Bíblia e literatura I

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A relação entre a Bíblia e a literatura é muito discutida, tanto nos meios teológicos quanto nos literários. Gostaríamos de retomar essa complexa e difícil discussão, sem pretensões de esgotamento, muito menos de redução da Bíblia a mais um livro, entre tantos outros.

Procuraremos, pelo contrário, demonstrar que uma perspectiva literária e séria da Bíblia, ao invés de nivelá-la a tudo aquilo que já se escreveu nesse mundo, realça ainda mais a sua singularidade. Para seguirmos essa linha de raciocínio, é preciso, em primeiro lugar, admitir sem medo que a Bíblia é, queiramos ou não, um livro . E como tal, ela faz parte de uma longa e complexa tradição cultural e literária. Mas não é só isso que torna a Bíblia parte do que costumamos chamar de literatura. Nem todo livro que nos é oferecido, principalmente hoje, pode ser considerado propriamente literário. Como distinguir? Certamente não é tarefa fácil, exigindo alguma experiência com o trato de livros. Mas o empreendimento é tão compensador que pode, inclusive, levar alguém a se dar conta da notoriedade desse livro específico chamado Bíblia.

Foi precisamente isso que aconteceu com o conhecido escritor e catedrático em literatura de Oxford, C.S. Lewis, que costumava dizer que preferia os livros antigos, ou clássicos, que não podem ser limitados cronologicamente porque , antes de tudo, eles foram testados pelo tempo, prova nada fácil de passar (para maiores detalhes a respeito dessa história, leia a autobiografia de Lewis, Surpreendido pela Alegria , da Editora Mundo Cristão). E, já que ele não tinha como ler os livros do futuro, dizia, dava um crédito a mais aos clássicos. Então, sua fórmula era ler dois clássicos para cada livro recente. Sua filosofia era incentivar a leitura dos livros de autores de outras épocas porque eles desenvolvem a capacidade de comunicação, pondo-nos em contato com todo o mundo que o leu antes de nós, ampliando, assim a nossa restrita visão de mundo. Dificilmente poderíamos alcançar esses conhecimentos pela experiência.

Se considerarmos, nesse contexto, que a Bíblia é um dos livros mais antigos de toda a humanidade, teríamos que lê-la numa proporção ainda muito maior do que lemos os livros antigos mais “ordinários”. Não é para menos que esse livro unifica nações de raízes culturais diversas, sendo muitas vezes usado como instância de autoridade máxima para a tomada de decisões pessoais e coletivas. Trata-se de um dos livros mais traduzidos do mundo, que se tornou a razão para a alfabetizações de nações inteiras.

Sem desconsiderar as diferenças de religião, credo, cultura e gerações que já deram motivo a guerras e injustiças na história, a Bíblia, pelo contrário, estabelece um campo comum propício à comunicação no meio destas diferenças. Poderíamos citar inúmeras campanhas internacionais de distribuição de Bíblias e movimentos missionários de todos os tempos que apontam para isso. Os pais da Igreja e seus esforços para expandir o Cristianismo nos seus primórdios e os Reformadores são evidências históricas disso. Há livros sagrados, cuja tradução para outras línguas é inclusive proibida, dificultando esta comunicabilidade e transculturalidade.

A Bíblia absolutamente não se trata de um livro qualquer . Ela é, nada mais nada menos, do que um dos livros mais amplamente distribuídos e lidos de todos os tempos. Um verdadeiro best seller internacional, cujas primeiras cinco partes, o Pentateuco, já têm aproximadamente 3450 anos de idade, o que vale mais do que qualquer Prêmio Nobel em literatura ou selo de qualidade.

Uma das razões para o conhecimento amplo da Bíblia é que ela continua sendo um best-seller . Isso, apesar de ter sido um dos livros mais perseguidos, queimados e censurados de todo o mundo. A Bíblia foi traduzida em inúmeras línguas, inclusive de tribos situadas nos mais remotos lugares do mundo. Foi assim que a Bíblia marcou profundamente a biografia de pessoas mais ou menos conhecidas como Gandhi, Martin Luther King e Watchman Nee.

