da queda e continua depois também. O mundo é ocupado por seres físicos; a humanidade é feita do próprio pó da terra e vivificada pelo fôlego de Deus. A importância e o caráter bom da criação, repetidos durante o texto, demonstram claramente que o mundo material, mesmo caído, não é inerentemente mau.

Sobre a criação do homem, Irineu explica que ser feito à imagem de Deus inclui a natureza inteira da humanidade, isto é, espírito e corpo juntos. Ele diz: “A alma e o Espírito podem ser uma parte do homem, não o homem todo; o homem perfeito é composição e união da alma que recebe o Espírito do Pai e está unida à carne, modelada segundo a imagem do Pai.”

No final dos dias da criação, Deus instrui a humanidade a cuidar da terra, dominá-la, dar nomes aos animais e gerenciar os recursos que Ele providenciou. Esse mandato não foi retirado depois da maldição; embora fique claro que a harmonia entre humanidade e a terra foi rompida, não há nenhuma indicação de que podemos dispensar este mandato e destruir tudo ao nosso redor. Pois mesmo distorcida, a criação não se transforma em outra coisa; continua a criação boa de Deus e, como Paulo afirma, continua sendo a primeira revelação de Deus para nós. Mesmo depois da queda, a criação continua a mostrar tanto sobre as características e identidade de Deus que não temos nenhuma desculpa sequer para negá-lo. Nem irreconhecível, nem indescritível como os gnósticos sugerem, Deus fez a criação para refletir e revelar aspectos de si mesmo.

Em outras palavras, o mundo material é o meio pelo qual Deus escolheu se manifestar. Irineu mostra que, ao longo do Antigo Testamento, as pessoas conhecem a Deus por meio de seus feitos e a sua intervenção no mundo físico e espiritual. Através dos profetas, de reinos e batalhas, sofrimento e providência, Deus comunica com o seu povo e demonstra o seu amor, poder e justiça. Há sangue, suor, anjos e milagres. Não é muito diferente no Novo Testamento: Deus se faz homem, vive uma vida sendo inteiramente homem e ao mesmo tempo inteiramente Deus, morre e é ressuscitado dentre os mortos com seu próprio corpo glorificado. Dons espirituais são dados aos cristãos e a igreja se espalha, constantemente encorajando tanto o cuidado de necessidades físicas quanto espirituais. A história dos feitos de Deus não é limitada a só um aspecto, mas é propriamente entendida na interseção do espiritual e o material.

6. Salvos em corpo e alma

Irineu demonstra como a encarnação, a ressurreição, a criação e o relacionamento entre Deus e o homem, dão valor ao corpo físico, ao mundo material, e a combinação com o espiritual. O ser humano foi criado com corpo e alma, foi salvo com corpo e alma, e é prometida a ressurreição em corpo e alma. Por isso não podemos descartar o corpo, deixando-o para trás com as sobras de uma existência material supostamente inferior. Os gnósticos da época de Irineu tratavam o mundo material como algo mau, prejudicando o Ser Real, ou seja, o Espírito. A antropologia teológica desenvolvida por Irineu mostra como isso não é o caso. O mundo material foi criado intencionalmente por nosso Deus soberano e todo poderoso, que soprou o seu próprio fôlego para nos fazer viver. Ele se revela na criação, interage conosco por meio do mundo material e espiritual e, por fim, Ele mesmo se faz carne para nos salvar.

Irineu conclui, dizendo que a essência da humanidade não é meramente espírito, mas “o homem é composto de alma e de corpo, uma carne formada à imagem de Deus e modelada pelas suas mãos, isto é, pelo Filho e o Espírito, aos quais disse: ‘Façamos o homem.’” A natureza da humanidade não é material ou imaterial, nem é de substâncias separáveis funcionando em conjunto. É tanto material e imaterial juntos, formando um todo unificado com elementos espirituais e físicos, nenhum tendo precedência sobre o outro.

7. Velhas heresias, novos desafios

Embora sendo um contexto um pouco diferente, os argumentos bíblicos de Irineu respondem aos desafios dos gnósticos de hoje. Sim, o que fazemos com nossos corpos tem importância. Eles não são incidentais, irrelevantes, para serem moldados da forma que quisermos. Eles fazem parte de quem nós somos de modo integral. Mesmo decaídos, refletimos a imagem de Deus. O desenvolvimento da tecnologia e da ciência tem nos dado muitas oportunidades de entender melhor a criação e, portanto, o nosso Deus. Entretanto, temos sempre que lembrar que fomos mandados a cuidar da criação e gerenciá-la – não explorá-la sem limites e sem pensar nas consequências. O propósito da criação é revelar e glorificar a Deus, não a nós. Fomos feitos à imagem Dele, não à imagem de nós mesmos, nem da “tecnologia”, por assim dizer.

Tampouco devemos largar o mundo material para viver somente no mundo digital. A internet é uma ferramenta muito útil, mas não toma o lugar do mundo real. Os jogos permitem que experimentemos histórias de uma forma pessoal e envolvente, mas não tomam o lugar da interação e aventura no mundo real. Foi dada a nós a missão de multiplicar e frutificar, de dominar sobre a terra e cuidar dela. Depois, foi dada a nós a missão de ir e fazer discípulos, de compartilhar o evangelho e, sobretudo, dar glória a Deus. Essas missões são necessariamente físicas e não podem ser cumpridas vivendo somente no mundo digital.

Seguindo a linha de pensamento de Irineu, portanto, somos seres físicos e espirituais, em um mundo físico e espiritual, salvos por um Deus que se encarnou, e chamados para tarefas físicas e espirituais. Os nossos corpos não são separados das nossas identidades, mas fazem uma parte integral de quem nós somos. O que fazemos com eles importa. A nossa interação e presença no mundo real importa, e faz parte da razão do nosso viver. Através da obra do Irineu de Lyon, vemos que há uma resposta bíblica para o gnosticismo digital e às questões que estão surgindo hoje. Agora que temos uma visão desses princípios que guiam nosso pensamento cristão sobre o corpo e o mundo material, podemos começar a desenvolver uma defesa mais ampla para o contexto secular.

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