Celebrando os 500 anos da Reforma Protestante

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Excelentíssimo Senhor Governador Camilo Santana;

xcelentíssima Senhora Vice-Governadora Izolda Cela, governadora em exercício;

excelentíssimo Senhor Presidente da Assembleia, Deputado Estadual Zezinho Albuquerque;

excelentíssimo Senhor Vice-Presidente da Assembleia, Deputado Estadual Tin Gomes;

excelentíssimos senhoras e senhores deputados estaduais do Ceará.

Meus cumprimentos também aos secretários de Estado aqui presentes, prefeitos, vereadores, demais autoridades civis e religiosas, imprensa, assistência e telespectadores que assistem a esta sessão solene através da TV Assembleia.

Gostaria primeiro de agradecer o convite e a confiança depositada em mim pela Deputada Estadual Dra. Silvana Oliveira e seu esposo, o Dr. Jaziel Pereira, para que ocupasse a tribuna desta Casa de Leis, nesta data que celebra os 500 anos da Reforma Protestante. Também estendo meu agradecimento ao apoio da Ordem dos Ministros Evangélicos do Estado do Ceará a este momento.

Quero saudá-los em nome do Seminário Martin Bucer, do qual sou o diretor geral; da Igreja da Trindade, onde sirvo como um dos pastores; e de Edições Vida Nova, onde trabalho como consultor acadêmico.

Neste ano de 2017 a igreja evangélica no mundo inteiro celebra os 500 anos da Reforma Protestante do século 16. A data tradicional em que se celebra este evento importantíssimo para a história do Ocidente é o dia 31 de outubro, quando se diz que Martino Lutero afixou na porta da Igreja do Castelo da cidade de Wittenberg, na Alemanha, o Debate para o esclarecimento do valor das indulgências, conhecida popularmente como as “95 teses”.

O que torna esse ato de Lutero tão significativo é que sua atitude de afixar na porta da igreja suas teses e enviá-las a seus superiores era parte de um movimento internacional – e praticamente simultâneo – de retorno aos antigos marcos da fé cristã, como estabelecidos na Escritura Sagrada. Por toda a Europa homens e mulheres se destacaram na luta para reformar a fé cristã, redescobrindo seu caráter evangélico: o amigo e cooperador de Lutero em Wittenberg, Felipe Melanchthon; Ulrico Zuínglio, em Zurique; João Calvino, em Genebra; Martin Bucer, em Estrasburgo; William Tyndale e Thomas Cranmer, na Inglaterra; John Knox, na Escócia; Menno Simons, na Holanda. Estes são os nomes que mais se destacam nessa época. Entre as mulheres podem ser mencionadas Katharina von Bora, a esposa de Lutero; Katharina Schutz Zell, de Estrasburgo; Marguerite de Navarre, irmã do rei francês Francisco I e protetora dos reformadores franceses; Jeanne d’Albret, rainha de Navarre; Jane Grey, rainha da Inglaterra por poucos dias; Marie Dentière, de Genebra, que escreveu o prefácio a uma publicação de Calvino; e a italiana Olimpia Fulvia Morata, uma erudita em latim e grego.

A menção desses homens e mulheres já nos dá uma ideia da abrangência da Reforma. Inglaterra, Escócia, França, os muitos principados da Alemanha, as cidades da Suíça e os países escandinavos foram alcançados pela mensagem dos reformadores. A Reforma chegou à Holanda mais tarde, e nos países que conhecemos hoje como Áustria, Hungria, Tchecoslováquia e mesmo em partes da Polônia e Rússia houveram alguns grupos de luteranos, de calvinistas e, neste último caso, de anabatistas.

Mas o que é “Reforma”, afinal? A palavra é uma tradução do latim, reformatio, e traz a noção de “rejeição de novidades, que se definiam pelas graves distorções da verdade cristã que passaram por verdades em séculos mais recentes, e que conhecemos como catolicismo medieval” (Patrick Collinson). Já no século 15 os cristãos ocidentais falavam de reforma, “termo frequentemente encontrado na fórmula ‘reforma da Igreja, de sua cabeça e seus membros’ e nesse nível acreditava-se que o objetivo da reforma deveria ser todo o corpo da Igreja, porém mais especialmente as camadas mais elevadas” (Patrick Collinson).

