A tarefa internacional de se fazer teologia

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O estudante de teologia estava bastante tranqüilo durante sua prova oral quando lhe fizeram uma pergunta hipotética: “Suponha que você tenha se mudado para a África Oriental com o objetivo de ensinar teologia. Como você faria teologia na Somália? Descreva seu método teológico .” Demonstrando insegurança, ele propôs que começaria com a tradição e cultura cristãs ou, mais precisamente, ele tentaria interpretar a tradição à luz da cultura somaliana.

Quando perguntado “O que você quer dizer com tradição ?”, ele respondeu: “Eu quero dizer a Teologia da Reforma ou, talvez, o ensinamento do Conselho de Nicéia [Trindade] e Calcedônia [a pessoa de Cristo com duas naturezas em união hipostática].” O examinador sugeriu então que metade dos alunos que o estudante teria seriam ortodoxos coptas que não aceitam Calcedônia, muito menos as suposições do Atlântico Norte sobre a Reforma. “Portanto, em que base você valoriza uma tradição como preferível em relação à outra? Qual é a base da fé cristã?”

O método teológico é um dos temas mais difíceis e sutis da teologia. À primeira vista, pode não parecer óbvio, mas como nós fazemos teologia determinará, em muitos aspectos, nossas conclusões teológicas. A metodologia é a alavanca das estradas de ferro que leva uma tradição a venerar Maria, outra a ordenar pastoras lésbicas, e outra a considerar a profecia como fonte primária de revelação nos dias de hoje. Conscientes ou não, todos os cristãos se envolvem com o método teológico. Todos nós fazemos teologia sempre que tomamos decisões relacionadas à nossa fé.

Os cristãos evangélicos professam que a Bíblia é a a fonte primária da verdade – de fato, sola scriptura . Confessamos isto, em parte, porque Jesus levantou dos mortos como validação da parte de Deus para todas as coisas que nosso Salvador é e ensinou. Isto certamente inclui suas extraordinárias declarações sobre o Antigo Testamento (Mateus 5.17-18; 22.29-32, 41-45; João 10.35; 17.17) e sobre como o Espírito Santo guiou a redação do Novo Testamento (Mateus 24.35; João 14.26; 16.13-14). No centro da flor teológica e de suas muitas pétalas está a Bíblia, a palavra dada por Deus em uma cultura específica para a humanidade presente em todas as culturas .

Ainda assim, mesmo os métodos teológicos evangélicos podem variar substancialmente, como vários livros e debates recentes comprovam. Cristãos orientais, como o indiano Sadhu Sundar Singh, valorizam fortemente o entendimento intuitivo da verdade de Deus, de forma semelhante à ênfase pentecostal do conhecimento por meio da experiência . Os africanos com freqüência juntam os pedaços da teologia como um mosaico ou parábola, com forte apreciação das narrativas dentro de suas comunidades de fé. Já aqueles oriundos de culturas do Atlântico Norte tendem a fazer teologia por meio de um racionalismo de lógica fracionada, um tipo de deducionismo empírico que se baseia no texto ou em várias outras fontes. John Wesley construiu uma teologia a partir de seu quadrilátero : Escrituras, razão, tradição e experiência. O batista Stanley Grenz defende uma mescla criativa de cultura e tradição à luz da norma normativa da Bíblia. Ao redor do mundo, os evangélicos propõem métodos diferentes para se fazer teologia, alguns a partir dos contextos da realidade, alguns dentro de suas tradições teológicas, alguns retornando a estudos patrísticos da Igreja Primitiva. Outros vão atrás da filosofia, sociologia, ciência política, antropologia e estudos culturais como fontes de teologia.

A entrevista com nosso estudante de teologia continuou: “Se você, estando na Somália, fosse convidado para participar de uma conferência internacional de teologia em Jacarta, junto com cristãos de Cuba, Chile, Coréia do Norte, Indonésia, Ásia Central, África do Sul e Itália, qual seria sua base para a unidade cristã? Seria a tradição teológica? Seria o método teológico?” O estudante não tinha uma resposta.

É claro que as tradições teológicas variam. Metodologias para se fazer teologia também se apresentam de formas diferentes. Mas o centro do “Cristianismo mundial” é a Bíblia. Se há uma base para o diálogo que transcende nossas culturas, tradições e crenças doutrinárias, ela é a própria Escritura. Sem a Bíblia na questão, como a igreja que cresce entre os pigmeus de Camarões poderia conversar com uma igreja presbiteriana de Recife? Como os cristãos emergentes na Mongólia dialogariam com os batistas no Texas ou com os anglicanos em Uganda?

Na periferia da flor, de pétala em pétala, as expressões culturais da fé cristã podem variar muito. A tarefa da teologia é aplicar e integrar a verdade cristã no contexto de seus intérpretes, portanto não deveríamos nos surpreender pelo fato de que expressões de teologia nacionais e contextualizadas podem ser significativamente distintas. No entanto, o centro da fé que une a verdadeira fé cristã é a Escritura. Na Bíblia, temos uma linguagem comum, as verdades inabaláveis da Igreja, a medida de todo o dogma, tradição, teologia cultural e prática cristã.