Basta consultar uma enciclopédia comum para encontrarmos diversas referências à Bíblia. Nada como um bom dicionário bíblico ou uma enciclopédia de teologia para se ter uma idéia da quantidade de expressões usadas para se referir a esse livro: Escrituras Sagradas, Palavra de Deus, Lei Divina, Livro Sagrado, e isto, somente no português.

Quem tem o prazer de conhecê-la mais de perto, o que é sempre preferível ao recurso apressado a qualquer enciclopédia, notará que se trata, na verdade, não de um livro ordinário, mas de um grande conjunto de livros. Não é para menos que a palavra Bíblia, ta biblia (os livros) seja o plural do grego biblion (livro). Quem se aventura a dar uma segunda folhada na Bíblia constatará que se trata de uma verdadeira “biblioteca”, com uma extraordinária riqueza, não apenas literária, mas histórica, geográfica e principalmente de sabedoria de vida e conhecimento das coisas de Deus.

Essa diversidade e riqueza de partes que compõem a Bíblia, muitas vezes assustam os leitores, mesmo aqueles habituados à leitura. Mas, na verdade, trata-se basicamente do Antigo Testamento, com um total de trinta e nove livros, e do Novo Testamento, com vinte e sete. São aproximadamente trinta escritores, das mais diversas épocas e lugares envolvidos. O extraordinário é que isso não pôs a perder a sua coerência essencial para além de toda a diversidade – ou precisamente devido a ela.

Essa unidade dentro da diversidade pode ser mais bem compreendida se considerarmos que a palavra “testamento” nada mais significa do que “pacto” ou aliança, o da Lei Antiga de Moisés – que viveu cerca de quatrocentos anos antes do cerco de Tróia e trezentos anos antes dos filósofos antigos Pitágoras, Tales de Mileto e Confúcio – e o da nova aliança que se cumpriu em Cristo. Ou seja, a diversidade não impede a unidade, que aponta para uma mensagem ( kerygma ) única, que transcende todas as diferenças autorais, culturais e temporais: a encarnação e a possibilidade de salvação através dela.

Além da diversidade de autores, temos na Bíblia uma incrível variedade de gêneros literários. Desde a poesia dos Salmos e Provérbios, até ao espírito épico e profético do livro do Apocalipse. Temos aí também as profecias do Antigo Testamento, que se cumprem no Novo Testamento, como bem destacou Josh McDowell no clássico Mais que um Carpinteiro .

Por mais fascinante que seja o assunto, não entraremos aqui no mérito das polêmicas em torno da origem específica de cada um dos autores humanos desses escritos. Temos já aí uma ampla bibliografia especializada de excelente qualidade sobre o assunto. Restringimo-nos aqui à sua relação específica com a literatura.

Para tanto, é necessário primeiramente considerar um outro assunto, quem sabe o principal para entendermos a distinção da Bíblia entre tantos outros livros – até mesmo entre alguns outros escritos considerados “sagrados”. Trata-se da questão da autoria ou “inspiração” que está para além de todos os autores humanos e que pode explicar a sua incrível unicidade de sentido para além da diversidade de escritores de diferentes épocas. No próximo artigo, abordaremos a questão da inspiração divina e como ela se relaciona com a identidade literária da Bíblia.

1 COMENTÁRIO

  1. Antes de tudo, parabéns. Bom artigo. J  era de se esperar pela escritora conhecida e respeitada. A revelação que precisamos ter a autora nos deu, a Bíblia ‚ um livro. Sabendo disto e, com as ferramentas linguísticas adequadas (sem nunca desconsiderar o Espírito que a inspirou), poderemos compreendê-la melhor e ensinar aos demais cristãos o valor das Escrituras como literatura divino-humana.

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