Mas a Reforma do século 16 foi diferente das tentativas anteriores de renovação da igreja medieval. Uma definição mais precisa deste movimento seria: “A Reforma é a tentativa de colocar Deus, como ele se revelou em Cristo, no centro da vida e do pensamento da igreja” (Carl Trueman). Assim, a Reforma protestante do século 16 foi um movimento de reforma da igreja essencialmente doutrinal.

Podemos perceber isso em três temas que foram redescobertas e reafirmadas pela Reforma do século 16: a centralidade da Escritura, a justificação pela fé somente e o sacerdócio de todos os crentes.

Um papado desacreditado e um clero corrupto minaram a autoridade que estes tinham sobre a igreja católica medieval. Foi nesse contexto que os reformadores reafirmaram a autoridade da Escritura, acima do papado, dos concílios e do clero. Para eles, a Escritura era um guia certo e suficiente para a salvação e o conhecimento de Deus. E o fundamento desta autoridade não era a Escritura interpretada pelo magistério ou clero. Era a crença na clareza da Escritura, a noção de que qualquer pessoa, por meio da iluminação do Espírito Santo, poderia entender a mensagem central da Palavra de Deus, a salvação por meio do sacrifício salvífico de Jesus Cristo somente.

Por isso, os reformadores pregaram, ensinaram e traduziram a Escritura na língua do povo – e creram que foi a Escritura que produziu a Reforma. Como Lutero falou: “Veja o meu exemplo. Eu me opus às indulgências e a todos os papistas, mas nunca pela força. Simplesmente ensinei, preguei, escrevi a Palavra de Deus. De outro modo, não fiz nada. (…) A Palavra enfraqueceu tanto o papado que nunca um príncipe ou imperador conseguiu lhe causar tanto dano. Eu não fiz nada. A Palavra fez tudo”.

Os reformadores também criam que a pregação da Palavra de Deus é essencial à igreja, porque, conforme a epístola do apóstolo Paulo aos Romanos, num dos versículos favoritos de Lutero: “a fé vem pelo ouvir, e o ouvir, pela palavra de Cristo” (10.17). Por isso o reformador de Zurique, Heinrich Bullinger, podia dizer confiantemente: “A pregação da Palavra de Deus é a Palavra de Deus”.

Então, os reformadores desafiaram a autoridade do Papa e do clero, em favor da autoridade da Bíblia. E muitas pessoas os seguiram, porque elas tinham perdido a confiança na autoridade do clero.

Mas os reformadores do século 16 não apenas reafirmaram a autoridade das Escrituras, acima do clero. A batalha de Lutero, bem como a de outros reformadores, não foi especificamente pelo resgate da Escritura, mas acima de tudo pelo resgate do evangelho, como anunciado na Escritura: “Os reformadores não descobriram a Escritura; antes, eles alegaram descobrir o evangelho” como revelado na Escritura (Marvin W. Anderson).

E a experiência de Thomas Bilney, sacerdote inglês do século 16, ilustra esta ligação inseparável das Escrituras com a graça oferecida por meio de Jesus Cristo, que “morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; e foi sepultado; e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras” (1Co 15.3,4).

Na Universidade de Cambridge, em 1516, Bilney estava lendo as Escrituras até que chegou ao versículo “Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal” (1Tm 1.15). No passado, ele teria sido levado ao desespero por causa de seus pecados, mas depois ofereceu o seguinte testemunho do significado dessas palavras:

Parecia-me, de imediato, que sentia em meu interior um maravilhoso conforto e tranquilidade, de tal maneira que meus ossos feridos exultavam. Depois disso, a Escritura começou a tornar-se mais agradável para mim que o mel ou o favo de mel. Ali, aprendi que todas as minhas angústias, todos os meus jejuns e vigílias, toda a redenção de missas e absolvições eram realizados sem a verdade em Cristo, que salvou seu povo dos pecados deles. Essas coisas, afirmo, aprendi serem nada mais que uma corrida veloz e precipitada longe do reto caminho (como Santo Agostinho disse), ou que eram muito parecidas com as vestes feitas de folhas de figueira, com as quais Adão e Eva tentaram em vão cobrir-se, e nunca puderam encontrar paz e repouso — até crerem na promessa de Deus, de que Cristo, a semente da mulher, pisara a cabeça da serpente.