Afirmar que a Bíblia possui autoridade absoluta não é dizer que minha interpretação da Bíblia é absoluta. Nós todos vemos o texto condicionados por nossa cultura, história, educação, experiência e muito mais. Ao formar um doutrina bíblica básica, eu já estou a um passo de distância do texto. Eu abordo o texto em minha própria língua, utilizando conceitos com os quais já estou familiarizado, a maioria deles através da minha experiência. Posso ter o Espírito Santo me guiando, mas ainda não estou livre da natureza pecaminosa. Minhas perguntas (e as respostas que procuro) são nutridas dentro de molduras teológicas de acordo com os entendimentos dos cristãos ao meu redor, sejam eles anglicanos, batistas ou pentecostais. Portanto, às vezes eu me aproximo do texto sem ser capaz de ver o que outro cristão poderia observar imediatamente a partir de suas distintas experiências e tradições. Sinto que preciso das perspectivas de outros cristãos ligados a outras culturas e origens para que eu possa preencher aquilo que talvez seja incapaz de perceber na Palavra de Deus. Por outro lado, isto não quer dizer que não possamos desenvolver confiança e segurança para ensinarmos as verdades de Deus. Como Apolo (Atos 18.24-26), devemos tanto pregar com intrepidez e fervor como também termos a humildade de aprender com Priscila e Áqüila.

Portanto, a verdadeira fé cristã é como uma flor. Deus é a raíz e o caule que dá vida a todo o resto; a vitalidade teológia deriva de Deus Pai, Filho e Espírito Santo. O centro da flor é a Escritura, a revelação divina objetiva pela qual todo o conhecimento e praxis de Deus são mensurados; ostensivamente, esta é a confissão de qualquer tradição cristã histórica dentro de qualquer cultura. Ligeiramente fora do centro da flor, está aquilo que muitos chamam de doutrina – a destilação do ensinamento bíblico, nossa categorização e enquadramento daquilo que consideramos a verdade da Escritura. A doutrina bíblica básica cerca a Palavra de Deus e ajuda a unificar a fé entre os crentes enquanto reconhece (com alguns limites) abordagens e interpretações diferentes do texto. Finalmente, irradiando-se do centro da Escritura e de suas confissões doutrinárias estão as pétalas coloridas de nossas teologias – as muitas formas de integração da verdade de Deus dentro de nossas vidas e contextos. Cristãos tendem a valorizar algumas facetas da realidade mais do que outras ao formar teologias. Existem, dentro da diversidade mundial de contextos e culturas, desde a teologia orientada a missões de Hwa Yung na Malásia e a sensibilidade cultural do africano Kwame Bediako até a apologética racionalista de William Lane Craig e as exortações emocionais dos neo-pentecostais. Ou seja, como nós fazemos teologia pode variar de cultura para cultura, igreja para igreja, e até de indivíduo para indivíduo – ainda que certamente alguns métodos são mais fiéis às metodologias bíblicas do que outros. Mas para todos os cristãos verdadeiros, a Escritura é o centro unificador. Ela é a ponte para a unidade e para a koinonia em Jesus Cristo, com manifestações da fé cristã em contextos muito diferentes dos nossos. Ela mantém a beleza da flor na vida de Deus.

Ao fazermos teologia, portanto, nós precisamos um do outro. Os dias de arrogância teológica acabaram. Aprendemos que a “metodologia científica” da teologia da libertação foi construída sobre areia, mas seu desafio prático encontra ressonância na própria Bíblia. As teologias batista e reformada aprenderam que ainda têm muito a aprender, talvez até mesmo uma da outra. A teologia experimental do Pentecostalismo pode lamentavelmente não ter lastro suficiente na Escritura e na doutrina, mas ao mesmo tempo reprime as demais teologias pela falta de fé neotestamentária e de zêlo evangelístico. Teologias fundamentalistas podem exagerar ao se colocarem como donas absolutas da verdade, mas sua tenacidade pela Bíblia deve ser admirada. Teologias acadêmicas há muito tempo secaram e se mostraram inúteis em suas próprias células, mas, se conseguirem avançar no serviço ao corpo de Cristo, a Igreja terá um futuro mais forte. Teologias nacionais podem desocidentalizar a teologia de forma legítima e aposentar imposições missionárias, mas devem permanecer na verdade bíblica se quiserem ser consideradas cristãs.

Como o provérbio da África Ocidental nos lembra, “se você quer viajar rápido, viaje sozinho; se você quer viajar longe, viaje acompanhado”. A tarefa de fazer teologia é internacional, ainda que nos engagemos e apliquemos a teologia de formas distintas. Na atual era de pluralidade e comunicação, precisamos um do outro. Precisamos um do outro reunidos em volta da fogueira da sempre viva e ativa Palavra de Deus.

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