Bilney, que foi instrumental em atrair muitos para a mensagem bíblica redescoberta pela Reforma, foi queimado pelos católicos em Lollards Pit, Norwich, em 1531.

Portanto, a segunda e mais importante doutrina redescoberta pelos reformadores foi a doutrina de justificação pela graça, baseada somente na livre graça de Deus, e recebida pela fé somente. Num contexto dominado por ideias da graça divina mediada pelos sacramentos eclesiásticos e recebida pela cooperação do fiel, além das noções de que a salvação poderia ser conseguida mediante a compra de indulgências – noções de salvação que não proporcionavam segurança alguma para os fiéis –, o ensino bíblico da justificação redescoberto pelos reformadores foi como bálsamo para corações feridos.

A experiência de Lutero, ao encontrar na Escritura Sagrada o Deus gracioso, que vem a nós em Jesus Cristo, ilustra a centralidade da graça no pensamento dos reformadores. Ele, em retrospecto, lembrando de sua descoberta ocorrida em meados de 1518, escreveu em 1545:

Eu fora tomado por uma extraordinária paixão em conhecer a Paulo na epístola aos Romanos. Mas fazia-me tropeçar não a frieza de coração, mas uma única palavra no primeiro capítulo: ‘a justiça de Deus é nele revelada’. Isso porque eu odiava a expressão ‘justiça de Deus’, pois o uso e costume de todos os professores me havia ensinado a entendê-la filosoficamente como justiça formal ou ativa (…), segundo a qual Deus é justo e castiga os pecadores injustos.

Eu não amava o Deus justo, que pune pecadores; ao contrário, eu o odiava. Mesmo quando, como monge, eu vivia de forma irrepreensível, perante Deus eu me sentia pecador, e minha consciência me torturava muito. Não ousava ter esperança que pudesse conciliar a Deus através de minha satisfação. E mesmo que não me indignasse, blasfemando em silêncio contra Deus, eu resmungava violentamente contra ele: Como se não bastasse que os míseros pecadores, perdidos para toda a eternidade por causa do pecado original, estivessem oprimidos por toda sorte de infelicidade através da lei do decálogo — deveria Deus ainda amontoar aflição sobre aflição através do evangelho, e ameaça-los com sua justiça e ira também através do evangelho? Assim eu andava furioso e de consciência confusa. Não obstante, teimava impertinentemente em bater à porta desta passagem; desejava com ardor saber o que Paulo queria [dizer com ela]. Aí Deus teve pena de mim. Dia e noite eu andava meditativo, até que, por fim, observei a relação entre as palavras: ‘A justiça de Deus é nele revelada, como está escrito: o justo vive por fé’. Aí passei a compreender a justiça de Deus como sendo uma justiça pela qual o justo vive através da dádiva de Deus, ou seja, da fé. Comecei a entender que o sentido é o seguinte: Através do evangelho é revelada a justiça de Deus, isto é, a passiva através da qual o Deus misericordioso nos justifica pela fé, como está escrito: ‘O justo vive por fé’. Então me senti como renascido, e entrei pelos portões abertos do próprio paraíso. Aí toda a Escritura me mostrou uma face completamente diferente.

Não é surpresa que aqueles que entenderam este ensino, e receberam alívio, segurança e esperança por meio dele, preferiam morrer antes de negá-lo. Portanto, a ideia da imputação da justiça de Cristo ao que crê somente foi o coração da mensagem da Reforma do século 16.

Logo, nas palavras de Lutero, “o verdadeiro tesouro da igreja é o santíssimo evangelho da glória e da graça de Deus.” (Tese 62 do Debate para o esclarecimento do valor das indulgências). Que nesta celebração lembremos da grande descoberta de Martinho Lutero, descoberta que caracteriza uma igreja evangélica de verdade!

A terceira área reafirmada na Reforma foi a redescoberta de uma nova compreensão da vida cristã. A concepção da espiritualidade católica medieval dividia a igreja em duas classes, o clero e o laicato. Bernardo de Claraval, por exemplo, disse: “A história de Marta e Maria no Evangelho mostra que devemos preferir a vida contemplativa. Maria escolheu a melhor parte… Mas se nos coube a parte de Marta, devemos carregá-la com paciência”. Nos anos anteriores à Reforma, houve, entre muitas pessoas, anseio por comunhão mais íntima com Deus, e surgiram movimentos para suprir estes anseios, como os Irmãos da Vida Comum. Mas algumas destas pessoas não podiam se tornar membros do clero, por causa das responsabilidades com suas famílias, e outras não queriam se tornar membros do clero por causa de sua corrupção.

Os reformadores, então, afirmaram e ensinaram que nem todos são chamados para ser pastores, mestres ou estadistas. Para Lutero, por exemplo, há um só “estado” – todos os cristãos são sacerdotes –, mas uma variedade de funções, isto é, cada cristão tem um chamado específico da parte de Deus, para glorificá-lo no mundo. Assim, todo cristão é sacerdote de alguém, e somos todos sacerdotes uns dos outros. Portanto, não se pode ser cristão sozinho, é necessária a “comunhão dos santos”, a igreja, que deve ser uma comunidade de intercessores, um sacerdócio de amigos que se ajudam, uma família na qual as cargas são compartilhadas e suportadas mutuamente.

Como decorrência da noção do sacerdócio de todos os crentes, o anseio pela glória de Deus conduziu os reformadores a afirmar um importante princípio: a aceitação do mundo como ele é, criado e sob os cuidados de Deus, mas corrompido pelo pecado e carente de restauração. Eles também afirmaram a noção de que não seria necessário santificar a arte, a música e a ciência, subordinando-as a interesses morais ou religiosos, pois para eles a criação seria uma esfera legítima em si mesma. Assim, o ensino da Reforma permitiu que as expressões humanas se tornassem um empreendimento puramente comum.

Nas artes, destacaram-se Lucas Cranach, Albrecht Dürer, Hans Holbein, o Jovem, Matthias Grünewald e Rembrandt van Rijn. Esses artistas combinavam a criatividade pessoal, a experiência humana e a tradição cristã nascida da Reforma em suas pinturas e gravuras, expressando sua fé “de uma forma que a teologia falada ou escrita não pode reproduzir” (John Leith), ao retratarem em suas obras cenas bíblicas, do cotidiano e paisagens.

Johann Sebastian Bach ilustra o impacto da Reforma na música. Quase todas as obras de Bach têm no seu princípio as letras “J. J.” e, no seu final, “S. D. G.”. No início da obra, Bach pedia Jesu Juva! (“Jesus, ajuda!”) e, depois de escrever a última nota, gravava Soli Deo Gloria! (Glória somente a Deus!). Ao iniciar a composição, Bach confessava não somente sua indignidade e inabilidade para fazer algo agradável aos olhos de Deus, mas confessava também a sua fé em Jesus como seu Salvador. Ao finalizá-la, o louvor a Deus brotava de sua gratidão pela ajuda recebida. Bach escreveu música para culto e música instrumental para entretenimento, e os dois estilos refletem a busca pela excelência e a glória de Deus. Clement Marot e Louis Bourgeois, que musicaram os salmos cantados pela igreja reformada em Genebra, também são exemplos de artistas que exerceram sua vocação tanto para o entretenimento quanto para o culto, sem confundir nem subordinar uma esfera à outra. Esses músicos se moviam entre as duas esferas como âmbitos legítimos e divinamente ordenados.

No campo da literatura, surgiram peças teatrais e poemas, cobrindo gêneros tais como a tragédia, o épico, o drama, a comédia e o romance. Também surgiram os primeiros jornais, além de tratados defendendo a liberdade de imprensa (Areopagítica). William Shakespeare, Edmund Spenser, John Donne, George Herbert e John Milton são alguns dos principais representantes da “Era de Ouro” da literatura inglesa, fruto da Reforma.

Crendo na revelação geral de Deus por meio da criação, assim como na sua revelação especial na Escritura, os seguidores da Reforma abraçaram o estudo científico do mundo físico. Se de fato produziram a ascensão da ciência moderna, é uma questão de debate, mas que eram favoráveis à ciência, isso é indiscutível. Os reformadores entenderam que a Escritura não é um manual de teoria artística, literária, musical ou política; assim, não pode também ser vista como livro texto de ciência. Para eles, “tudo nas Escrituras é verdade, no sentido daquilo para o que foi escrito pelo autor original, mas o propósito das Escrituras não é nos contar tudo sobre todas as coisas, mas explicar — na linguagem mais comum e mais básica possível — o progresso da obra salvífica de Deus, em Cristo, através da história da redenção” (Michael Horton). A crença subjacente era que a criação se harmonizava com as Escrituras, já que Deus era o autor de ambos. Assim, sendo uma vez dado espaço à observação empírica para explorar a criação, cientistas como Johannes Kepler, Robert Boyle, Francis Bacon e Isaac Newton ganharam liberdade para seguir sua vocação.

Além disso, algumas das principais universidades europeias — tais como Zurique, Estrasburgo, Genebra, Edimburgo, Leiden, Utrecht, Amsterdã, Oxford, Cambridge e Heidelberg — “foram ou fundadas ou restauradas por aqueles que estavam resolvidos a fazer a teologia da Reforma influir num mundo em mudança” (Michael Horton). Para os reformadores, o ensino abrangente tinha por objetivo tornar os cristãos ativos no mundo, dissipando as trevas de uma fé corrompida e supersticiosa e da ignorância. Academia de Genebra serve de exemplo: na metade do século 16, das vinte e sete preleções semanais, três eram em teologia, oito em hebraico e Antigo Testamento, três em ética, cinco em oradores e poetas gregos, três em física e matemática, e cinco em dialética e retórica. Lia-se textos de Virgílio, Cícero, Ovídio, Homero, Aristóteles, Platão e Plutarco.

O amigo de Lutero, Melanchton, tem sido considerado o fundador do ensino patrocinado e sustentado pelo Estado. Pelo menos cinquenta e seis cidades procuraram sua ajuda na reforma de suas escolas. Ele ajudou a reformar oito universidades – entre elas Colônia, Tübingen, Leipzig e Heidelberg – e a fundar outras quatro: Greifswald, Königsberg, Jena e Marburgo. Além disso, escreveu numerosos livros didáticos para uso nas escolas e, hoje, é conhecido como o Mestre da Alemanha.

Os reformadores também trataram com máxima seriedade o ensino bíblico sobre o poder civil e as tensões envolvidas entre as esferas da igreja e do Estado ou entre as duas cidadanias do cristão. Martinho Lutero foi o primeiro dos reformadores a tratar do assunto em sua obra Da autoridade secular, até que ponto se lhe deve obediência. Foi seguido por João Calvino, que abordou a matéria nas Institutas da religião cristã, ao tratar “da administração política”.

O mais surpreendente é que quase todos os reformadores articularam uma teologia do Estado e várias obras foram lançadas em rápida sucessão nessa época: O reino de Cristo, de Martin Bucer; Um breve tratado do poder político, de John Ponet; Como poderes superiores devem ser obedecidos por seus súditos; e em que ponto eles podem legitimamente, segundo a Palavra de Deus, ser desobedecidos e resistidos, de Christopher Goodman; Francogália ou Um relato do antigo Estado livre da França e a maioria das outras partes da Europa, antes da perda de sua liberdade, de Francois Hotman; Do direito dos magistrados, de Theodore Beza; Os poderes da Coroa da Escócia, de George Buchanan; o influente tratado anônimo Defesas (da liberdade) contra tiranos, atribuído por muitos a Philippe de Mornay; Politica, de Johannes Althusius, que tem “a distinção de ser uma das contribuições centrais para o pensamento político ocidental” (Frederick S. Carney), e Lex rex, de Samuel Rutherford – obra seminal que defende o estado de direito e a legalidade das guerras defensivas, assim como o governo limitado e o constitucionalismo na política.

Nestas várias obras, os reformadores do século 16 elaboraram os valores que definem uma república, os quais são esboçados a seguir, podendo ser deduzidos ou inferidos da Escritura:

  • ênfase nas funções primordiais do Estado, em que os governantes têm a obrigação de zelar pela segurança do povo — afinal, para isso pagamos impostos (Rm 13.1-7);
  • centralidade do contrato social, aquele acordo entre os membros de uma sociedade pelo qual reconhecem a autoridade sobre todos de um conjunto de regras e “uma estrutura protetora de responsabilidades mútuas” (Christopher Wright), que é a Constituição, a qual limita o poder, organiza o Estado e define direitos e garantias fundamentais;
  •   limitação da extensão e do poder do Estado, pois, com base nas Escrituras, entende-se que o governo não tem autoridade para estabelecer impostos exorbitantes, redistribuir propriedades ou renda ou confiscar depósitos bancários;
  • separação e cruzamento fiscalizador (os chamados “freios e contrapesos”) entre os poderes executivo, legislativo e judiciário, para que nenhum poder acumule poderes absolutos e para que sempre haja entre os poderes separação, independência e harmonia; nesse campo, os reformadores enfatizaram que não se deve centralizar o poder nas mãos de algumas poucas pessoas, mas dividi-lo entre poderes claramente separados e equilibrados, e entre o maior número possível de pessoas; tal convicção estava baseada na própria Escritura, que ensina que somente Deus é juiz, legislador e rei: “Porque o SENHOR é o nosso juiz; o SENHOR é o nosso legislador; o SENHOR é o nosso rei; ele nos salvará” (Is 33.22)
  • o papel do Estado não é igualar a todos, mas, sim, dar oportunidade de ascensão social a todos, investindo em educação e promovendo serviços médicos de qualidade;
  • apoio a associações e organizações que promovam a justiça em todos os aspectos da vida, especialmente aos marginalizados e oprimidos (Jr 22.3; Tg 1.27; 2.1-10; 5.1-8); e devemos lembrar que é a Escritura Sagrada, e não uma cultura secularizada, que define quem são os marginalizados e oprimidos; para cristãos, esses são a viúva, o órfão, o estrangeiro, o pobre e o que sofre violência (Jr 22.3; Zc 7.10).
  •  promoção de uma ética protestante do trabalho, que “é um conjunto de virtudes econômicas [fundamentadas na Escritura]: honestidade, pontualidade, diligência, obediência ao quarto mandamento — “seis dias trabalharás” —, obediência ao oitavo mandamento — “não furtarás” — e obediência ao décimo mandamento — “não cobiçarás’” —, reconhecendo que a ênfase no “trabalho produtivo origina-se” da Escritura;
  • direito à propriedade privada como direito fundamental (Êx 20.15,17; 1Rs 21.1-29);
  • alternância do poder civil, a qual impede que um partido ou autoridade se perpetue no poder, assim como a defesa do pluralismo político e partidário; não custa lembrar que “em termos políticos, os profetas [do Antigo Testamento] cumpriam um papel comparável ao dos partidos de oposição, hoje, obrigando a autoridade política [no governo] a ouvir as críticas, mantendo diante de seus olhos a responsabilidade inevitável que tinha para com Deus e o povo” (Christopher Wright);
  • garantia das liberdades individuais por meio do estabelecimento de normas gerais de conduta que resultem em liberdade de culto, expressão, associação e de imprensa;
  • voto distrital para o poder legislativo, em que o país ou o Estado é dividido em distritos eleitorais com aproximadamente a mesma população: cada distrito elege um deputado e, assim, completam-se as vagas no congresso e nas câmaras estaduais.
  • e os governantes devem sempre prestar contas ao povo, que tem o direito e o dever de afastar os injustos e corruptos do poder; foram os reformadores que elaboraram noções como desobediência civil e rebelião contra os tiranos.

Os cristãos que almejam servir na esfera pública devem trabalhar para moldar a opinião pública, com o objetivo de aumentar o alcance e a eficácia da cosmovisão cristã no de¬bate público, para isso utilizando-se de todos os meios de comunicação disponíveis, da atuação política nos centros de decisão e do fomento de fóruns de discussão. E “devem encontrar for¬mas de defender suas ideias dentro de um jogo conceitual sem referência à fé, mas usando termos da filosofia e do comportamento humano histórico” (Luiz Felipe Pondé). Em outras palavras, os argumentos religiosos podem ser trazidos para a esfera pública desde que traduzidos em linguagem política adequada, de modo que possam ser convenientes e aceitáveis a todos.  

O movimento da Reforma não foi, portanto, somente um movimento de redescoberta do evangelho conforme revelado nas Escrituras Sagradas e com vistas a renovar a igreja. Foi também um amplo movimento de reordenação da sociedade à luz da revelação de Deus em sua Palavra. Assim, “a estrada para a democracia moderna começou com a Reforma Protestante no século 16, em especial entre aqueles expoentes protestantes reformistas que desenvolveram uma teologia política que remeteu o Ocidente de volta aos caminhos do autogoverno popular, com ênfase na liberdade e igualdade” (Daniel J. Elazar). Desse modo, o que se descobre nessas obras é que a verdadeira origem do contrato social, garantidor das liberdades fundamentais do ser humano, encontra-se na Reforma protestante e, em última análise, na mensagem evangélica oferecida nas Escrituras e confiada à igreja.

Portanto, os cristãos são chamados a glorificar a Deus em todos as esferas da criação, a partir da vocação e dos dons que o Senhor lhes tem concedido, como “geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus” (1Pd 2.9).

Mas, ainda que sejam consideradas questões políticas, sociais, culturais e econômicas na Reforma Protestante, a marca significativa deste movimento é a sua clara preocupação com a doutrina e a prática da fé como afirmada na Escritura Sagrada. Essa postura nunca deixará de ser atual, pois a igreja evangélica deve ser semper Reformanda, isto é, a igreja deve estar sempre sendo reformada, voltando sempre ao fundamento, à Escritura, que deve ser permanentemente visitada para que a igreja seja iluminada pelo Espírito e conduzida pela Palavra de Deus, que nos foi revelada como única regra de fé e prática.

Portanto, ao relembramos e rememoramos os 500 anos da Reforma Protestante, que tenhamos diante de nós o trecho de uma correspondência do reformador da cidade de Genebra, João Calvino, ao imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Carlos V:

A reforma da igreja é obra de Deus e tão independente de esperanças e opiniões humanas quanto a ressurreição dos mortos ou qualquer milagre dessa espécie. Portanto, no que tange à possibilidade de fazer algo em favor dela, não se pode ficar esperando pela boa vontade das pessoas ou pela alteração das circunstâncias da época, mas é preciso irromper por entre o desespero. Deus quer que seu evangelho seja pregado. Vamos obedecer a esse mandamento, vamos para onde ele nos chama! O sucesso não é da nossa conta.

Se a igreja evangélica tem se distanciado desses temas, se faz necessária a redescoberta da centralidade da Escritura Sagrada, a única Palavra de Deus; da graça de Deus em Cristo Jesus, morto e ressurreto por nossos pecados, recebida somente pela fé; e do sacerdócio de todos os crentes. Assim, que clamemos por um retorno imediato por parte da igreja evangélica à Palavra de Deus, para que esta igreja seja verdadeiramente reformada: “Seca a relva e cai a sua flor, quando o vento do Senhor sopra sobre elas. Na verdade, o povo é relva. Seca-se a relva e cai a sua flor; mas a palavra de nosso Deus permanece para sempre” (Is 40.7,8).

Soli Deo Gloria!

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